Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Quando me refiro ao desenho de crianças de três, quatro e cinco anos de idade, digo «representação icónica».

Está errado?

Obrigada.

Resposta:

O termo em questão tem uso especializado e está correto.

Ocorre em referência às propostas do psicólogo norte-americano Jerome Bruner (1915-2016), segundo as quais são três os modos de representar o mundo: representação enactiva, representação icónica e representação simbólica. Num artigo intitulado "Bruner e a aprendizagem pela descoberta", disponível no sítio eletrónico do Colégio dos Carvalhos, definem-se os três termos do seguinte modo (mantém-se a ortografia do original, anterior à norma em vigor; texto consultado em 24/01/2019)1:

• O modo de representação "enactivo" consiste em representar coisas mediante a reacção imediata da pessoa. É a representação através da manipulação e acção que ocorre marcadamente nos primeiros anos do indivíduo[, quando] a criança define os acontecimentos pelas acções que evocam. Bruner relacionou-a com a fase sensório-motora de Piaget, na qual ocorre uma fusão entre a acção e a experiência externa.

• O modo de representação icónica consiste em representar coisas mediante uma imagem ou esquema espacial independente da acção. O indivíduo, com o tempo, começa a tornar-se mais autónomo face à acção passando a representar a informação através da organização perceptiva da imaginação, da organização visual e da utilização de imagens, ou seja, já é capaz de representar mentalmente os [o]bjectos apreendidos.

• O modo de representação "simbólica" é aquela que ocorre depois, através das palavras e...

Pergunta:

Como se diz em português? «Resposta/atitude ameaçante» ou «ameaçadora»? «Resposta/atitude intimidante» ou «intimidatória»? «Reagiu de forma insultante» ou «insultuosa»? Ambas as formas são aceitas em cada exemplo?

Obrigado de antemão pela ajuda dispensada.

Resposta:

Apesar de todos os adjetivos em questão estarem corretos, empregam-se preferencialmente os adjetivos ameaçador e insultuoso. As combinações mais correntes são, portanto, «resposta/atitude ameaçadora» e «resposta/atitude insultuosa».

Excetuam-se os adjetivos intimidante e intimidatório, que se combinam de modo semelhante aos nomes em questão, formando sintagmas que não são exatamente sinónimos:

(1) «Resposta/atitude intimidatória» – que tem a intenção de intimidar;

(2) Resposta/atitude intimidante – que intimida.

Pergunta:

Na frase «O João magoou-se», o verbo é transitivo ou intransitivo?

Resposta:

O verbo magoar é geralmente transitivo («o choque/a notícia magoou muito a Joana») e a ocorrência de -se pode ser compreendida por esse comportamento, pelo que que se dirá que «magoou-se» também ilustra o uso transitivo do verbo.

No entanto, numa análise mais aprofundada, observa-se que o pronome reflexo se cancela de alguma forma a transitividade do verbo, razão pela qual certos linguistas consideram que é intransitivo um uso como «o João magoou-se», ou seja, trata-se de um uso próximo do valor inerente de se, conforme se refere no Dicionário Terminológico. Na Gramática da Língua Portuguesa (Caminho, 2003, pp. 841-843) encontra-se este assunto mais desenvolvido.

No contexto do ensino básico e secundário, talvez seja de evitar casos na fronteira entre o se efetivamente reflexo, que decorre da transitividade do verbo (ex. lavar-se), e o se de esquecer-se ou portar-se, casos em que o pronome é considerado meramente como parte da flexão verbal.

Pergunta:

Tenho um colega que documenta a maneira como as pessoas falam em uma vila. Lá, há pessoas que costumam usar «pá pá pá». Elas fazem construções como:

«Encontrei fulana no mercado e ela disse que está muito feliz, que seu filho estuda Medicina, que a namorada dele é linda e "pá-pá-pá".»

Qual seria a melhor maneira de classificar este tipo de construção? Há alguma figura de linguagem que se enquadre nesse caso?

Resposta:

Não conheço um termo preciso que classifique a expressão referida. No entanto, tendo em conta o Dicionário Houaiss (2001), pode considerar-se que é uma expressão imitativa ou onomatopaica (alude aos sons de alguém que fala sem parar, muitas vezes sem se distinguir bem o que é dito), equivalente a blablablá (ou blá-blá-blá), cujo sentido é o de "etc." (et cetera).

Pergunta:

Quando falamos sobre a estrutura das palavras, aprendemos que o morfema central delas é o radical, por ser a base que carrega a significação das palavras e à qual se adicionam os demais morfemas (afixos, desinências, vogais temáticas e vogais e consoantes de ligação).

Teoricamente, o radical de uma palavra não muda, porém, quando analisamos as famílias das palavras, não é difícil encontrar diferenças na base significante de palavras de mesma família. Por exemplo, a palavra pedra (radical pedr) é da mesma família da palavra petrificado (radical alterado para petr). Da mesma forma, a palavra sabão (radical sab) é da mesma família da palavra saponáceo (radical alterado para sap).

Está claro que essa diferença está ligada à origem da palavra no latim, grego, etc. Porém, como explicar isso didaticamente? O radical pode ou não pode sofrer alterações? Qual a diferença entre raiz da palavra e radical da palavra?

Obrigada desde já pela ajuda.

Resposta:

A realização fonológica da raiz e do radical pode mudar.

Quando isso acontece, falamos em alomorfia, isto é, da possibilidade de a raiz ou o radical serem representados por formas fonológicas diferentes – é o caso dos casos em questão:

(1) pedra – pedr- / pétreo – petr-

(2) sabão – sabão / sabonete sabon- / saponáceo – sapon-1

Sobre esta relação, observam M.ª Graça Rio-Torto et al, em Gramática Derivacional do Português (Coimbra, Imprensa da Universidade, 2016, p. 46):

«A alomorfia mostra que não é possível encarar o morfema como a ligação entre uma forma e um significado. Na verdade, o mesmo significado pode ser veiculado por formas fonológicas diferentes, que se encontram correlacionadas no léxico mental. A alomorfia não anula, pois, a unidade do morfema. O falante tem capacidade para distinguir, implicitamente, os cotextos em que ocorre cada forma.»2

Sobre a diferença entre raiz e radical, reitere-se o que já se disse antes no Ciberdúvidas (cf. aqui; ver também Textos Relacionados):

«A raiz é o constituinte da palavra que contém significado lexical mas não inclui afixos deri...