Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«"Ai, meu Deus!", pensou ela, já um tanto ansiosa.»

Na frase acima, está correto o uso da vírgula depois de «Ai»? E o ponto de exclamação também é de rigor?

Obrigado.

Resposta:

Em relação ao caso em questão, não há preceito rígido nem sobre a vírgula nem acerca do ponto de exclamação. O uso é sobretudo interpretativo, o que dá margem para alguma variação correta.

Assim, perfilam-se três opções, da indiscutivelmente correta à menos correta ou adequada:

1.ª  Recomenda-se, pelo menos, uma vírgula entre a interjeição e a expressão «meu Deus», que tem o duplo estatuto de interjeição e de vocativo. O facto de ser interpretável como vocativo reforça a necessidade de, pelo menos, ocorrer a vírgula à esquerda, a demarcar «meu Deus»: «Ai, meu Deus!». Neste caso, a marca exclamativa só ocorre no fim da sequência.

2.ª É possível ainda associar o ponto de exclamação seguido de vírgula: «Ai!, meu Deus.» Note-se, porém, que o ponto de exclamação parece enfatizar a expressividade de ai (p. ex., como reação súbita ou dor repentina ou aguda). O ponto de exclamação final é facultativo e até dispensável, visto sugerir ênfase atribuída em separado às duas interjeições, quando geralmente a ênfase está associada a toda exclamação (ainda que a associação da exclamação às duas expressões não seja opção descabida: «Ai!, meu Deus!» ou, ainda, «Ai! Meu Deus!»).

3.ª Não é impossível dispensar vírgula e ponto de exclamação depois de ai: «Ai meu Deus!». É solução discutível, e muito mais discutível será escrever o ponto de exclamação – «Ai! meu Deus.» Estas duas últimas opções afiguram-se como pouco ou nada recomendáveis.

Pergunta:

Desde há muito tempo tenho escutado na fala diferentes pronúncias nas vogais duplas de palavras como compreender ou cooperação, chegando a escutar variantes como "compriender" (i em vez de e) e "cuoperação" (u em vez de o na primeira vogal), mas não estou totalmente certo se estas pronúncias realmente existem ou não. Portanto, gostaria que me esclarecessem se possível qual é a pronúncia correta ou padrão destas palavras em português europeu e se existem outras variantes.

Desde já o meu obrigado e os meus parabéns pelo site e pelo vosso grande trabalho.

Resposta:

As pronúncias descritas pelo consulente existem e não são sentidas como incorretas, pois fazem parte da norma-padrão.

A pronúncia "compriender"1 é, em Portugal, a indiscutivelmente correta da palavra compreender.

Quanto a cooperação, em Portugal, pode soar "cuuperação" – com u repetido, sendo o primeiro uma semivogal –, forma que se simplifica e chega a "cuperação", apenas com um [u] articuladado, que é pronúncia até predominante2. São ambas variantes correntes e corretas.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as palavras finais de apreço.

 

1 Transcrição fonética: [kõpɾjẽˈdeɾ] (Vocabulário Ortográfico do Português). A semivocalização de e antes de qualquer vogal (átona ou tónica), incluindo e, é fenómeno bem conhecido, que se refere na descrição da fonética e fonologia do português contemporâneo. Ler "Ditongos crescentes e glides em português".

2 Transcrição fonética: [kupɨɾɐˈsɐ̃w] (ibidem).

Pergunta:

Ao consultar a ficha técnica de um programa da RTP 2 (Hamlet, peça de Shakespeare) constatei a referência ao termos dramaturgia e encenação («Dramaturgia: Miguel Graça; Encenação: Carlos Avilez»).

Tendo em conta que o dramaturgo da peça é Shakespeare – e tendo eu visto em vários dicionários que a palavra dramaturgia remete para a arte de escrever peças de teatro –, qual é o sentido de dramaturgia no contexto acima referido?

Aguardando a V. prezada resposta.

Resposta:

O trabalho de adaptar um texto original é também trabalho de dramaturgia, como sugere uma das aceções do termo dramaturgia no dicionário da Infopédia: «arte de escrever textos de ficção, guiões de filmes, histórias para televisão, etc.»

Outras fontes, de caráter mais especializado, confirmam que se usa o termo dramaturgia em referência à «[d]isciplina que reflecte sobre as regras de composição obra dramática ou, atualmente, conjunto de processos de análise aplicados ao texto teatral e à sua passagem à cena e ao público (…)» (Antonino Solmer, Manual de Teatro. Lisboa, Temas e Debates, 2003, p. 48).1

 

1 Agradeço a António Vitorino Rocha a indicação desta referência.

Pergunta:

Escreve-se numa resposta anterior à mesma questão que «Considerar a palavra Homem para representar toda a humanidade é já controverso».

Pondo de lado a questão mais ideológica e cingindo-nos à linguagem falada já desde o «homo» latino, gostaria de saber, por favor, se a palavra deve ser grafada com inicial maiúscula ou minúscula.

Obrigado.

Resposta:

Na aceção de «humanidade» ou «conjunto de todos os seres humanos», não é obrigatório grafar homem com maiúscula inicial.

A consulta de fontes normativas anteriores à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 e elaboradas em Portugal são omissas quanto ao uso de maiúscula inicial em homem (ver Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 e, de Rebelo Gonçalves, o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de 1947, e o Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966).

Mais recentemente, também não se acha menção especial a este caso. Note-se, porém, que o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) assinala que, na aceção de «a espécie humana; a humanidade», a palavra se escreve frequentemente com maiúscula.

Trata-se, portanto de uma facultatividade, ocorrendo a maiúscula para dar relevo especial à noção ou conceito associado à palavra, convergindo, aliás, com uma possibilidade que tinha preceito para as palavras que designem «altos conceitos políticos, nacionais ou religiosos» (Base XLII, Acordo Ortográfico de 1945).

Se o vocábulo homem for usado para referir um «alto conceito» filosófico, ético e político, então, não será descabido escrevê-lo com maiúscula inicial, uso que encontra numerosas atestações, tem tradição e está correto.

Pergunta:

Não encontro o significado de excramelgado.

Nos dicionários em linha InfopédiaPriberam, assim como no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, no Grande Dicionário de Cândido Figueiredo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e no Novo Aurélio Século XXI, não consta o termo em questão, e inacreditavelmente digitei a palavra excramelgado no Google, e a resposta foi termo desconhecido.

A seguir segue passo abonatório contendo a palavra em causa, na obra de José Dias Sancho, Deus Pan:

«Lavrador farto (só pra lavoira três parelhas), o excramelgado ajuntara uns vinténs com a corcha do Alentejo e, metendo em conta umas courelas que a mulher herdou para as bandas da Barracha, bem se podia garantir que era a sua uma das casas, mais aquelas da freguesia. O Manuel Tomé! Valha-o Deus… Não conheci eu outra...

Resposta:

Também não foi aqui possível encontrar registo da palavra em questão. Sendo assim, agradece-se ao consulente a abonação que entendeu partilhar com o Ciberdúvidas e com quantos o acompanham.

É vocábulo que não tem registo nem em dicionários gerais nem em obras mais especializadas1. No entanto, parece ser uma formação expressiva a partir de excomungado e palavras como escramelar («arranhar» – cf. Revista Lusitana, vol. XVII, p. 154) e outras começadas por escr- e estr-.