Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
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Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

É verdade que Coimbra, não tendo pronúncia característica, é considerada como a forma mais correta (ou de referência) de falar português em Portugal?

Resposta:

Trata-se de uma ideia que tinha voga há mais de meio século, mas que tem o seu quê de mítico.

Geralmente, diz-se que o português padrão se elaborou e fixou no eixo Lisboa-Coimbra, ou seja, entre camadas de população com algum privilégio social e que se encontravam ou se deslocavam sobretudo na área da capital política e administrativa, Lisboa, e na capital académica, Coimbra1. Mas a questão da correção em Portugal, tendo base regional, também revela uma dimensão sociológica, o que não é novidade no contexto das línguas europeias e outras.

Assim, a definição da pronúncia-padrão de Portugal envolve de facto Coimbra, mas não se trata de Coimbra no seu todo, tal como nunca foi, neste âmbito, a consideração da pronúncia de Lisboa. Quando se fala de boa pronúncia, fala-se também de Coimbra, porque foi nesta cidade que funcionou durante décadas, se não séculos, a praticamente única universidade do país. Tendo esta realidade em mente, falava-se da qualidade modelar do português de Coimbra, mas com certeza que não se considerava o português popular de Coimbra, o qual geralmente já apresenta características dos dialetos do português setentrional, como seja a chamada troca de "v" por "b" ou betacismo ("bento", em vez de vento). De facto, o que se tinha em linha de conta era o português dos estratos sociais mais elevados, económica, administrativa ou culturalmente, da população de Coimbra.

Apesar de tudo, há uma característica que hoje se mantém como característica da região de Coimbra, mesmo entre membros das elites: a conservação da vogal /e/ em espelho e coelho, ou seja, a conservação do e fechado antes de lh: "espêlho", "coêlho". Esta pronúncia tem hoje menos projeção em Portugal, mas parece manter-se à volta de Coimbra e mais para leste e sul, ap...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma correta de dizer: São Hugo ou Santo Hugo?

Desde já agradecido pela atenção.

Resposta:

Como o nome Hugo começa foneticamente por vogal ("ugo"), seria de esperar santo, como em Santo António, Santa Engrácia ou Santo Ovídio (ler aqui).

No entanto, a verdade é que com Hugo, se usa também são, e a única explicação que aqui se encontra para o facto é a sonoridade mais suave (eufonia) de «São Hugo», que evitará a sequência talvez menos agradável de "tugo", que se ouve em "Santo Hugo".

Pergunta:

Nas regiões do Baixo Alentejo e Algarve é comum ouvir-se as gerações mais antigas referirem-se a uma lanterna de mão como um "focse", ou "fogse" (a pronunciação nem sempre é clara).

Será que a origem do termo vem do latim "focus"?

Resposta:

Não temos uma resposta inequívoca quanto à origem da palavra, que tem registos gráficos variados.

Será uma forma popular relativamente recente (no contexto da longa história da língua portuguesa), resultado da deturpação do nome de alguma marca de lanternas – por exemplo, as lanternas Focus.  Pode também relacionar-se com alguma outra marca, talvez com a forma "Fox". Não se trata, portanto, de resultado histórico direto do latim FOCUS, que em português deu fogo.

Acrescente-se que três dicionários de regionalismos do Algarve ou Baixo Alentejo registam o termo com diferentes grafias:

(1) «Fox: designação generalizada para qualquer tipo de pilha elétrica manual» (Eduardo Brazão Gonçalves, Dicionário do Falar Algarvio, Algarve em Foco Editora, 1996)

(2) «Fócse: lanterna de bolso a pilhas; lente. Ex.: Compade Zé, vô-me andando qu'isto hoje nã há lua e, im anoitecendo, nã se vê quái nada... – Nã s'apequente com isso qu'ê cá impreste-le um fócse que tenho p'ali..."» (Mário Duarte, Glossário Monchiqueiro, Grupo de Dinamização Cultural "o Monchiqueiro", 2016)1

(3) «Foxe, s. m. Lanterna a pilhas (Baixo Alentejo)» (Vítor Fernando Barros e Lourivaldo Martins Guerreiro, Dicionário de Falares do Alentejo, Âncora Editora, 2013)

Dos três registos acima apresentadas, o que se afigura conforme a ortografia é foxe.

