Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Referente aos antropônimos germânicos terminados em -ulfo, há alguma prescrição para que sejam registrados sem acento? Ou será que deveríamos utilizar? Me intriga, pois já me ocorreu de notar casos de uso e desuso do acento, muitas vezes no mesmo nome.

Lembro-me imediatamente de Ataúlfo, o segundo rei visigótico conhecido, cujo nome é relativamente bem documentado com acento, embora haja oscilação (vide verbete Decadência e Queda do Império Romano no Ocidente, na Infopédia, que oscila entre ambos no mesmo texto).

Há, claro, os casos de adaptação com -o-, como Rodolfo, mas é uma incógnita para mim acerca dos muitos -ulfos conhecidos, sobretudo dos fins da Antiguidade e Idade Média.

A título de comparação, alguns destes germânicos citados em grego são acentuados (cf. Αριούφος; Ἰνδούλφος; Αταούλφος).

Agradeço de antemão.

Resposta:

A prescrição existente é a que decorre da ortografia e encontra-se formulada no n.º 2 da Base X do Acordo Ortográfico:

«As vogais tónicas/tônicas grafadas i e u das palavras oxítonas e paroxítonas não levam acento agudo quando, antecedidas de vogal com que não formam ditongo, constituem sílaba com a consoante seguinte, como é o caso de nh, l, m, n, r e z: bainha, moinho, rainha; adail, paul, Raul; Aboim, Coimbra, ruim; ainda, constituinte, oriundo, ruins, triunfo; atrair, demiurgo, influir, influirmos; juiz, raiz, etc.»

Sendo assim, e atendendo aos casos de Coimbra e influirmos, em que as sequências -oim- e -uir- não têm acento gráfico e se pronunciam com hiato vocálico (-o-im-, -u-ir-), presume-se que Ataulfo também não tem de exibir acento, nem mesmo para evitar a leitura de au como ditongo. O mesmo acontece com outros antropónimos e topónimos com a mesma origem: Adaulfo, Atanaulfo, Farailde, Failde (cf. Revista Lusitana). Detetam-se de facto registos com acento, mas tudo indica que são ou erros ou gralhas.

Quanto às formas gregas referidas pelo consulente, não são elas relevantes para este caso, porque as regras ortográficas são bastante diferentes.

Sobre a análise etimológica de Ataulfo – que tem Adolfo como cognato (do alemão, pelo francês) e variantes na origem de topónimos como

Pergunta:

Gostaria de saber como é que a pronúncia do "e" átono, que era pronunciado como "i", passou a ser pronunciado como /ɨ/.

Também gostaria de saber se esse é um fenómeno que ocorre com todos os is átonos, e não somente os que derivam dum "e" átono.

Em galego-português, ou até mesmo no período pré-clássico, o "e" átono era registrado, na escrita, como um "i", devido a harmonização vocálica, processo que ainda acontece no Brasil, como é possível observar em palavras como "pepino" antes também escrita como "pipino", e até mesmo quando eram nasais, como em "mentir" (mintir), "mentira" (mintira), "ensinar" (insinar), que aparecem escritas assim até em Os Lusíadas.

Sempre me pergunto como é que uma mudança tão grande como essa foi "desfeita", e o "e" que tinha passado para um "i" é agora um "ɨ", e no caso das nasais, voltou a ser pronunciado como "e".

Resposta:

Não é seguro aceitar que o e átono era geralmente pronunciado como i no português anterior aos começos do século XVIII.

O que se infere é que à data do começo da colonização deveria existir importante variação no sistema de vogais átonas, oscilando entre a assimilação (processo que se conservou de certo modo no Brasil – daí, os casos de "minino" e "pipino") e o que já seria a neutralização vocálica que é hoje típica do português de Portugal1.

É também importante lembrar que os segmentos [i] e [ɨ] são ambas vogais altas e que, no contexto fonológico do português de Portugal, o [i] pode também encontrar-se em posição átona, eventualmente contrastando com [ɨ], em pares como rimar/remar (r[i]mar/r[ɨ]mar). Esta relação de contraste entre vogais com importantes afinidades não é inédita nas línguas do mundo e pode encontrar paralelo, por exemplo, no russo: entre o i que palataliza consoantes (muitas vezes grafado и, como em радио, «rádio») e o i que não opera esse fenómeno, realizável como [ɨ] (grafado ы como em волы, «bois»)2.

Não se trata, portanto, de uma «mudança tão grande», mas muito provavelmente de uma tendência que acabou por se tornar sistemática apenas no português de Portugal.

