Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Agradecia um esclarecimento sobre a função sintática do pronome pessoal me no verso «Minha loucura outros que me a tomem» (poema "D. Sebastião", de Mensagem).

Há quem considere complemento indireto, mas tenho dúvidas.

Muito agradecida pela atenção.

Resposta:

A sequência «me a» é uma liberdade poética, porque a forma correta é a combinação pronominal ma.

Quanto a me, trata-se de um complemento indireto, visto que este pronome átono da 1.ª pessoa do singular marca a entidade humana afetada pela mudança de posse a que se refere o verbo tomar. Não se trata do complemento direto, porque esta função é preenchida por a, pronome pessoal átono de 3.ª pessoa.

A função de me fica mais clara se se operar a sua substituição pelo pronome átono correspondente na 3.ª pessoa do singular, ou seja, lhe, ao qual se atribui geralmente a função de complemento indireto: «... outros que lha tomem» (lha é a combinação dos dois pronomes pessoais átonos lhe e a; cf. Textos relacionados).

Cf. Banda desenhada francesa recria últimos dias de vida de Fernando Pessoa

Pergunta:

Numa prova de concurso a frase «As coisas a que fiz alusão são simples», o que foi considerado complemento nominal no gabarito oficial.

Minha pergunta é se não haveria uma crase no a antes do que devido à regência nominal de alusão, no caso sendo reescrita assim: «As coisas à que fiz alusão são simples".

E se a frase fosse reescrita assim ocorreria crase : «As coisas às que fiz alusão são simples»?

Grato pela resposta e parabéns pelo belo trabalho de vocês.

Resposta:

A frase correta é efetivamente «as coisas a que fiz alusão são simples», na qual a é uma preposição que rege o pronome relativo que. As duas palavras associadas – «a que» – formam o complemento nominal (ou complemento do nome) de alusão1.

Não é possível ocorrer a contração (crase no Brasil) à na frase em questão, por duas razões:

– Não se costuma empregar «a que», com o sentido de «aquela que», se esta expressão tiver um antecedente nominal (o ? à frente do exemplo assinala problemas de aceitabilidade):

(1) ?«A coisa à que fiz alusão é simples.»

Em (1), ocorre «a que», cujo artigo definido se contrai com a preposição a, que, por seu lado, faz parte da construção «fazer alusão a alguém/alguma coisa». Note-se que, ocorrendo como antecedente um nome masculino, também teria problemas a forma «ao que», que apresenta a contração ao em resultado do encontro da preposição a com o artigo definido o :

(2) ?«O problema ao que fiz alusão é simples.»

Para obter frases corretas, pode também empregar-se a locução relativa «o qual»: «a coisa à qual fiz alusão é simples», «o problema ao qual fiz alusão é simples».

– Na frase em dúvida, mesmo que fosse possível «a que» (= «aquela que») seria necessário que a concordasse com «as coisas»: «as coisas às que fiz alusão». Contudo, pelos motivos indicados em 1, deve usar-se «as quais» (OK indica frase correta):

(3) OK «As coisas às quais fiz alusão são simples.»

Tanto em (1) como em (2), é também possível empregar que, que é invariável, precedido de preposição a :

(4) «A coisa a que fiz alusão é simples.»

(5) «As coisas a que fiz alusão são simples.»

 

1...

Pergunta:

É conhecida a origem da expressão «às duas por três», que justifica o sentido que tem («subitamente»)?

Resposta:

Não foi possível encontrar fontes que identifiquem a origem precisa da expressão idiomática em apreço, que significa «inesperadamente, repentinamente» (António Nogueira Santos, Novos Dicionários de Expressões Idiomáticas – Português, Lisboa, Edições Sá da Costa, 2006).

«Às duas por três» sugere a própria imagem de uma transição repentina, mas faltam, de qualquer modo, elementos quer sobre a génese da expressão, quer acerca da sua cristalização na língua. Observe-se, mesmo assim, que textos literários a atestam, pelo menos, desde finais do século XIX:

(1) «Estava sempre a falar mal da vida alheia, à sombra da qual aliás vivia; quinze dias em casa de uma amiga, outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte, fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa» (Aluísio Azevedo, O Mulato, 1881 in Corpus do Português)

(2) «A menina fez muito bem. Uma ocasião, no baile das Nove Musas, estive às duas por três por lascar uma bolacha numa sujeita que me dirigiu uma graçola pesada.» (Joaquim José da França Júnior, Maldita Parentela, 1887, idem).

