Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A palavra de origem moçambicana maningue tem como sinónimo a palavra muito.

Procurei saber de que forma a palavra maningue pode ser utilizada, olhando para tal para a classe de palavras a que pertence. Nos dois dicionários que consultei, o da Infopédia e o da Academia, pude ver que se está perante um advérbio.

Para além de ser um indiscutivelmente um advérbio, maningue também pode ser utilizado, segundo o dicionário da Infopédia, como pronome indefinido. Já o dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, considera, pelo contrário, que a outra classe de palavras a que pertence maningue é a dos determinantes indefinidos.

Posto isto, maningue é um pronome indefinido ou um determinante indefinido? Ou os dois? Será que podiam dar alguns exemplos?

Muito obrigado.

Resposta:

Nos dicionários aqui consultados, não há coincidência exata na informação relativa às classes de palavras a que maningue pertence, mas existe complementaridade.

Há consenso quanto a classificar este vocábulo como advérbio, com o significado de «muito»:

(1) maningue caro; faltar maningue (Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

Maningue também pode ocorrer como determinante indefinido, associado a um nome, no sentido de «muito(s), muita(s)» (ibidem):

(2) Beberam maningues cervejas.

Contudo, na Infopédia, maningue é também classificado como pronome indefinido.

Considerando conjuntamente os dois dicionários, conclui-se, portanto, que maningue pode ocorrer como advérbio, determinante indefinido e pronome indefinido.

Sobre um dicionário classificar maningue como determinante e outro o apresentar como pronome, diga-se também que não se deteta uma verdadeira divergência. Com efeito, em Portugal, numa terminologia gramatical mais antiga, sistematizada em 1967 (Nomenclatura Gramatical Portuguesa) e ainda na terminologia gramatical do Brasil, de 1959, não se fala em determinante, mas, sim, em pronome, quer apareça sozinho (pronome absoluto), quer surja associado a um nome (pronome adjunto).

Pergunta:

Tinha «a cisma» ou «o cisma»?

Resposta:

No sentido de «ato, processo de cismar (pensar insistentemente)», é nome do género feminino: «a cisma» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). É palavra que não deve ser confundida com cisma, um homónimo que significa «separação» e é nome do género masculino (ver resposta anterior aqui).

Cisma, no feminino, e cisma, no masculino, são, portanto, palavras diferentes, mas com a curiosidade de estarem relacionadas etimologicamente. Com efeito,  a palavra cisma, no género feminino, é um derivado não afixal do verbo cismar, que, por sua vez, vem da conversão de cisma, «separação», no género masculino. Na conversão deste último nome em verbo, operou-se uma mudança semântica que levou da noção de «separação» à de «pensar com preocupação». O nome do género masculino cisma é adaptação do latim eclesiástico schisma, um empréstimo do grego que nesta língua tinha a forma skhísma «separação, divisão», derivada do verbo também grego skhízō «separar, dividir, fender» (donde se desenvolveu o termo que deu origem ao vocábulo esquizofrenia).

Pergunta:

Afinal, a palavra Davos é paroxítona ou oxítona?

Resposta:

Trata-se de um topónimo de língua alemã que soa como palavra oxítona:

(1) Davos = "Davôss" (ou "Dafôss").

Não há por enquanto aportuguesamento deste nome e, portanto, aceita-se o uso da grafia e da pronúncia originais.

Davos é uma estância alpina situada no cantão dos Grisões, na Suíça. É nesta vila que tem lugar anualmente o Fórum Económico Mundial (World Economic Forum, em inglês), uma cimeira que reúne líderes empresariais e políticos de todo o mundo.

Pergunta:

Qual é a expressão correta?

«Auto do processo» ou «autos do processo»?

No Brasil deparo-me mais com a expressão «autos do processo». Contudo, em Portugal, leio regularmente as duas formulações.

Caso as duas estejam corretas, é preferível o uso de alguma delas?

Resposta:

Só é possível dar aqui um parecer fundado em informação dicionarística.

Os dois usos, no singular e no plural, estão corretos, mas parecem ter usos ligeiramente diferentes.

No singular, em contexto legal, auto significa «documento oficial, escrito e assinado em que, com fins legais, se regista um ato ou se relata qualquer ocorrência» (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa). De forma mais genérica, auto significa «peça de um processo judicial» (Infopédia). Nesta perspetiva, o plural autos não afeta o significado global da palavra, pois que, denotando documentos, pode falar-se de «um auto», «dois autos», «três autos» etc.

Contudo, em dicionários elaborados no Brasil – para esta resposta, foram consultados o Houaiss e o Michaelis – e, pelo menos, num de Portugal (Priberam), existe a subentrada autos, que genericamente significa «peças constitutivas de um processo». Ou seja, auto, no singular, é um documento de tipo narrativo usado em contexto legal; no plural, autos pode ocorrer como «conjunto de documentos que constituem um processo».

Dito isto, importa também referir que, numa consulta no Corpus do Português, coleção eletrónica que reúne textos do Brasil e de Portugal, se nota que, nos textos brasileiros, se tende a empregar autos muito mais que auto, tendência que não parece tão nítida em textos de Portugal....

Pergunta:

Por que no português não existe mais o dígrafo de th, sendo que existia no latim?

O que aconteceu durante a evolução da língua para que o som do th desaparecesse?

Resposta:

No latim, o grafema th ocorria em empréstimos do grego para representar uma consoante aspirada. Esta articulação depressa se perdeu na pronúncia latina, de tal maneira que th acabou por representar o mesmo som que t.

Quando se começou a escrever em português, as palavras que eventualmente tivessem th também soavam como se tivessem t. É o caso de theoria, que soava teoria. No começo do século XX, a ortografia simplificou-se, e optou-se por suprimir o th, porque na prática era um t, razão por que passou a escrever-se simplesmente teoria.