 

1 Sobre a pronúncia de -e átono final e e-/-e- pretónicos, ver Paul Teyssier, História da Língua Portuguesa, Edições Sá da Costa, 1982, pp. 57-63.

2 Ver "

Pergunta:

Enquanto estava a colaborar com uma imobiliária, surgiu uma dúvida linguística recorrente: qual é a forma correta?

«O imóvel fica EM Pousa» ou «O imóvel fica NA Pousa»?

Pousa é uma freguesia do concelho de Barcelos.

Existe alguma regra que deva ser aplicada em situações semelhantes?

Obrigado e bom trabalho para a equipa do Ciberdúvidas.

Resposta:

É possível dizer e escrever das duas maneiras, com uma diferença quanto ao nível de língua:

(1) «Vivo na Pousa.» – nível corrente, registo informal ou neutro.

(2) «Um novo posto de saúde abriu em Pousa.» – registo formal

É curioso verificar que na própria página da junta de freguesia de/da Pousa há oscilações.

Não há propriamente uma regra que permita prever infalivelmente o uso do artigo definido. Há, no entanto, critérios históricos: se o topónimo tem origem num nome comum, então costuma usar-se o artigo definido, como acontece com «o Porto» ou «a Póvoa de Varzim» ou, ainda, «a Fuzeta» (com provável origem em foz). Mas há numerosas exceções a este critério, como os Textos Relacionados apontam, por vezes no intuito de dar maior formalidade e prestígio ao uso do topónimo  – cf. «estou na Figueira da Foz» vs. «estou em Figueira de Castelo Rodrigo».

No caso de Pousa, é de esperar que o artigo definido fizesse parte do uso deste topónimo, pois é muito provável que este provenha do nome comum pousa, no sentido de «lugar onde se faz uma parada para descansar, depositando a carga» (Dicionário Houaiss; ver também o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado). Contudo, como foi dito, também se registam usos sem artigo definido, plausivelmente, com a intenção de prestigiar este nome.

Pergunta:

Beijoca: de onde vem a terminação da palavra em si?

Li em alguns dicionários impressos que é beijo + -oca ou derivação regressiva do verbo beijocar...

Mas não é assim que funciona a etimologia em casos desse tipo! Não tenho a completa razão com isso?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Beijocar é um verbo derivado de beijoca. Por sua vez, beijoca deriva de beijo, pela sufixação de -oca.

O sufixo -oca «ocorre como diminutivo (às vezes, como aumentativo não raro com valor afetivo, às vezes com valor pejorativo), quase sempre no feminino» e «quando não, como feminino de -oco /ô/» (Dicionário Houaiss). Exemplos: perna > pernoca; banho > banhoca; dorminhoco/dorminhoca. O sufixo -oco, com -oca, remonta ao sufixo -occus, do latim hispânico.

Note-se que há palavras com a terminação -oca com outra origem, no elemento de origem tupi -poca, – associado ao significado de «barulhento, ruidoso, estridente» e que se regista «do sXVI em diante: anhumapoca, anhupoca, araçaripocaarapoca [...]» (ibidem). O Dicionário Houaiss acrescenta ainda que -oca desenvolve «modernamente, no Brasil, certa conotação diminutivo-depreciativa ou afim, normalmente no feminino, mas ocasionalmente comum de dois gêneros»; exemplos: beiçoca, beijoca, belezoca, boboca, ...

Pergunta:

Qual a maneira correta de escrever o nome desse município baiano, "Xique-xique" ou "Xique-Xique"?

Resposta:

Deve escrever-se Xique-Xique, conforme o registo do Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras.

A forma Xique-Xique, nome de uma cidade do estado da Bahia, é igualmente a que consta do portal da prefeitura desta cidade e das páginas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (em 2018).

O Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, consigna a forma "Xiquexique" – que não parece ter uso –, relacionando-a com o nome comum xiquexique, de origem obscura, talvez tapuia, e que tem vários significados, mas que ocorre como «designação comum a vários subarbustos ou ervas lenhosas do gênero Crotalaria, da família das leguminosas, subfamília papilionoídea, que ocorrem, em sua maioria, no Brasil e são frequentemente uasadas como adubo verde» (Dicionário Houaiss). Observe-se, porém, que esta etimologia requererá uma pesquisa mais aturada, de modo a compreender como uma planta, neste caso, um arbusto, pôde motivar o nome de um núcleo de povoamento.