É uma notícia do jornal desportivo Record, de 09/10/2024, e publicada na versão impressa desta publicação na mesma data. A leitura, mesmo distraída, pode deter-se na sequência que, nas imagens, ocorre aqui sublinhada a amarelo – à esquerda, no que está em linha no momento em que se escreve este apontamento, e à direita, no que ficou inscrito no papel e no documento em formato PDF.
Em referência ao tempo inexorável e às fases de um processo prolongado e difícil ou que ainda está longe de uma conclusão, muitas vezes se diz metaforicamente que «muita água correu» ou «há de correr», completando a expressão com «debaixo da ponte», «por baixo da ponte», «por debaixo da ponte» ou «sob a ponte». Estranho se torna, porém, dizer que «muita água ainda vai correr abaixo das pontes», porque a locução «abaixo de» sugere algum afastamento em relação a um ponto de referência, neste caso, denotado pela palavra ponte, como parecem indicar as seguintes abonações:
(1) «A algumas centenas de metros abaixo da ponte, aquela linha de água recebe os detritos industriais de um lavadouro de lãs situado nas suas imediações» (Terras da Beira, 09/10/1997 in Corpus do Português).
(2) «[...] olhava fixamente para o ribeirão, que logo abaixo da ponte se despenha em rugidoras catadupas» (Bernardo Guimarães, O Garimpeiro, 1872, ibidem).
Nos exemplos apresentados, o uso da locução abaixo de entende-se pela localização relativa de objetos e fenómenos na linearidade dos cursos de água referidos. Assim, em (1), a receção das águas conspurcadas não se verifica debaixo da ponte, mas, sim, a alguns metros dela; e, em (2), o ribeirão não se despenha por baixo da ponte, mas pouco depois. Tomando quer à letra quer metaforicamente o que se lê na notícia em causa, se as "águas" passam algures mais abaixo, no curso do rio, então, quem cruze tais "pontes" pouco terá de se preocupar com um processo de negociações futebolísticas ou com qualquer outro assunto.
Reconheça-se que a ocorrência insólita da locução é também boa oportunidade para relembrar como o simbolismo das águas se associa metaforicamente aos caprichos do tempo. Se a impaciência é sugerida pelas águas que tardam em passar debaixo de certas pontes, apela-se igualmente à resignação e ao distanciamento emocional que o passar dos anos pode provocar sobre desgostos e rancores, quando se diz que «águas passadas não movem moinhos». Outras vezes, e sabemo-lo desde os filósofos pré-socráticos, aceitamos com Heraclito que o tempo não volta atrás e, portanto, «não nos banhamos duas vezes no mesmo rio». E há ocasiões em que tudo «vai água abaixo», como se o fracasso fosse a enxurrada que derruba castelos de areia.
Seja como for, o que se pretende dizer na notícia é que «muita água ainda vai correr debaixo das pontes» até haver um desenlace. E tudo se passará debaixo das pontes que pisamos, e não mais abaixo, onde o rio corre para longe, a jusante, para nosso alheamento.