Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Escreve-se numa resposta anterior à mesma questão que «Considerar a palavra Homem para representar toda a humanidade é já controverso».

Pondo de lado a questão mais ideológica e cingindo-nos à linguagem falada já desde o «homo» latino, gostaria de saber, por favor, se a palavra deve ser grafada com inicial maiúscula ou minúscula.

Obrigado.

Resposta:

Na aceção de «humanidade» ou «conjunto de todos os seres humanos», não é obrigatório grafar homem com maiúscula inicial.

A consulta de fontes normativas anteriores à aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 e elaboradas em Portugal são omissas quanto ao uso de maiúscula inicial em homem (ver Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940 e, de Rebelo Gonçalves, o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, de 1947, e o Vocabulário da Língua Portuguesa, de 1966).

Mais recentemente, também não se acha menção especial a este caso. Note-se, porém, que o Dicionário Houaiss (1.ª edição brasileira, de 2001) assinala que, na aceção de «a espécie humana; a humanidade», a palavra se escreve frequentemente com maiúscula.

Trata-se, portanto de uma facultatividade, ocorrendo a maiúscula para dar relevo especial à noção ou conceito associado à palavra, convergindo, aliás, com uma possibilidade que tinha preceito para as palavras que designem «altos conceitos políticos, nacionais ou religiosos» (Base XLII, Acordo Ortográfico de 1945).

Se o vocábulo homem for usado para referir um «alto conceito» filosófico, ético e político, então, não será descabido escrevê-lo com maiúscula inicial, uso que encontra numerosas atestações, tem tradição e está correto.

Pergunta:

Não encontro o significado de excramelgado.

Nos dicionários em linha InfopédiaPriberam, assim como no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, no Grande Dicionário de Cândido Figueiredo, no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e no Novo Aurélio Século XXI, não consta o termo em questão, e inacreditavelmente digitei a palavra excramelgado no Google, e a resposta foi termo desconhecido.

A seguir segue passo abonatório contendo a palavra em causa, na obra de José Dias Sancho, Deus Pan:

«Lavrador farto (só pra lavoira três parelhas), o excramelgado ajuntara uns vinténs com a corcha do Alentejo e, metendo em conta umas courelas que a mulher herdou para as bandas da Barracha, bem se podia garantir que era a sua uma das casas, mais aquelas da freguesia. O Manuel Tomé! Valha-o Deus… Não conheci eu outra...

Resposta:

Também não foi aqui possível encontrar registo da palavra em questão. Sendo assim, agradece-se ao consulente a abonação que entendeu partilhar com o Ciberdúvidas e com quantos o acompanham.

É vocábulo que não tem registo nem em dicionários gerais nem em obras mais especializadas1. No entanto, parece ser uma formação expressiva a partir de excomungado e palavras como escramelar («arranhar» – cf. Revista Lusitana, vol. XVII, p. 154) e outras começadas por escr- e estr-.

Pergunta:

Gostaria de saber se para além das vibrantes simples – vibrante simples alveolar e vibrante simples retroflexa –, existem outros róticos em posição final de palavra no português de Portugal.

É que posso ouvir um r estranho nalguns portugueses que parece aspirado, por exemplo, nas palavras melhor, mulher, ou assibilado, por exemplo, na palavra sempre, quando o e átono final não é pronunciado.

Caso existam, também gostaria de saber, por favor, que símbolos do Alfabeto Fonético Internacional representam estes róticos.

Faço a pergunta, porque a ocorrência destes sons no português de Portugal não está descrita na bibliografia de consulta essencial para o estudo das diferentes variedades da língua portuguesa que existem em Portugal.

Fico à espera da sua resposta, que antecipadamente agradeço.

Resposta:

Sobre a consoante vibrante simples – ou seja, um rótico, termo usado nos estudos especializados para referir as consoantes vibrantes1 – do português de Portugal, sabe-se, de facto, que há variação na sua pronúncia. Contudo, parecem escassas as descrições que apontem para a articulação aspirada ou assibilada dessa vibrante – sem isto querer dizer que não existam.

