Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Propus-me ver isto» ou «Propus-me a ver isto»?

Ainda não está claro para mim se o a é necessário, opcional ou errado.

Obrigado.

Resposta:

A preposição a é opcional.

Os dicionários portugueses consultados não são esclarecedores, mas na lexicografia brasileira há informação sobre o funcionamento deste verbo conjugado pronominalmente e seguido de infinitivo. Por exemplo, no Dicionário Prático de Regência Verbal, de Celso Pedro Luft, lê-se o seguinte:

«OBS.2 A regência [propor algo a alguém (propor-lhe algo)], com a substituição de "a alguém" por pronome reflexivo, mostra [propor-se + Infinitivo] como a construção lógica: o "se" como objeto indireto e o infinitivo como objeto direto, portanto sem preposição. Mas o uso, há muito (cf. Morais), consagrou também a construção [propor-se + a + Infinitivo], decerto por causa de semânticas como "aventurar-se (a)" e "dispor-se (a)": " ... aquele que se propuser a arrematá-los” (Código de Processo Civil: Kaspary). "Quem [...] se propuser ao exercido da química” (CLT: id.). "... fundações, que se proponham a fins iguais” (Código Civil: id.). “ ...objeto e fim a que se propõem "(Código Comercial: id .)“ .. quando nos propomos a fazer alguma coisa” (Ivo Pitanguy: Clarice Lispector). ‘'Nenhum arquiteto se propõe a resolver o problema das favelas” (Oscar Niemeyer: id.). Na dúvida, recomenda-se a sintaxe "propor-se" + Infinitivo, sem "a" (até por economia), sem condenar a inovação do uso. A semântica "apresentar-se, oferecer-se, sugerir-se" (cf. 6 e 7), obviamente, pede "a" + Infinitivo, com o reflexivo de objeto direto.»

É curioso observar que, na secção histórica do Corpus do Português, as ocorrências de propor-se + a + infinitivo são muito pouco frequentes em textos de Portugal em comparação com os textos do Brasil. Dir-se-ia, portanto, que em Portugal se prefere a construção sem preposição propor-se + infinitivo, mas é também possível que os contextos selecionados, por alguma razão t...

Pergunta:

A pedido de um colega, estou revendo um texto da área médica que contém repetidas vezes frases como esta:

«Setenta por cento dos pacientes foram definidos como apresentando um baixo grau de sangramento.»

A mim, soa muito mal o gerúndio após «definidos como», mas não sei justificar por quê.

O que há de errado? Uma sintaxe calcada no inglês? Ou seria uma construção aceitável?

Grata pela atenção.

Resposta:

Do ponto de vista gramatical, a frase não está incorreta.

O problema não está no gerúndio, mas sim na sequência «definidos como», que provavelmente reflete um uso estereotipado, que ocorre em artigos científicos: «to be defined as showing (something)».

Esta estrutura é reproduzida literalmente em vários artigos científicos:

(1) «Este custo, é definido como sendo uma variação eleitoral negativa para os partidos em funções governativas nos atos eleitorais consequentes [...]» (PMO Reis, "O custo de governar para além do governo: o caso dos partidos de suporte", repositório da Universidade do Minho, 2022).

(2) «O crescimento pós-traumático (CPT) é definido como sendo o processo através do qual o indivíduo é capaz de experienciar mudanças psicológicas positivas [...]» (Maria Teresa G. C. Canavarro, "Crescimento pós-traumático em jovens sobreviventes de cancro : estudo das relações com as variáveis intervenientes", repositório da Universidade do Minho, 2019).

(3) «O presentismo é definido como sendo o ato de o profissional encontrar-se a trabalhar mesmo estando doente e sem condições para tal» (Hegnar Suleyman, "Presentismo dos profissionais de saúde em Portugal no século...

Pergunta:

Em arquitetura usa-se muito frequentemente a palavra projetual para se referir qualquer coisa relacionada com um projeto de arquitetura.

A palavra existe? O seu uso é correto?

Resposta:

É termo correto.

Projetual é um adjetivo que não tem registo em dicionários mais antigos, mas a palavra está bem formada, é correta e tem entrada em dicionários elaborados e atualizados quer em Portugal quer no Brasil. Por exemplo, no dicionário Priberam, na Infopédia, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, no Dicionário Houaiss (versão em linha) e no Dicionário UNESP do Português Contemporâneo.

Pergunta:

Sou criticado amiúde por familiares por pronunciar -om em vez de -ão, nomeadamente, na palavra coração.

Já me disseram que se deve dizer algo que somente posso transcrever como "coraçáum", distintamente de nação ou paixão.

Esta posição, embora me pareça absurda, tem algum fundamento?

Além disso, existirá realmente uma diferença regional entre as pronúncia dos vocábulos terminados em -ão? Há algo que julguem ser pertinente sobre a questão que deve ser dito?

Auxiliem-me. Agradeço a dedicação inexaurível de quem se vem ocupando com a manutenção desta página.

Bem hajam!

Resposta:

Nada tem de problemático nem de errado a pronúncia em causa.

É uma variação de -ão, e historicamente era um das três terminações nasais do galego-português que mais tarde convergiram no atual som que se grafa como -ão:

coraçon, naçon, paixoncoração, nação, paixão

irmon → irmão

pan, capitanpão, capitão

Acontece que, sobretudo nas regiões de entre Douro e Minho, a convergência dessas terminações nasais se fez muitas em -om ou -õu, o que redunda em pronunciar coraçom ou coraçõu, e até irmom/irmõu (em lugar de irmão) e pom/põu (em vez de pão). É uma pronúncia regional aceitável, se bem que muitos falantes da referida área procurem muitas vezes evitá-la ou disfarçá-la, reproduzindo a solução da norma-padrão, com o ditongo representado por -ão.

Pergunta:

O substantivo âncora, definidor de quem comenta profissionalmente notícia ou reportagem realizada por telejornal, é comum de dois gêneros ou sobrecomum, usado apenas com o artigo o para qualquer dos sexos?

Resposta:

Com o significado mencionado na pergunta, é substantivo dos dois géneros: «o âncora» (homem), «a âncora» (mulher).

Dicionário Houaiss regista âncora na aceção de «profissional de jornalismo televisivo que centraliza a emissão nos noticiários, cuidando pessoalmente ou participando da elaboração do texto das informações e apresentando-as, frequentemente com comentários opinativos», abonando-a com o seguinte exemplo: «Há bons âncoras no telejornalismo brasileiro.»

No Dicionário Priberam, elaborado e mantido em Portugal, este uso á atribuído ao português do Brasil:

«substantivo de dois gêneros 4. [Brasil] [Radiodifusão, Televisão] Jornalista que é o apresentador principal de um noticiário ou programa informativo (equivalente no português de Portugal: pivô).»