Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a diferença entre estrutural e estruturante?

Resposta:

Muito sinteticamente, pode dizer-se que estrutural ocorre no sentido de «(aquilo que é) relativo a uma estrutura» (significado relacional), enquanto estruturante se usa na aceção de «que dá estrutura, que determina uma estrutura» (sentido agentivo ou causativo).

Este contraste pode ser confirmado pela consulta de vários dicionários – por exemplo, do Dicionário Houaiss, onde estrutural tem o significado básico de «relativo a uma estrutura qualquer» e estruturante, o de se aplicar àquilo «que favorece ou determina a estruturação».

Mesmo assim, convém assinalar que os dois adjetivos podem chegar a ser sinónimos, pois podem ocorrer ambos na aceção de «essencial, fundamental» (cf. dicionário da Infopédia).

Pergunta:

Por que se diz a expressão «boa esperança»? Dessa forma, como «Nossa Senhora da Boa Esperança», «fazenda Boa Esperança», etc.?

O uso do adjetivo se dá por ênfase, já que se espera que toda esperança seja boa, sendo estranho ter-se uma «má esperança»?

Muito obrigado, desde já.

Resposta:

Será preciso ir à história do português, quando esperança podia assumir um valor mais neutro, no sentido de «expetativa» ou «perspetiva», conforme se pode depreender dos seguintes exemplos, um quinhentista e outro seiscentista:

(1) «E entre algũas cousas que o Catual fez, de que Vasco da Gama teve dele boa esperança pera seus negócios, foi mandar a este Monçaide que se não apartasse dele [...]» (João de Barros, Décadas da Ásia. Década Primeira, Livros I-X in Corpus do Português).

(2) «O nosso correio pode chegar de amanhã por diante, e entretanto nos tem pendentes com pouco alvoroço; porque o passado não dava premissas de alguma boa esperança, sendo perdida a de S. A. se querer coroar» (Padre António Vieira, Cartas, idem).

É de notar igualmente que a expressão «boa esperança» se fixou na toponímia, como bem ilustra o conhecidíssimo caso de «cabo da Boa Esperança», que remontará à segunda metade do século XV, conforme relata o já citado João de Barros (Décadas, I, III, citado por José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2003, s. v. Boa Esperança), ao referir-se ao episódio da navegação de Bartolomeu Dias até ao extremo sul do continente africano em 1488:

«Ao quall (cabo) Bartholomeu Diaz e os da sua companhia per causa dos perigos e tormentas que e...

Pergunta:

«Tem que ter tinta na caneta.»

Este ditado vem de onde?

Resposta:

É uma expressão que parece bastante recente e que encontra uma versão mais completa em «não basta ter caneta, tem de ter caneta» (ou numa versão mais popular «tem que ter caneta»), como sugere o seguinte exemplo:

(1) «A função dele é criar uma base governista. E, para criar a base governista, não basta lábia, tem que ter caneta. Não basta ter caneta, tem que ter tinta na caneta.» ("Um projeto para 20 anos", Crusoé, 27/09/2019)

Pelo contexto, depreende-se que a frase feita – um aforismo, isto é, uma frase curta, que encerra uma reflexão genérica com alcance prático ou moral – encerra uma imagem do exercício do poder, em que «caneta» funciona como metonímia do ato de assinar decretos, ou seja, como instrumento que inscreve atos de autoridade. A expressão pode, portanto, ser entendida como uma advertência a quem tem de saber encontrar meios para alcançar a sua ambição. O dito parece, portanto, próximo de «não se fazem omeletes sem ovos», literalmente equivalente a «é impossível produzir sem matéria-prima» (Madeira Grilo, Dicionário de Provérbios, 2009) ou, mais prosaicamente, «as coisas não nascem do nada».

Pergunta:

A propósito da pergunta publicada 19/04/2022 [sobre a grafia de dele, referido a Deus], não seria mais simples, e certamente mais elegante, simplesmente transferir o destaque em maiúscula para a letra inicial, suprimindo o apóstrofo?

«Em Deus cremos, e Nele recai toda a nossa esperança.»

Obrigado.

Resposta:

No contexto da atual norma ortográfica, não parece haver preceito claro quanto a essa possibilidade mais «elegante» – a de grafar em maiúscula a letra correspondente à preposição.

O que de facto se prevê – conforme o preceituado são duas situações:

a) a não contração da preposição com o pronome: «em Ele»;

b) a contração, mas escrita com a letra inicial da preposição seguida de um apóstrofo  e de um pronome com incial maiúscula.

Obviamente que, no caso de contigo e consigo reflexo, não se aceitam formas como " conTigo" ou "conSigo". Quanto à possibildiade de escrever convosco com maiúscula, também não parece concretizar-se, quando se leem documentos relacionados com matéria religiosa – por exemplo:

(1) «Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição [...]» ("Homilia do Papa Francisco na vigília pascal", Ecclesia, 11/04/2020).

Em (1), convosco ocorre com maiúscula inicial no começo de frase, o que não é relevante para daí se inferir a generalização a todas as formas dessa forma pronominal. Na verdade, na frase logo a seguir, ocorre convosco com minúscula inicial e, portanto, a sugerir que nas formas em que se associam preposições e pronomes não é hábito escrever com maiúscula a letra inicial correspondente ao morfema preposicional.

Pergunta:

Por que o i e o j possuem pinguinhos?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Sobre o popularmente chamado "pingo" ou "pinguinho" (em Portugal, "pintinha") sobre o i e o j, aceita-se que este ponto sobrescrito surgiu no contexto da escrita cursiva para distinguir esta de outras letras. É o que se pode ler, por exemplo, na versão em linha da Enciclopédia Britânica:

«A letra minúscula i é somente uma forma mais curta da maiúscula. O ponto aparece pela primeira vez em manuscritos datados por volta do século XI e era usado para distinguir a letra e ajudar na sua leitura em palavras em que o i estava na proximidade de letras como n ou m (por exemplo, inimicis). O ponto tomava frequentemente a forma de um traço. Nos manuscritos medievais tornou-se habitual distinguir um i inicial ou destacado alongando-o abaixo da linha, daqui decorrendo a diferenciação entre i e j. A letra inicial, quase sempre mais comprida, tinha muitas vezes o valor de consonante, o que levou j a representar uma consoante, e i, a vogal. Até ao século XVII, considerava-se que as duas formas não eram letras diferentes.»1

 

1 Tradução livre do texto inglês: «The minuscule letter is merely a shortened form of the majuscule. The dot first appears in manuscripts of about the 11th century and was used to distinguish the letter and assist reading in words in which it was in close proximity to letters such as n or m (inimicis, for example). The dot frequently took the form of a dash. It became the custom in medieval manuscripts to distinguish an initial or otherwise prominent i by continuing it below the line, and it was from this habit that the differentiatio...