Geralmente, trata-se de uma consoante que pode ocorrer em quatro posições:

– entre vogais: nora;

– depois de consoante oclusiva ou fricativa (labiodental)2 e antes de vogal: cruel, gruta, dentro, medronho, sempre, abrir, fresco, livre;

– entre vogal e outra consoante: corta;

– ou, ainda, a fechar palavra – mar.

Em Portugal, esta consoante tem correspondido geralmente a uma vibrante alveolar simples (símbolo fonético [ɾ]), igual ou muito semelhante à que se ouve em espanhol, quando o r é intervocálico (para, ahora). Mas regionalmente – e, com maior frequência, entre falantes mais jovens –, esta consoante é produzida como vibrante simples retroflexa (símbolo fonético [ɽ]), a qual soa próxima do r

Pergunta:

Podemos considerar a forma fadigado já como um arcaísmo, dada a prevalência do uso de fatigado?

Aliás, qual dos termos é mais antigo: fadiga ou fatiga?

Obrigado.

Resposta:

As formas fadigado e fadigar serão arcaísmos, tendo em conta que têm pouco ou nenhum uso, suplantados que parecem ter sido no uso atual por fatigado e fatigados. Mas não são casos lineares. Por outras palavras são arcaísmos que exigem certo matiz na sua interpretação histórica.

Fadigar está atestado desde o século XV e parece ser a forma romance previsível pela sonorização do t latino intervocálico (fatigare).1 Contudo, fatigar tem atestações do século XIII, o que pode ser surpreendente, porque, se for palavra patrimonial, isto é, se for palavra principalmente transmitida por via popular, já deveria exibir uma dental vozeada – [d].

Parece, portanto, que, por uma razão, que, para já, não se consegue apurar desde a Idade Média, o verbo e o nome respetivo têm duas variantes, uma mais inovadora (fadiga, fadigar, românicas) e outra mais conservadora (fatiga, fatigar, ainda latinas). É possível (não se encontraram fontes que o confirmassem) que nestes itens tenha havido intervenção erudita, por exemplo, por via do latim eclesiástico.

Fadiga é, portanto, o nome que representa essa forma medieval inovadora (em relação ao latim). Contudo, quando se trata do verbo, usa-se hoje fatigar, cujo particípio passado é fatigado, que ocorre como adjetivo («gente fatigada»). Trata-se, portanto, de formas divergentes que se fixaram no uso lexical, muito embora fossem concorrentes em fases mais antigas da língua.

 

1 Ver Dicionário Houaiss. Na passagem do lat...

Pergunta:

«Certo momento, o fumo estava perto do chão e entrámos em casa.»

Relativamente à frase apresentada, agradecia que me esclarecessem se é possível usar-se a expressão temporal «certo momento».

Obrigado.

Resposta:

O uso de «certo momento» sem preposição no contexto apresentado é discutível. Correto é, sem dúvida, dizer e escrever, por exemplo,  «a certo momento, o fumo estava no chão e entrámos em casa», como frase que faça parte de uma narrativa.

As expressões mais correntes são «a certo momento», «em certo momento» ou «num certo momento», podendo certo alternar com dado, conforme se atesta no Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, de Énio Ramalho, ou no Corpus do Português (CP), de Mark Davies:

(1) «A dado momento, o diplomata lembrou os compromissos que tínhamos assumido anteriormente» (Énio Ramalho, op. cit.).

(2)«Em certo momento, porém, os olhos de Alberto enxergaram algo de mui estranho, atrás do canavial» (Ferreira de Castro, A Selva, 1967, in CP).

(3) «Num certo momento um canto estridente de pássaro caiu no silêncio e Antonio abriu os olhos [...]» (António Olinto, Sangue na Floresta, 1992, in CP).

Locuções alternativas são «a certa altura» e «a dada altura».

Também se registam as locuções «a partir de/dum certo momento» e «até (um) certo momento» (cf. CP).