Pergunta:
Não tenho dúvidas sobre as posições possíveis do pronome pessoal átono nas construções formadas por auxiliar finito e verbo principal no infinitivo. Há mesmo muitas respostas sobre o assunto.
Contudo, interessa-me saber se é coerente a justificativa para a norma idiossincrásica que sigo. Sei estarem em conformidade com o uso culto corrente as seguintes construções, transcritas da resposta do consultor Carlos Rocha à consulente Ana Magalhães, em 7 de novembro de 2018:
1. Vai/Pode conhecer-se muitos lugares.
2. Vai-se/Pode-se conhecer muitos lugares.
3. Vão/Podem conhecer-se muitos lugares.
4. Vão-se/Podem-se conhecer muitos lugares.
Sei também que se é pronome indeterminado em 1 e 2, mas apassivante em 3 e 4, estas consideradas preferíveis pela norma mais conservadora.
Vem, finalmente, a minha pergunta: a despeito de o uso corrente não fazer distinção entre as construções formadas por um auxiliar modal e as formadas por um não modal, não há alguma diferença entre elas, que tem implicações relevantes? Explico-me com exemplos.
Não se diria, normalmente, «Conhecer muitos lugares pode-se», mas a frase não é agramatical e poderia ser empregada para fins enfáticos, como em «Conhecer muitos lugares pode-se; o que não se pode é usar o desejo de conhecer muitos lugares como pretexto para justificar a falta de compromisso com os estudos». Portanto, «Conhecer muitos lugares» é sujeito, e, como o núcleo do sujeito é um verbo no infinitivo, a forma verbal finita mantém-se no singular: «pode-se». Trata-se, a meu ver, não de construção com sujeito indeterminado, mas sim de construção com sujeito determinado, cujo núcleo é um verbo no infinitivo que obriga à manutenção da forma verbal finita no singular.
Por ser construção com sujeito determinado é que entendo menos aceitável (sempre à luz do m...
Resposta:
O verbo poder, como dever, tem propriedades sintáticas que levam a considerá-lo como um semiauxiliar, e não exatamente como um auxiliar1.
Entre as características de poder como semiauxiliar, conta-se a de o infinitivo associado ter um funcionamento próximo de um domínio oracional. Se assim é, então, talvez se consiga explicar a deslocação e autonomia do domínio sintático do infinitivo, a gramaticalidade do se indeterminado e a impossibilidade da passiva sintética:
(1) Conhecer muitos lugares(,) pode-se.
(2) OK Conhecer muitos lugares, isso pode-se [fazer].
(3) *Conhecer muitos lugares, isso podem-se [fazer]
Em (1), admite-se que, na escrita, é fortemente aconselhável uma vírgula de forma a dar conta da deslocação do infinitivo associado ao modal poder, configurando assim um caso de topicalização.
Além disso, apresentam-se em (2) e (3) duas possibilidade de paráfrase: a primeira aponta, de algum modo, para a retoma globalmente apositiva de «conhecer muitos lugares» e para a ocorrência subentendida de fazer como pró-verbo, evidenciando que o verbo poder seleciona a estrutura de infinitivo ao modo de um oração («conhecer muitos lugares»); a segunda paráfrase é agramatical, a gramaticalidade da paráfrase anterior não é conciliável com a concordância de pode. Por outras palavras, em (1), a ocorrência de «pode-se» é elíptica.
Mesmo assim, aceitando a frase tal como se apresenta na pergunta – «Conhecer muitos lugares pode-se» –, é discutível que «conhecer muitos lugares» seja sujeito e «pode-se» configure um predicado, com se apassivante; portanto, poder não é verbo principal nem verbo transitivo direto que possibilite a leitura de se como partícula apassivadora. A tese de «conhecer muitos lugares» constituir sujeito não...