Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Estou a reparar, não sem alguma surpresa, que os dicionários da Porto EditoraPriberam não contemplam o adjetivo "rócheo", que julgo ser sinónimo de rochoso. Estou a ver mal?

Deparei com este problema em virtude de ter visto o termo escrito com acento numa obra que segue a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

Leva acento, não leva? E, mais importante: o termo existe?

Resposta:

Rócheo é palavra raramente dicionarizada, mas encontra registo, por exemplo, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado.

No quadro das regras da morfologia do português, pode formar-se rócheo por derivação de rocha, tal como pétreo deriva de pedra (com pequena alteração fonética devido a interferência erudita). É verdade que raramente se encontra registo de rócheo, nos dicionários, como raras são as suas atestações.

Contudo, rócheo encontra abonação num conto de Mia Couto, "O amante" (Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos):«Depois, tombou em si, debaixo dos próprios ombros, esgotado. Ficou assim, nebulado e rócheo, durante longos momentos.»

Note-se  que o acento gráfico de rócheo, como o de pétreo, não foi alterado pela atual norma ortográfica. Por outras palavras, o sufixo -eo tem um acento tónico associado que é sempre recebido pela última sílaba da base de derivação e desde há mais de 80 anos – cf. pétreo no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 – é representado pelo acento agudo ou pelo acento circunflexo, conforme se aponta no Dicionário Houaiss:

«[-eo] o...

Pergunta:

Plataforma é uma palavra composta por palavras?

Resposta:

O intuito da pergunta parece ser o de análise morfológica do nome plataforma , e, portanto, confirma-se aqui que se trata efetivamente de uma palavra complexa. Contudo, é este um caso de palavra complexa não derivada, visto que, embora o elemento -forma se identifique com o nome forma, não existe em português item lexical com que se identifique o elemento plata-.

Do ponto de vista histórico, sabe-se que constitui um aportuguesamento do francês plate-forme com interferência semântica do inglês platform, conforme se regista no Dicionário Houaiss:

«francês plate-forme (1434 sob a f. platte fourme) 'disposição em superfície plana, (1606) superfície horizontal que serve de suporte', composto de plat 'chato, plano' e forme 'forma'; observe-se que o vocábulo em inglês platform (1535) é empréstimo ao francês plate-forme; por sua vez, o francês importou do inglês norte-americano a acepção 'conjunto de idéias que serve de apoio para apresentar uma política comum; conjunto de idéias essenciais, de objetivos, de reivindicações de um partido, de um sindicato, de um grupo', documentado em 1803 ('a plataforma do Federalismo') e, em francês em 1855; o inglês norte-americano tem ainda a acp. (1820) 'tribuna, palanque onde se fazem os discursos eleitorais'; em português, a acepção política constitui também um empréstimos ao inglês norte-americano.»

Pergunta:

Julgo que «Muro de Ferro» se escreve com iniciais maiúsculas. E «C/cortina de F/ferro»?

A dúvida surge-me porque é um conceito que envolve barreiras físicas, mas não palpáveis, digamos assim, a não ser em casos específicos, como o dito Muro de Berlim.

Eu apostaria nas maiúsculas, mas acho mais seguro pedir a vossa opinião.

Saudações.

Resposta:

Não há regra ortográfica explícita para o caso de «Muro de Ferro», o qual parece corresponder ao conceito criado por Ze'ev Jabotinsky (1880-1940), em O Muro de Ferro (Nós e os Árabes), um livro de 1923, escrito no contexto do movimento sionista. Mas, como a expressão «Muro de Ferro» tem um único referente e não se aplica a qualquer outro muro de ferro, é lícito recomendar as maiúsculas iniciais: Muro de Ferro.

Pelo mesmo critério, assinale-se que em Portugal, Cortina de Ferro – «separação política e militar que, na Europa, opôs os países comunistas aos países não comunistas» (Infopédia) – se tem escrito com maiúsculas iniciais (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, de Rebelo Gonçalves). Contudo, nos dicionários brasileiros consultados – HouaissMichaelis –, esta designação figura com minúsculas iniciais.

Pergunta:

Na frase «Ele é um tanto quanto lento», seria correto usar a expressão «um tanto quanto», e em caso afirmativo, ela seria classificada como locução adverbial?

Resposta:

A expressão mais corrente é «um tanto ou quanto», que inclui a conjunção ou e constitui uma locução adverbial.

Com esta forma é uma locução correta, como anteriormente aqui se assinalou, embora de registo lexicográfico escasso. O Dicionário de Expressões Populares Portuguesas (Lisboa, Edições D. Quixote, 1993), de Guilherme Augusto Simões, consigna-a, com o sentido de «em grau indeterminado», mas pode ser encarada como sinónima de «de certo modo», «em certa medida», «um tanto» e «um pouco», ou, mais familiarmente, «um bocado/bocadinho». «Um tanto ou quanto lento» é, portanto, equivalente a «um pouco/um tanto/em certa medida/de certo modo/um bocado lento».

Pergunta:

Acabo de ler, numa crónica de Miguel Esteves Cardoso [em Os Meus Problemas], «esta mula russa gosta que a gente o chame Arquitecto». A minha dúvida prende-se com «mula russa». Deve ser «russa» ou «ruça»? E, já agora, conhecem a origem desta expressão tão interessante, que nunca tinha lido?

Muito obrigado!

Resposta:

É engano, pelo adjetivo ruça, «(de tom) pardacento ou acinzentado»1, quando referido a animais, e «loiro, castanho-claro», na descrição da cor de cabelo.

Não se sabe ao certo a origem da expressão. No Dicionário de Expressões Correntes (Lisboa, Notícias Editorial, 2000), Orlando Neves (1935-2005) dá uma explicação mais circunstanciada, mas não deixa de a assinalar como conjetural2:

«Doutor da mula ruça (tira o chapéu e põe a carapuça) – Designa pessoa de pouco valor que se dá ares de importante, uma espécie de charlatão.

Vários autores citam uma história acerca de um António Lopes, que exercia medicina e era muito popular em Évora. Este homem estudara na Universidade de Alcalá de Henares e aí obtivera o grau de bacharel. Requereu ao rei o grau de doutor pela Universidade de Lisboa para usufruir das mesmas vantagens dos diplomados por ela. O rei acedeu depois de o ter mandado examinar pelo seu físico-mor, doutro Diogo Lopes. Consta do livro Doações a carta régia de confirmação que foi passada a 2 de Maio de 1534 e está registada na Chancelaria de João 3.º: "Dom Joham 3.º A quantos esta minha carta virem faço saber que o douto Ant.º Lopes, físico d'Évora, me apresentou ua carta do doutor Dioguo Llopez,meu físico moor, de que o theor de verbo he o seguinte: "O doutor Dioguo Llopez, comendador da Ordem de XPO (Christo) e físico moor dellRey Nosso Senhor em seus regnos, e senhorios, faço saber a quantos esta minha carta de douctorado vyrem como por Antonio Loes, físico de mulla ruça, morador en esta d'Évora, me foy apresentado hum allvara dellRey noso senhor, per sua alteza asygnado e passado per sua chancellaria, da qual o trellado he o seguinte: Eu ell Reyfa...