Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Descobri recentemente que o verbo chegar tem sua origem no verbo latino plicare (assim como o arrivare deriva de ad ripa > arripare). Plicare significava, então, «dobrar», que era exatamente a ação realizada quando os navios CHEGAVAM a terra: dobrar as velas, recolhê-las. Na época, havia já ao menos um verbo que devia significar literalmente «chegar», mas, mesmo assim, surgiu esse outro com sentido figurado, usado concomitantemente.

Dito isso, gostaria de saber qual teria sido a figura de linguagem praticada pelos falantes quando usavam plicare em vez de «chegar»? Metáfora ou metonímia? Outra?

Resposta:

Aceitando a etimologia referida pelo consulente, trata-se de uma metonímia, dado o verbo que marca a ação de recolher velas – plicare – substituir o que denota uma ação prévia, cronologicamente muito próxima, a de chegar, que, em latim clássico, podia ser expressa pelo verbo advenire, por exemplo.

No entanto, existe outra hipótese, que faz pensar antes num uso metafórico do verbo latino applicare, «dobrar», sentido extensível a «dobrar (o rumo) em direção», que evoluiu para «aproximar-se de, abordar, dirigir-se a, apoiar, aplicar (sentido físico e moral), juntar, ajuntar» (Dicionário Houaiss; ver também Joan Coromines e Antonio Pascual, Diccionario Crítico Etimológico Castellano e Hispánico, s. v. llegar). Deste verbo se deduziria mais tarde o que está na origem de chegar, plicare.

Pergunta:

Devemos escrever: «bola de carne» ou «bôla de carne»?

Resposta:

A grafia correta é bola.

Esta palavra, feminino de bolo, é homógrafa de bola, «esfera, balão». A diferença está na pronunciação: enquanto em «bola de carne» temos bola com o fechado, em «bola de futebol», temos na sílaba tónica um o aberto. Bola é, em várias regiões de Portugal, o que noutras se conhece por folar e denomina, portanto, um pão grande e doce (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa s. v. bola2). Uma «bola de carne» – ou, simplesmente bola – é «espécie de pão feito da massa do pão de trigo a que se acrescentam ovos e em que se dispõem camadas de presunto, salpicão e outras carnes (idem, ibidem).

Sendo bola uma palavra grave (paroxítona) que termina em -a, não é possível aplicar-lhe qualquer acento gráfico. As palavras paroxítonas só recebem acento gráfico quando terminam em -ã(s) (órfã), -ão(s) (órgão, benção), -eis (fósseis), --i(s) (táxi, lápis), -um, -uns ou -us (álbum, álbuns, húmus), -l ( amável, têxtil), -n (íman, plâncton), -r (ímpar, Tânger), -x (tórax), -ps (b...

Pergunta:

«Olhos cinza» ou «olhos cinzas»? Se não estou enganada, o adjetivo tem que respeitar o género e número do substantivo... nesse caso seria "cinzas"?

No entanto, "cinza" parece soar melhor. Qual o correto?

Muito obrigada.

 

Resposta:

No caso, cinza subentende «cor de cinza», pelo que se usa como adjetivo invariável, à semelhança do emprego adjetival de rosa.

Há vários dicionários que registam cinza como sinónimo de cinzento e adjetivo relativo a cor que se usa nos dois géneros: «um chapéu cinza», «uma camisola cinza» – cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, dicionário da Porto Editora (na Infopédia) e Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Contudo, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa indica que a forma adjetival cinza se mantém igual no singular e no plural. Sendo assim, recomenda-se na fala e na escrita: «dois chapéus cinza», «duas camisolas cinza».

 

Cf. OJOLHOS: por que razão há quem leia assim «os olhos»?

Pergunta:

Na Abertura de 16/11/2018, diz-se aí que a palavra mandonismo é um brasileirismo. Será mesmo?

Resposta:

Mandonismo, «abuso, mania do mandão; prepotência» (Dicionário de Caldas Aulete), constitui uma palavra bem formada em português, mas o seu uso mais significativo e a sua fixação em dicionário parecem ter relação especial com o português do Brasil.

Do ponto de vista da sua morfologia, mandonismo deriva de mandão, cujo radical toma a forma mandon- na derivação sufixal: mandon- + -ismo. Esta passagem da terminação -ão a -on não é surpreendente: encontra-se em platonismo, derivado de Platão, e em unionismo, que deriva de união. Quer isto dizer que, mesmo que não tivesse entrada nos dicionários, o vocábulo estaria latente e disponível para ocorrer em discurso, em qualquer variedade da língua portuguesa.

Na perspetiva histórica, porém, nota-se que ao registo de mandonismo.se associa, até época relativamente recente, a classificação de brasileirismo, como se verifica, por exemplo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) e no Aurélio XXI, ambos enquadráveis na lexicografia brasileira. Os dicionários elaborados em Portugal, disponíveis em suporte impresso, muito raramente acolhem a palavra: embora José Pedro Machado a registe como brasileirismo no seu Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Lisboa, Sociedade da Língua Portuguesa/Publicações Alfa, 1991), o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (2001) não a consigna. Observe-se, mesmo assim, que os dicionários eletrónicos mantidos e atualizados em Portugal já apresentam mandonismo – cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa e dicionário da Porto Editor...

Pergunta:

É certo e sabido, a partir das vossas respostas, que se escreve «Península Ibérica», com maiúsculas iniciais. E «Península Itálica», também? É que seria estranhíssimo lermos num mesmo parágrafo, como acabo de ler, «Península Ibérica» e «península itálica»...

Obrigado, desde já.

Resposta:

Nos normativos da ortografia do português, parece não haver um tratamento claro e satisfatório da grafia dos geónimos formados por península ou outros nomes de denotação toponímica em associação a um adjetivo relacional, derivado de nome geográfico (exemplo, ibérico < Ibéria, itálico < Itália).

Contudo, o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa (1947) de Rebelo Gonçalves recomendava que os apelativos geográficos se escrevessem com minúscula inicial, embora aceitasse exceções como Península Ibérica (ver também aqui). Nota-se depois alguma evolução no número de exceções a esse preceito, porque, em 1966, no Vocabulário da Língua Portuguesa, Rebelo Gonçalves grafava Península Itálica no artigo correspondente à entrada península. Com a aplicação do Acordo Ortográfico de 1990, continua a indefinição quanto a casos como estes.

Assinale-se, a propósito que, na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 1002 e 1020), se propõem dois critérios para o uso de maiúscula inicial em apelativos geográficos, também chamados substantivos descritivos: