Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Oiço tantas vezes o verbo "carnavalar" que acabo por usá-lo: «Vamos carnavalar no sábado?» Também oiço o verbo "carnavalejar". Em ambos os casos, o sentido é «brincar ao Carnaval».

A minha dúvida é: algum destes verbos existe de facto ou são apenas de uso coloquial, como "cafezar" e outros que tais?

Resposta:

Carnavalar e carnavalejar serão variantes coloquiais de um verbo de morfologia instável, que encontra alguns registos dicionarísticos sob a forma carnavalear.

O dicionário de Caldas Aulete (versão eletrónica) consigna a entrada carnavalear como verbo intransitivo com a indicação de ter pouco uso e significar «brincar no Carnaval». O Grande Dicionário da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 1991), de José Pedro Machado, também acolhe carnavalear e atribui-lhe o mesmo significado a par de outro genérico: «foliar na época do carnaval»; «divertir-se ruidosamente; foliar».

Trata-se de um verbo derivado de Carnaval, e as variantes em questão – carnavalar e carnavalejar –, que estão bem formadas, não parecem ter tradição de uso continuado e consistente no passado, a julgar pela sua ausência, por exemplo, no Corpus do Português, de Mark Davies. Contudo, nesta mesma fonte, identifica-se uma ocorrência de carnavalear, numa obra do escritor brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913):

(1) «Às duas da madrugada, a Cantagalense deixou-se ficar no hotel, e os outros foram carnavalear um pouco aos " Te­nentes do Diabo "» (Memórias de um Condenado, 1882, reeditado em 1902, como A Condessa Vésper)

Refira-se que o esp...

Pergunta:

É muito comum encontrarmos palavras estranhas nas músicas, especialmente influenciadas pelo regionalismo, mas também por explicações simples e muitas vezes cômicas.

Gostaria de conhecer a explicação para a palavra "hotomote" na música A tua sina de Clementina de Jesus (1901-1987):

«Lá no morro de São Carlos
"existe" dois hotomotes
de perto conhece os fracos
de longe conhece os fortes.»

Obrigado.

Resposta:

Pode tratar-se de uma deturpação de holofote, como sugere a transcrição deste samba numa página da Internet intitulada Letras de Samba Rock, com a data de 28 de junho de 2012 (consultada em 17/02/2022), que se reproduz integralmente a seguir:

Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra que você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo
Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra que você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo
Lá no morro de São Carlos
Existem dois holofotes
De perto conhece os fracos
De longe conhece os fortes
E quando tudo acabar
É de longe percebida
Os malandros já conhecem
Tua fama de atrevida
Mulher, mulher.
Mulher é tua sina
É de viver no meio vagabundo
Não sei pra você nasceu assim
A tua vida é a desgraça do mundo.

 

Outra possibilidade é a de que seja uma deturpação de autómato. Mas a referência geográfica que é feita na letra – ao Morro de S. Carlos – pode tornar mais plausível holofote como alusão a alguma forma de iluminação pública.

Fica o registo áudio do samba em apreço, que fazia parte do álbum Gente da Antiga (1968) e foi interpretado por Clementina de Jesus (1901-1987), acompanhada por João da Baiana<...

Pergunta:

Se chamamos «plural majestático» ao que usamos quando nos dirigimos, por exemplo, a um rei, como podemos chamar ao plural que se usa, frequentemente, em comunicação científica?

Muito obrigada.

P.S.: Aproveito para agradecer este 25 anos de Ciberdúvidas. Recorro muitas vezes à vossa plataforma! Obrigada!

