Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Já ouvi vários professores de Português para estrangeiros explicarem que o R carregado é gutural e comparam-no com o castelhano dizendo que este não o é. Inclusive tenho visto videos no YouTube a exemplificarem como se deve pronunciar o tal erre gutural.

Também uma minha professora de inglês que dava aulas de português para estrangeiros me explicou que muitos dos seus alunos não conseguiam fazer o tal erre (gutural). Ou seja, ela ensinava esse erre como o R português de referência.

Para mim esse erre é um regionalismo que tem crescido em Lisboa e nos meios de comunicação social. Para mim o R é alveolar. Estou errada?

Obrigada

Resposta:

O erre em causa é historicamente uma consoante vibrante múltipla apical (também se diz alveolar), mas hoje é cada vez mais frequente pronunciá-lo como erre "gutural", isto é, como vibrante múltipla uvular ou velar.

Trata-se de duas formas de pronunciar o chamado "r forte", que estão corretas. O "r forte" – o que ocorre em rato e carro, portanto como consoante que começa sílaba (ataque silábico) – é historicamente uma vibrante múltipla apical (isto é, o ápice da língua vibra contra os alvéolos dentais). Isto mesmo é confirmado por Paul Teyssier, na sua História da Língua Portuguesa (Edições Sá da Costa, 1982; mantém-se a ortografia do original):

«O português sempre possuiu, como o espanhol, uma oposição fonológica entre um /r/ brando (uma vibração) e um /r̄/ forte (várias vibrações em posição intervocálica; ex.: caro e carro. Nas outras posições existe na língua apenas um fonema, relaizado como [t] (ex.: três, parte) ou como [r] (ex.: ramo, melro, genro, Israel). Até uma data recente o ponto de articulação era, nos dois casos, apical: aponta da língua batia uma vez para [r] e várias para [r̄]. É a pronúncia actual do espanhol. No decorrer do século XIX, porém, surge uma articulação uvular do [r̄] forte, bastante semelhante à do francês, embora mais apoiada. Alguns falantes chegam a realizar esta consoante como constritiva velar surda, muito próxima do jota espanho. O [r] simples, ou brando, mantém a sua articulação apical. Em 1883, Gonçaves Viana assinala em Lisboa a nova articulação do [r̄]; considera-a, no entanto, variante individual. Em 1903, o mesmo foneticista observa que ela "se espalha progressivamente pelas cidades", mas ...

Pergunta:

Será possível ao Ciberdúvidas saber se a origem da palavra cara-metade (um dos cônjuges em relação ao outro) é mitológica?

E em que circunstâncias entrou este substantivo na língua portuguesa? Não encontrei respostas a estas questões em nenhum dicionário que consultei.

Ainda sobre esta designação, será o português a única língua que tem esta palavra formada de cara + metade?

Exemplos: inglês, better half; francês, ma moitié1, âme sœur; espanhol, alma gemela; italiano, anima gemella, etc.

 

1 Ver "Âme soeur" na Wikipédia e "Ma moitié" em Omnilogie

Resposta:

A palavra cara-metade não é uma criação portuguesa. Na verdade, terá surgido em contexto erudito, talvez de língua francesa, donde passou ao castelhano e ao português. É também muito provável que a expressão reflita certa visão mitológica sobre o par amoroso ou conjugal.

Apesar dos registos dicionarísticos1, as entradas de cara-metade não facultam informação histórica. Sendo assim, impõe-se a pesquisa em coleções textuais que abranjam várias épocas, como é o caso do Corpus do Português (Mark Davies), cuja secção histórica permite observar que a atestação mais antiga é de 1845, de uma obra intitulada As Casadas Solteiras, do escritor brasileiro Luís Carlos Martins Pena (1815-1848):

(1) «Ora, já não posso aturar a minha cara-metade. O que me vale é estar ela há mais de duzentas léguas de mim.»

Contudo, importa assinalar que, em espanhol, se regista a expressão equivalente cara mitad, por exemplo, no dicionário da Real Academia Espanhola (DRAE). O significado é o mesmo que em português, como confirma Xavier Pascual López (Fraseología española de origen latino y motivo grecorromano, Universidade de Lérida, 2012, p. 239)2:

«Asimismo, se documenta la locución nominal cara mitad (‘marido o mujer, consorte’, DRAE s. v. mitad), en la que se reproduce [la imagen de un único ser (esférico, icono de la perfección) dividido en dos partes que, aunque puedan encontrar parejas similares, sólo pueden encajar con su mitad originaria] y cuyo sentido se restringe al matrimonio, incidiendo – conforme también a la moral cristiana – en que la pareja con...

Pergunta:

Qual é o feminino de mestre-escola?

Muito obrigada desde já.

Resposta:

Dado que é legítima a forma mestra como feminino de mestre (cf. Vocabulário da Língua Portuguesa, 1966, de Rebelo Gonçalves, e dicionário da Academia das Ciências de Lisboa), o feminino será mestra-escola, forma que é confirmada pelo Dicionário Priberam.

O termo mestre-escola constitui uma denominação antiga para um professor do 1.º ciclo do ensino básico (antes chamado «ensino primário»).

Pergunta:

Nesta frase «Nas capelas pendiam as armações de paninho negro (...); ao centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso morrão, estava a eça, com o largo pano de veludilho cobrindo o caixão do Morais, (...)» (Eça de Queirós, O Crime do Padre Amaro, capítulo XI, pág. 195 da editora Livros do Brasil, 2013) –  o que significa "eça"? Ou é uma gralha ortográfica?

Resposta:

Escreve-se essa (há também registos de eça), com o significado de «estrado, catafalco» e «cenotáfio»1.

Catafalco significa «estrado alto sobre o qual se coloca o ataúde ou a representação de um morto a quem se deseja prestar honras».

Cenotáfio define-se como «túmulo ou monumento fúnebre em memória de alguém cujo corpo não jaz ali sepultado; túmulo honorário».

1 Fontes: InfopédiaDicionário Priberam e Dicionário Houaiss.

Pergunta:

Gostaria de saber o significado do seguinte proverbio: «três vezes na cadeia é sinal de forca».

Resposta:

Trata-se de um provérbio alusivo a quem é teimoso ou reincidente num erro, a ponto de se tornar um caso desesperado.

Uma ligeira variante tem registo, por exemplo, no Livro dos Provérbios Portugueses (Lisboa, Editorial Presença, 2003), de José Ricardo Marques da Costa: «Três vezes à cadeia é sinal de forca.»

Em fontes brasileiras, o provérbio aparece, por exemplo, na Revista do Arquivo Municipal (volume 38, 1937, p. 30), numa série relacionada com uma área temática identificada como "Experiência, opinião, tenacidade, contumácia".

 

N. E. (30/01/2022) – O consulente Manuel Malheiros enviou o seguinte comentário explicativo, que se agradece: «[O provérbio relaciona-se com] "ao fim das três tem vez". Vem da norma medieval odiosa que condenava à morte quem cometesse três furtos, fosse qual fosse o valor e as condições; por exemplo, [o furto] de três galinhas do mesmo galinheiro, que podiam ser considerados três furtos. Procurou evitar-se esta aberração criminosa através da teoria do crime continuado, que através da doutrina da