Cabe assinalar que os exemplos apresentados em (1) e (2) são ambos de autores brasileiros, o que poderia levar a pensar que a e...

Pergunta:

Existe o termo "prateleiro" como «conjunto de prateleiras ou armário com prateleiros»?

Encontro uma abonação em José Régio in "A Porta e a Chava" publicado em Almanaque Bertrand 1968, pp. 125-127, depois em Davam Grandes Passeios aos Domingos... e outros contos (Lisboa, Ed. Associados, Col. "Unibolso", s.d., pp. 139-144) e, finalmente, nas obras completas in Contos e Novelas, Lisboa, INCM, 2007, pp. 403 e sgs.

Resposta:

Não é frequente mas também não é recente o registo dicionarístico do nome prateleiro com o exato significado indicado na pergunta. Com efeito, encontra-se prateleiro como sinónimo de prateleira quer no Vocabulário Português e Latino (1712), de Rafael Bluteau (1638-1734), quer mais tarde, na 1.ª edição (1789) do chamado "dicionário de Morais". Ambas as formas, prateleira e prateleiro, denotam geralmente uma tábua horizontal (ou estante), fixa a uma parede ou a parte de um armário, na qual se colocam objetos de vária ordem (supõe-se que inicialmente fossem pratos, dada a partilha da raiz prat-).

Contudo, por metonímia, podem ainda os dois vocábulos denominar um móvel constituído por várias tábuas com a referida função (cf. prateleira e prateleiro no Dicionário Houaiss, 1.ª edição, 2001; ver também dicionário de Caldas Aulete). O uso de prateleiro nesta última aceção chamou a atenção de J. Leite de Vasconcelos, que o registou numa recolha tradicionalmente conhecida como Dicionário de Regionalismos e Arcaísmos, que hoje se encontra em linha, no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa: «prateleiro (masc.) ‘estante para pratos’. Almeirim. Vi e ouvi. 1916.»

Pergunta:

Considere-se a seguinte expressão:

«Quantas vezes ouvimos observações racistas feitas de um modo tão casual, tão inocente, que nem lhes respondemos.»

A interpretação deste segmento causou alguma polémica. Na minha interpretação, considero que, neste caso, casual significa «aleatório». Nesta linha de interpretação, o autor estaria a afirmar que muitas vezes se ouvem observações racistas aleatórias e inocentes.

No entanto, segundo a interpretação de outras pessoas, o autor teve como intenção referir que as observações racistas acontecem pontualmente, devido ao emprego do vocábulo casual. Não concordo com este ponto de vista, porque «muitas vezes» é uma expressão enfática, que salienta a frequência das observações racistas.

Poder-me-iam esclarecer acerca do significado deste vocábulo neste contexto, em específico?

Grato pela preciosa ajuda.

Resposta:

O adjetivo casual é polissémico, ou seja, pode ter vários significados. Com efeito, pode ser sinónimo quer de fortuito e aleatório, quer de ocasional e, portanto, também de pontual e «pouco frequente» (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Acresce que casual ocorre também com sentido de «informal», uso que se considera configurar um anglicismo semântico, por ser idêntico ao de casual em inglês1 (cf. dicionário de inglês-português da Infopédia).

Na frase em questão, o valor aspetual habitual da locução adverbial «quantas vezes (não...)» favorece efetivamente a leitura de casual como «fortuito», dado que interpretar este adjetivo como «ocasional, pontual, pouco frequente» seria contradizer o significado da locução. Mas a ocorrência em análise também não é incompatível com a locução se for entendida na aceção de «informal, descontraído».

Refira-se que a casual se associa ainda um outro significado que se afasta nitidamente dos acima comentados e que não é relevante para esta discussão: trata-se de quando o adjetivo se emprega como o mesmo que «relativo a caso», isto é, quando a palavra alude à categoria gramatical de caso2.

 

1 O Dicionário Houaiss observa que, como sinónimo de informal», casual «[...] é neológico e semanticamente anglicizante, registrando-se apenas no português do Brasil». Na verdade, também se regista no português de Portugal, como acontece no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, que, sem mencionar uma eventual relação co...