Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou curiosa para saber as possíveis pronúncias atestadas para a letra y em português europeu (somente).

Portal da Língua Portuguesa traz [transcrição fonética] IPA/AFI [ˈip.si.lõ], com vogal nasal no final da palavra como a pronúncia padrão e não padrão de Lisboa.

Eu e meu amigo estávamos discutindo se essa pronúncia estaria competindo com [ˈip.si.lɔn]. Qual a forma ensinada nas escolas em Portugal? Existe variação (que é o que me interessa realmente)?

Encontrei dois links relevantes:

1) https://youtu.be/-Zvp8jPSSSI?t=94

2) https://youtu.be/Jlhxs_s2oz0?t=84

São materiais portugueses usados para ensinar o ABC para crianças. As pronúncias são divergentes e para mim atestam variação linguística aceitável. Qual é a opinião dos senhores?

Muito obrigada!

Resposta:

Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua Portuguesa) apresenta efetivamente a transcrição fonética mencionada na pergunta:

Lisboa (não padrão) ˈip.si.lõ

Lisboa (padrão) ˈip.si.lõ

No entanto, não se confirma que seja esta a pronúncia mais generalizada em Portugal. Com efeito, o dicionário da Infopédia transcreve a palavra com consoante nasal alveolar final, ou seja, com um [n] final articulado: [ipsilɔn]. Existirá, portanto, variação, da qual é bem possível que os falantes nem se deem conta. Esta deve-se ao facto de íman e cólon terem oscilações semelhantes em sílaba final, entre vogal nasal e segmento consonântico nasal alveolar (não se exclui que o núcleo vocálico se nasalize): [ˈimɐn]/[ˈi.mɐ̃n ] (e é possível [ˈi.mɐ̃]); [ˈkɔlɔn]/[kˈɔ.lõ].

Neste contexto, torna-se, portanto, difícil identificar a melhor pronúncia, até porque não parece haver doutrina normativa sobre estes casos. Por outras palavras, as pronúncias mencionadas são todas aceitáveis.

Observe-se, por último, que certos gramáticos prescritivistas aconselhavam as formas "ípsilo" e "ipsílon" (cf. Rebelo Gonçalves, Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966), mas trata-se de opções que têm uso escasso ou nulo entre falantes de Portugal.

Pergunta:

Consultei vários glossários e dicionários e nenhum, dos que possuo, pôde me auxiliar no entendimento dessa contração marcada pelo apóstrofo («que a'm poder tem») nos versos que se seguem.

Trata-se de uma sinalefa? Se sim, como desenvolvê-la e como construí-la na ordem direta?

«(...) Deus nom mi a mostre, que a 'm poder tem,
se eu querria no mundo viver
por lhe nom querer bem nem a veer.'»

(Rui Pais de Ribela, ''A mia senhor, que mui de coraçom")

Desde já, agradeço a atenção dispensada.

Resposta:

Trata-se de uma sinalefa (transformação de duas sílabas numa)1, em termos genéricos – mais concretamente, é uma contração (crase) do pronome a e a da vogal da preposição em.

O primeiro verso deverá, portanto, entender-se assim:

(i) Deus nom mi a mostre, que a em poder tem = Deus não ma mostre, que a tem em poder

Em (i) há, portanto, uma crase por inversão da construção verbal: «tem em poder» > «em poder tem».

Esta crase de um a como morfema autónomo ou como terminação de palavra tem chamado a atenção dos filólogos, pois ela conta com algumas ocorrências no Cancioneiro da Ajuda, o mais antigo (começos do século XIV) dos manuscritos que atestam o corpus das cantigas medievais. No projeto em linha Universo Cantigas (consultado em 08/11/2019), por exemplo, dedica-se precisamente um comentário sobre este tipo de crase:

«Neste verso aparece a primeira ocorrencia da preposición en [= em] nunha crase coa voz [= vocábulo] anterior (habitualmente coita e dia), tal como se rexistra esporadicamente no corpus; en calquera caso, esta crase ten unha maior presenza no Cancioneiro da Ajuda, que nalgúns casos a presenta fronte a B [Cancioneiro da Biblioteca Nacional, conservado em Lisboa], que mantén a integridade de en [...] ou que, alternativamente, omite a preposición [...].»