Resposta:

Pormenorizando o que se diz aqui  e aqui, torna-se necessário precisar que o nós em questão é classificável como «plural de modéstia», como propõem, por exemplo, Celso Cunha e Lindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Edições João Sá da Costa, 1984, p. 285):

«Para evitar o tom imperativo ou muito pessoal de suas opiniões, costumam os escritores e os oradores tratar-se por nós em lugar da forma eu. Com isso procuram dar a impressão de que as ideias que expõem são compartilhadas pelos seus leitores e ouvintes, pois que se expressam como porta-vozes do pensamento colectivo. A este emprego da 1.ª pessoa do plural pela correspondente do singular chamamos PLURAL DE MODÉSTIA

Os mesmos autores apresentam logo depois dois exemplos de textos das áreas das Humanidades:

(1) «Algumas [cantigas], mas poucas, foram por nós colhidas da boca do Povo.» (Jaime Cortesão, Cancioneiro Popular, 1914, p. 12)

(2) «As ocupações oficiais em que nos achamos desde 1861 a 1867, quer nas repúblicas de Venezuela, Equador, Peru e Chile, quer nas próprias Antilhas, não nos deram muita ocasião de pensar em semelhante edição, para a qual até aí nos faltavam auxílios.» (F. Adolfo Varnhagen, Cancioneirinho de Trovas Antigas Colligidas de um Grande Cancioneiro da Bibliotheca do Vaticano, 1870, p. 9)

É uso possível numa comunicação científica, como Maria Fernanda Bacelar do Nascimento na Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020...

Pergunta:

Tenho lido (e também li numa das respostas do Ciberdúvidas, sobre o verbo atestar) a formulação «até acima».

Pergunta: não deveria ser «até cima»?

Por exemplo: «Ligou os joelhos até acima», vs. «cima».

Obrigado.

Resposta:

São duas possibilidades corretas.

Considerando que se diz e escreve corretamente «até abaixo», associando, portanto, a preposição até com o advérbio abaixo, não se vê razão para considerar incorreta a sequência «até acima», também formada pela mesma preposição e pelo advérbio acima.

Contudo, é também verdade que, a partir de locuções como «de cima» e «por cima», parece legítimo isolar cima e formar «até cima». Esta possibilidade, porém, não encontra paralelo a partir de «de baixo» (com movimento, como em «o barulho vem de baixo», por oposição a debaixo, meramente locativo, como acontece em «está debaixo») e «por baixo», porque destas locuções não se deduz "até baixo".

A consulta de um corpus histórico (Corpus do Português, de Mark Davies) permite concluir que «até cima» tem ocorrências mais antigas – do século XVI em adiante – do que «até acima» – apenas atestado a partir do século XIX.

Mesmo assim, dificilmente se conclui daqui que «até cima» é hoje mais correto que «até acima», primeiro pela razão atrás exposta e, depois, porque a associação de até a acima tem história de uso, mesmo no âmbito literário.

Pergunta:

Na designação de instituições com o nome de um patrono, aceitam-se como corretas, por exemplo, «Hospital de Egas Moniz», em vez de «Hospital Egas Moniz»?

Resposta:

A inclusão da preposição de é opcional, quando o nome classificador da instituição ou serviço (e das respetivas instalações – geralmente um edifício) é identificado por um nome próprio de pessoa. Diz-se e escreve-se corretamente «Hospital Egas Moniz», mas também é legítima a denominação «Hospital de Egas Moniz», que é, aliás, a forma por que este equipamento se apresenta em páginas oficiais da Internet.

A questão da presença ou omissão da preposição em nomes de arruamentos e instalações a que se associam nomes próprios suscitou alguma discussão em Portugal, entre os gramáticos de tradição prescritiva, sobretudo durante a primeira metade do século XX. É o caso de Vasco Botelho de Amaral (1912-1980), que, focando os nomes de ruas, dedicou ao tema dois artigos importantes no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português (1958). Com bons argumentos e apoiado noutros autores da gramática prescritiva, Botelho de Amaral aceitava como corretas ambas as construções – com e sem preposição –, observando [ibidem, s.v. "De (sua omissão)"; mantém-se a ortografia do original]:

«Tem-se discutido muito sobre como será melhor escrever: Rua Luís de Camões, ou Rua de Luís de Camões. A prática da supressão do conectivo de está muito divulgada, sobretudo quando o substantivo determinante é nome de rua, praça, largo, avenida, livraria, escola, colégio, liceu, teatro, hotel, pensão, café, etc. [...]

O autor apoia-se no funcionamento do latim, língua em se associava ao classificador (rio, cidade, terra) o nome próprio como aposto, ocorrendo os dois termos no mesmo caso gramatical: dizia-se, portanto, urbs ...