Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Em Jerônimo Soares Barbosa (1735-1816), Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, pág. 147, ocorre o seguinte passo:

«Todos estes nomes próprios passam, por virtude dos Artigos, a tomarem-se em sentido comum.»

Pois bem, aí, «por virtude de» equivale a «por causa de»?

Muito obrigado.

Resposta:

A locução «por virtude de» é variante «em virtude de», e ambas têm valor causal, sendo, portanto, equivalentes a «por causa», expressão que é hoje bastante corrente.

A locução «em virtude de» encontra registo em várias fontes, mas menos frequente parece a presença de «por virtude de», sobretudo em dicionários mais recentes1. A menor presença de «por virtude» na dicionarística contemporânea é correlativa do reduzido número de ocorrências da locução em textos do séculos XX e XIX, conforme evidencia o Corpus do Português, de Mark Davies. Não obstante, em séculos anteriores, observa-se que no mesmo corpus há um ligeiro aumento de exemplos de «por virtude de», o que sugere que esta é uma forma arcaica ou arcaizante de «em virtude de». Atendendo a que a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa foi escrita por uma pessoa que viveu há mais de duzentos anos, é natural que os usos aí patentes sejam algo diferentes dos de hoje.

1 dicionário da Academia das Ciências de Lisboa inclui ambas as locuções em subentrada a virtude, com a indicação de que são sinónimas, tal como se  faz no dicionário de Caldas Aulete; e o Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa de Énio Ramalho, define-as do mesmo modo, como equivalentes a «devido a» e «por causa de». Contudo, em dicionários mais recentes, a forma «por virtude de» prima pela au...

Pergunta:

Uma amiga minha chama-se Manuela mas é tratada por Manucha.  Como se chama este termo?

Não é diminutivo, não é abreviatura, será alcunha?

Peço esclarecimento, por favor.

Obrigado.

Resposta:

É um hipocorístico, isto é, trata-se de uma forma que se emprega para demonstrar carinho, fazendo maiores ou menores alterações a um nome próprio, geralmente mediante sufixos de diminutivo (ex.: Manuela > Manuelinha ou, a partir da forma popular, Manela/Manelinha) ou por redução de nomes próprios (Beatriz > Bia, Conceição > São, Joaquim > Quim, José > ).

No caso de Manucha, que é um hipocorístico estável no uso (tem, portanto, tradição), operou-se por truncação para isolar o elemento Man- de Manuela, e depois associar-lhe o sufixo -ucho/-ucha.

O Dicionário Houaiss considera que este sufixo – do latim -cŭla-, -cŭlu-, que também formava diminutivos (particŭla, donde o português partícula, por via erudita) – tem baixa frequência em português no que ao léxico comum se refere (capucho, falucho, felucho, galarucho, galucho, gorducho, machucho, mangucho, negrucho, papelucho, pequerrucho, pertucho, portucho, trancucho, trapucho).

Pergunta:

À porta de uma mercearia em Alverca lê-se num cartaz: «Há vinho da Calhandriz e pão da Arruda.»

Em conversa com alguns fregueses, constatei que é costume nas redondezas usar-se o artigo definido a (além das contrações preposicionais da e na) para fazer referência a estas duas povoações, sobretudo entre os nativos e os mais idosos.

Em todo o caso, quaisquer alusões a CalhandrizArruda (dos Vinhos) são-nos apresentadas, regularmente, e dependendo do contexto, de forma neutral.

Vejam-se alguns títulos do jornal O Mirante:«Um morto e 34 infetados em lar de Arruda dos Vinhos' (e não «'da' Arruda dos Vinhos»); ou «A Guarda Nacional Republicana emitiu um parecer de segurança negativo à instalação de duas novas caixas multibanco em Calhandriz» (e não «'na' Calhandriz»).

No entanto, e noutra edição, o mesmo jornal destaca: «Ser compositor e músico é ter uma profissão demasiado dura para não se gostar dela. Quem o diz é Telmo Lopes, [...] compositor natural da Calhandriz [....].»

Perante isto, deverão estes fenómenos linguísticos ser encarados como norma ou apenas como meros regionalismos? E qual é, na verdade, o género dos topónimos Calhandriz e Arruda dos Vinhos?

Agradeço à Comunidade Ciberdúvidas o apoio prestado, assim como a eficácia e a assertividade das vossas respostas.