Pergunta:

Gostava de saber se o verbo temperar também se pode referir a temperatura, ou seja ter como sinónimo amornar. Por exemplo, posso dizer: «vou temperar a água para tomar banho»?

Grata.

Resposta:

Na aceção de «tornar morno, tépido; mornar, amornar», empregam-se o verbo temperar e um seu sinónimo destemperar:

Dicionário Aulete (versão eletrónica): «temperar [...] 3. Misturar para chegar a um meio termo [td. : Temperou a água do banho, tornando-a mais morna] »

Dicionário Houaiss: «destemperar [...] 4 alterar a temperatura de um líquido, adicionando-lhe outro líquido; Ex.: destemperar água fervente».

Pergunta:

No plural de avesso, que é avessos, pronuncia-se a sílaba tónica -ves- com e aberto (é) ou com e fechado (ê)?

Eu sei que avesso se pronuncia com e fechado (ê). E no feminino, portanto avessa e avessas? Pronunciam-se as sílabas tónicas com e aberto (é) ou com e fechado (ê)?

 

Resposta:

Recomenda-se o timbre fechado da vogal e no adjetivo avesso e em todas as suas variações, quer no feminIno (avessa), quer no plural (avessos e avessas). Contudo, na locução adverbial «às avessas» o e soa aberto, como indicam as transcrições fonéticas1 o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), do Vocabulário Ortográfico do Português (Portal da Língua Portuguesa) e do do dicionário de português da Infopédia: [ɐˈvɛsɐʃ] (o símbolo ɛ marca o chamado «é aberto»). Note-se que em «às avessas» ocorre a forma avessas, que não é propriamente o feminino do plural do adjetivo avesso; na verdade, segundo as fontes mencionadas, avessas é nome feminino, usado, segundo os dicionários da ACL e da Infopédia, na aceção de «coisas contrárias».

Obs.: No Brasil, há variação. O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras atribui, em indicação de pronúncia, o e fechado à forma avessas da locução «às avessas». Contudo, um artigo do blogue DicionarioeGramatica.com (em 24/08/2017) mostra de forma fundada que a prolação com e aberto é também corrente: «Na prática observa-se que falantes do Rio de Janeiro, de São Paulo e dos estados da região Sul pronunciam “às avêssas“, enquanto ...

Pergunta:

«Petro [de Luanda][Primeiro] ´"D'Agosto" vão "duelar" esta tarde» – ouvi há dias numa rádio angolana, por regra sempre muito inventiva no léxico usado. Em Portugal, no chamado futebolês, usa-se muito o substantivo duelo. Por exemplo: no jogo tal, a equipa Y ganhou (ou perdeu) os principais duelos individuais. Alguém das minhas relações duvidou do acerto do uso do verbo, embora eu tenha opinião contrária: duelo + ar = duelar.

Estou certo ou errado?

Muito obrigado.

Resposta:

Duelar é um verbo legítimo – i.e., é palavra bem formada – no sentido de «combater». Trata-se de um verbo que é resultado da derivação ou conversão do substantivo duelo, por adjunção da terminação de infinitivo (-ar).

Duelar já tem registo dicionarístico. Por exemplo, o Dicionário Houaiss regista o verbo duelar com as seguintes aceções:

«verbo transitivo indireto e intransitivo 1 combater (duas pessoas) à mão armada, segundo regras específicas, por desafio, motivo de honra etc. Ex.: <duelou com o adversário até matá-lo> <com espadas, os mosqueteiros duelavam por profissão> transitivo indireto e intransitivo;2 Derivação: sentido figurado. confrontar (idéias, forças etc.); bater-se Ex.: <duelaram diversas vezes no tribunal> <os pilotos duelavam pela primeira e segunda posições>»

Esta definição é também confirmada pela versão eletrónica do dicionário de Caldas Aulete:

«duelar 2 v. intr. e pr. || travar duelo: Outra lenda faz os dois encontrarem-se na sombra... e se duelarem. ( Afrânio Peixoto, Maias e Estevas, p. 307, ed. 1940.) F. Duelo.»

A forma duelar pode também ser um adjetivo, com o significado de «relativo a duelo».