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Pergunta:

Os dicionários fazem sempre menção da existência das duas formas registar e registRar em português de Portugal ou em português do Brasil.

Do ponto de vista da norma portuguesa europeia, será que é a forma registar que é correta (e, em tal caso, a forma registrar seria considerada incorrecta)? Ou são ambas corretas?

No caso onde não seria uma questão de norma, pode-se confirmar que a forma registar é a forma mais usual em português europeu?

Muito obrigado pela sua ajuda.

Resposta:

Ambas as formas estão corretas se tomarmos em consideração o conjunto da língua portuguesa. Contudo, levanta-se a questão de saber se elas são adequadas em todos os países de língua portuguesa. Esta é uma questão que, não sendo estritamente normativa, pode suscitar outras e confunde-se com a do critério de correção linguística.

Em Portugal, entre falantes de português europeu, usa-se registar, e é estranho empregar na oralidade ou na escrita a forma registrar. A situação será inversa no Brasil. Nos outros países, parece haver alguma fluidez: por exemplo, em Angola poderá haver preferência pelo padrão de Portugal, enquanto em Cabo Verde há indícios de grande influência do português do Brasil.

Por outras palavras, pode afirmar-se que a forma registar é a típica do português europeu, e, portanto, se num texto escrito nesta variedade, ocorrer a forma com r, registrar, gera-se uma situação que, não podendo classificar-se de erro, configura uma desadequação que na prática redunda numa incorreção. Com efeito, por enquanto, não é desejável misturar variedades do português num mesmo discurso ou no mesmo texto.

O que foi dito pode encontrar algumas contraprovas: na oralidade, há muitos portugueses, falantes nativos de português europeu, que informalmente adotam formas do português do Brasil, às vezes por imitação deliberada ou gosto, outras vezes inconscientemente. É frequente que estes usos correspondam a modismos que podem ou não enraizar-se no padrão lusitano, e isto acontece frequentemente com frases fixas (ex., «fim da picada»).

Mesmo assim, quando se trata da língua formal, entre falantes nativos da variedade europeia de português, a tendência é preferir ou recomendar formas, palavras e construções típicas do português de Portugal.

Pergunta:

Ao escrever, saiu-me uma palavra que eu sempre usei: "reconchegar". O Word não a reconheceu, no entanto.

Foi então que consultei dicionários e não a encontrei, não obstante ela ter feito parte de toda a minha vida. Fui encontrá-la apenas aqui no Dicionário Estraviz. De seguida, lembrei-me que reaconchegar é também palavra que eu já usara, mas também esta não é consagrada em dicionário algum (embora, morfologicamente me parece bem construída, com o prefixo re + aconchegar).

Assim, a pergunta: existem ou não essas palavras?

Obrigado.

Resposta:

As palavras em causa existem, como o consulente acaba por demonstrar.

Os dicionários não abrangem todas as palavras. No caso de reachonchegar, compreende-se que não haja registo, porque nem todos os derivados com o prefixo re-, com o significado geral de «repetição», encontram entrada nos dicionários. Por exemplo, é possível e correto o uso de recozinhar, derivado que parece não ter registo dicionarístico.

Quanto a reconchegar, interessaria saber onde o aprendeu e em que contexto o usa. De qualquer modo, é palavra correta e, pelo menos, atestado no Dicionário Estraviz, que é um dicionário feito por um lexicógrafo galego mas que não deixa de ser um dicionário de português integrando formas galegas. Segundo esta fonte, reconchegar tem os seguintes significados: «Reunir, juntar cousas que estão dispersas» e «unir pessoas separadas».