Resposta:

O uso do artigo definido com topónimos sujeita-se muitas vezes ao critério da atribuição ao léxico comum (ver Textos Relacionados). Por outras palavras, se o topónimo tiver origem num substantivo comum, é previsível que a sua ocorrência tenha associado o artigo definido:

(1) Porto – «o Porto» (de porto, nome comum)

(2) Costa Nova – «a Costa Nova» (de costa, nome comum)

Sobre (1) e (2), dir-se-á ainda que são topónimos transparentes, isto é, topónimos interpretáveis por palavras do léxico comum, de uso mais ou menos corrente1. Como sempre, deve recordar-se também que há exceções quanto ao critério enunciado, pois há topónimos com origem em nomes comuns sem artigo definido associado, como acontece com os compostos de vila e castelo: «vivo em Vila Real de Santo António», «moro em Castelo de Paiva».

Examinando os casos em apreço, é de considerar que Arruda tem artigo definido, porque resulta da conversão do substantivo comum arruda (aparentemente, um fitónimo, isto é, o nome de uma planta) em nome próprio (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa). Daí que, sem surpresa, o uso corrente inclua o artigo definido: «comprei pão da Arruda».

Quanto a Calhandriz, como é pouco ou nada clara a sua relação com o vocabulário comum, diz-se que é um topónimo opaco – cujo significado não é interpretável pelo de um nome comum –, e em tal caso o que se observa é o nome empregar-se sem artigo definido. Sendo assim, «vinho da Calhandriz» seria uma anomalia ou incorreção, mas não é isto verdade. Com efeito, há que ter em ...

Pergunta:

Gostaria de saber o que significa pregão na canção "Lisboa,menina e moça"? Isto porque pregão pode-se referir às figuras típicas que percorriam as ruas dos bairros lisboetas, para reparar tachos e panelas, mas também pode fazer referência aos pregões que as varinas proferiam.

Agradeço desde já a vossa disponibilidade em ajudar.

Resposta:

A palavra pregão denomina qualquer forma de anúncio vocal associado à venda, por vendedores ambulantes,  de géneros ou produtos de qualquer tipo – de tachos e panelas à sardinha e ao carapau.

Começando por recordar os versos do famoso fado cantado por Carlos do Carmo (1939-2021):

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura

Nestes versos, ocorre o nome pregão sem referência concreta, podendo,portanto, aludir a qualquer tipo de pregão.

Os pregões podiam ser (e ainda são,os que restam) de vários tipos em função do que se vendia no comércio ambulante. Exemplos:

(1) Quem quer figos, quem quer almoçar! (hoje em desuso)

(2) Olha a fava-rica! (hoje desaparecido, porque já não é hábito preparar a fava-rica1).

(3) Quentes e boas! (para a venda de castanha assada)

(4) Olhà bolinha! (hoje corrente entre vendedores de bolas de Berlim, nas praias da região de Lisboa, durante o verão)

Encontram-se vários outros exemplos em Pregões de Lisboa Antiga.

A palavra pregão terá origem no latim praecoōnis «pregoeiro público, arauto, o que proclama, anuncia ou diz em público» (Dicionário Houaiss; ver também Infopédia). Poderia pensar-se que é um derivado de pregar, cuja primeira sílaba tem e aberto átono; se assim fosse, o vocábulo em causa soaria "prègão", também...

Pergunta:

Já nos explicaram a etimologia da palavra noite, mas conseguem explicar o fenómeno recorrente de, em línguas diferentes, a palavra noite ser mais ou menos n + oito?

Mesmo que todas venham do latim, há alguma razão para esta relação entre noite e oito ou só coincidência?

Resposta:

É uma coincidência que tem que ver com a convergência de certas sequências fónicas do proto-indo-europeu para o latim e deste para o galego-português. A etimologia fundada nos estudos de fonética e semântica históricas assim parecem apontar.

É sem surpresa que se verifica a identificação parcial entre palavras semanticamente equivalentes nas outras línguas românicas: noche/ocho (espanhol ou castelhano); nuit/huit (francês); notte/otto (italiano). Mas não se trata de uma coincidência claramente sistemática no conjunto das línguas românicas, porque em catalão nit,«noite», e vuit, «oito», ou, em romeno, noapte e opt evidenciam que a sequência em comum se estreita e conta apenas dois segmentos: -it- em catalão e -pt- em romeno.

Se se remontar à origem latina de todos os anteriores exemplos – são cognatos, isto é, palavras de línguas diferentes que evoluíram dos mesmos étimos –, tampouco a semelhança da terminação de nocte- (acusativo de nox, noctis, «noite») com octo torna conclusiva uma relação mais profunda do que a coincidência fonética. Na verdade, as raízes do proto-indo-europeu donde decorrem as palavras latinas mostram que apenas a consoante oclusiv...