Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Deve dizer-se "trato de escravos" ou "tráfico de escravos"?

Ou será que as duas expressões são sinónimas?

Resposta:

O emprego de trato na aceção de «tráfico» é um arcaísmo, ou seja, é um uso antigo que se encontra no português do século XVI. Exemplo:

(1) «Venaliciarius (ii). || o mercador que trata em escravos. Venaliciaria negociatio. || o trato de escravos. » (Jerónimo Cardoso, Dicionário de Latim-Português, 1569-1570, in Corpus do Português; atualizou-se a grafia).

O exemplo acima evidencia, portanto, o uso de tratar como sinónimo de traficar e o de trato como equivalente de tráfico.

Pergunta:

Pesquisei antes, mas não existe qualquer entrada para aerar.

A Infopédia e o Priberam contém a entrada 'aerar', mas o último não disponibiliza a conjugação.

As questões são: este verbo é mesmo necessário na língua portuguesa? Tem alguma diferença semântica de arejar que justifique a sua utilização preferencial em algum contexto específico?

Obrigado pela atenção que o assunto vos mereça.

Resposta:

Ambos os verbos têm registo nos dicionários, mas arejar tem mais tradição e, pelo menos, em Portugal é o verbo mais corrente como sinónimo de ventilar. É também a forma correta em locuções como «arejar (as) ideias».

Quanto a aerar, é verbo mais recente, ao que parece decalcado do francês aérer (cf. Dicionário Houaiss). Não é muito usado, mas o facto de ter registos mais antigos nos dicionários brasileiros consultados pode sugerir que foi introduzido no português por via brasileira. Não é palavra incorreta e parece ocorrer em certos contextos especializados (cf. Corpus do Português ), embora arejar, como foi dito, se perfile como verbo mais vernáculo e acessível.

Pergunta:

Na resposta de 12.05.2017 à minha pergunta sobre o tema, o consultor Carlos Rocha falou do valor concessivo da perífrase verbal vir a + infinitivo, talvez porque fosse possível atribuir-lho ao exemplo específico que dei.

Interessava-me, no entanto, o aspecto durativo que somente tem a perífrase no pretérito perfeito composto, mas não no simples, como no exemplo seguinte:

«O Governo detalha esta quinta-feira as medidas para ajudar a aliviar o aumento das mensalidades do crédito à habitação, que têm vindo a escalar devido à subida das taxas de juro do BCE.» (Expresso, 18.09.2023)

É à perífrase no pretérito perfeito composto, com aspecto durativo e sem valor concessivo, que me referia quando disse ser inexistente no português brasileiro. Inexistente também no PB é a construção ter estado a + infinitivo*, quase sempre empregada no PE com a mesma acepção de ter vindo a + infinitivo, do que é prova a possibilidade da seguinte reformulação da citação anterior, sem mudança aparente do sentido:

«O Governo detalha esta quinta-feira as medidas para ajudar a aliviar o aumento das mensalidades do crédito à habitação, que têm estado a escalar devido à subida das taxas de juro do BCE.»

No PB, parece-me que sempre se empregaria ter + particípio. Quando muito, caso se sentisse a necessidade de dar à ação um aspecto ao mesmo tempo durativo e progressivo, usar-se-ia vir + gerúndio. Assim, diríamos:

«As mensalidades têm escalado.»

«As mensalidades vêm escalando.»

Uma busca ao Corpus do Português, do Corpus do Português, de Mark Davies). De acordo com as fontes disponíveis, não é aqui possível explicar este contraste; o mais que se consegue é constatar o que foi dito na resposta em causa: em textos do século XX, «ter vindo a» é característico dos textos do português europeu.

Já quanto a ter estado a + infinitivo é de esperar que esta forma da construção, com o auxiliar no pretérito perfeito composto, só ocorra no padrão linguístico de Portugal, visto que no Brasil a perífrase se construiria com gerúndio («ter estado fazendo», por exemplo). E com efeito assim é, porque, consultando novamente o Corpus do Português, apenas uma ocorrência abona «ter estado a» + infinitivo numa frase de Erico Veríssimo, que talvez tenha recorrido a esta construção por razões estilísticas, para evitar a proximidade entre gerúndios:

(1) «Toríbio entrou naquele momento. Tinha estado a esconder a cavalhada. – Está chegando a hora... – disse, pegando a cuia que o dono da casa lhe oferecia. Um minuto depois, saíram» (Erico Veríssimo, O Tempo e o Vento, parte 2, tomo 3, 1961).

Em todo o caso, é de assinalar que na secção histórica do Corpus do Português são raras as ocorrências dos tempos compostos na perífrase de estar + gerúndio.

Vir a

Pergunta:

O apelido Rolim, deve ler- se “Rólim”ou “Rulim”?

Obrigado

Resposta:

A pronúncia recomendada de Rolim é com ó aberto átono.

Algo de semelhante acontece com o topónimo Roriz, cujo o é também aberto, apesar de estar em sílaba átona.

Fonte: Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966.

Pergunta:

Vi a construção «Ele punha a outra equipa a ridículo», traduzida do castelhano. É de uso em português europeu?

Ou não será antes: «Ele expunha a outra equipa ao ridículo»?

Muito obrigado.

Resposta:

Aceita-se, mas os usos com maior tradição de registo nos dicionários são os seguintes: «meter a ridículo» «expor ao ridículo» e «expor a ridículo».

No entanto, há exemplos literários de «pôr a ridículo», os quais estão longe de configurarem um uso incorreto, até porque, do ponto de vista da tradição purista, tem-se considerado que pôr é, em geral, mais vernacularmente adequado do que meter:

(1) «Não porque estejamos convencidos de que o coração do homem seja uma coisa idealmente clara e perceptível, mas porque a vulgaridade da frase já está desacreditada e posta a ridículo» (Abel Botelho, Fatal Dilema, 1917, in Corpus do Português).

(2) «... e na sua crueza e primitivismo punha singularmente a ridículo as ideias que apregoava e as suas reivindicações de carácter social» (Mário Ventura, A Noite da Ventura, 1960, ibidem).