Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

A resposta que D'Silvas Filho deu a uma consulta de 21.12.2007 sobre as variantes úmido e húmido sugere que a variante brasileira (úmido) inovaria relativamente à portuguesa (húmido), embora não escandalizasse (muito), mesmo nos «hábitos europeus» dos portugueses, já que dispensaria um h que não se pronunciava.

É isto verdadeiro apenas em parte, já que, embora o período pseudoetimológico da ortografia nos legasse húmido, era originariamente umidus o étimo latino. Assim, o que era falso cultismo (húmido) se tornou, com o tempo, a forma popular, a qual os formuladores da ortografia oficial brasileira acabariam por preterir em favor do cultismo, este sim, etimologicamente correto, úmido.

Não quero com isto sugerir que o étimo latino correto deva ser o parâmetro por excelência para a definição da aceitabilidade de determinada grafia, até porque, para mim, o parâmetro por excelência é o uso culto efetivo, real, nos nossos dias, pelo que úmido é errado em Portugal, e certo no Brasil, e húmido é errado no Brasil e certo em Portugal.

A minha única intenção foi esclarecer que, diferentemente do que sugeriu D'Silvas Filho, não houve liberalidade brasileira, mas, pelo contrário, rigorismo.

Resposta:

Agradece-se o comentário ao consulente.

resposta já tem alguns anos – praticamente 15 – e foi dada na perspetiva de considerar a forma úmido como resultado da supressão do h inicial, no contexto de uma ortografia inovadora. Contudo, do ponto de vista histórico, sabe-se que não é bem assim, pois a forma úmido tem grande tradição.

Com efeito, úmido remonta a forma latina mais antiga. Contudo, é ainda no período romano que surge também a forma com h-, como se observa no Dicionário Crítico Etimológico Castellano e Hispánico de Joan Coromines e J. A. Pascual: «En latín la grafía umidus es la correcta, aunque pronto se empezó a escribir con h- por una relación seudoetimológica con humus ‘tierra’» [tradução: «Em latim a grafia umidus é a correta, embora cedo se começasse a escrever com h- por causa de uma relação pseudotimológica com humus 'terra'].

Sendo assim, a língua portuguesa conserva duas variantes que vêm diretamente dos tempos romanos – e ao que parece com igual rigorismo, mesmo na conservação da forma pseudoetimológica.

Pergunta:

Os plurais abdómenes, pólenes, gérmenes vieram-nos do espanhol?

Muito obrigado!

Resposta:

É possível que o castelhano (ou seja, o também chamado espanhol) tenha sido o medianeiro desse tipo de plurais com -n- intervocálico. Contudo, tudo depende da fase da história da lingua em que tais plurais se fixaram na língua.

Os vocábulos eruditos terminados em -n- os que acabam em -an (íman), mais correntes em Portugal – definem uma série vocabular que só começou a ganhar uso com o Renascimento ou pouco depois, portanto, numa época em que o castelhano tinha grande presença na corte em Lisboa (cf. o que se diz sobre a influência do castelhano sobre o português em Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio). É, pois, possível, que abdómenes e gérmenes, que estão documentados desde o século XVI, possam dever a sua configuração à influência ou à transmissão castelhana.

Note-se, porém, que polén só se documenta a partir do século XIX, o que significa que o plural pólenes já pode dever-se à interferência de uma outra língua – o francês ou já o inglês – com certa hegemonia na comunicação científica ou até ter sido tomado diretamente do latim científico. Fica a conjetura, porque as fontes consultadas não se afiguram esclarecedoras quando à origem e transmissão exatas deste vocábulo.

Pergunta:

Qual a maneira correta de se dizer/escrever o seguinte exemplo: «Podes pintar A teu gosto» ou «podes pintar AO teu gosto».

Obrigada.

Resposta:

As duas formas estão corretas, mas a primeira – «Podes pintar a teu gosto» – é a mais corrente.

Com efeito, a avaliar por uma consulta do Corpus do Português, de Mark Davies, é mais frequente empregar «a meu gosto», «a teu gosto» ou «a seu gosto» do que «ao meu/teu/seu gosto». Tende-se, aliás, ao uso do possessivo sem artigo definido em expressões fixas como esta, como é o caso de «em meu/teu/seu... nome» ou «a meu/teu/seu... favor».

Importa, no entanto, assinalar que, sem possessivo, mas com artigo definido, se diz e escreve «ao gosto de», isto é, «de acordo com as preferências de»: 

(1) «Compunha canções alegres e ingénuas, ao gosto de certo público» (Énio Ramalho, Dicionário Estrutural, Estilístico e Sintático da Língua Portuguesa, Livraria Chardron de Lello e Irmãos Editores, 1985)

Pergunta:

Gostaria de saber se ambas as construções a seguir são corretas e em que contextos podemos usá-las: «conversa de bastidor» e «conversa de bastidores».

Muito obrigado!

Resposta:

A questão refere-se ao domínio das expressões fixas, e o critério de correção costuma ser o da estabilidade do uso (ou o da sua intuição) e do seu registo dicionarístico. Contudo, é critério nem sempre conclusivo, porque pode haver variação de registo e até regional, ou seja, uma expressão pode ocorrer em certas circunstâncias e certos lugares e não noutros.

Mesmo assim, consultando alguns dicionários – Dicionário Houaiss, Dicionário Michaelis, Dicionário UNESP do Português Contemporâneo, Infopédia, Priberamdicionário da Academia das Ciências de Lisboa (ACL) –, deteta-se consenso quanto a registar sistematicamente a forma plural bastidores na expressão «de bastidores», no sentido de «fora do domínio público». Exemplos: «intrigas de bastidores» (cf. dicionário da ACL).

Sendo assim, a forma a recomendar será «conversa de bastidores», expressão, aliás, abonada no Dicionário Houaiss.

Pergunta:

Qual é a tradução para português da palavra inglesa coethnic (nome/adjetivo, «que ou pessoa que tem a mesma etnia»).

Resposta:

O termo transpõe-se sem dificuldade em português como coétnico, no sentido de «(pessoa) que é da mesma etnia de outra».

É vocábulo ainda sem registo nos dicionários, mas que ocorre em trabalhos académicos – por exemplo, no item de um inquérito de investigação:

(1) «2 - Quando precisa de financiamento para este(s) negócio(s) ou outro(s) empreendimento(s), a quem recorre? (Vias informais ou formais? Outros Nepaleses? Coétnicos ou não? Familiares? Outro tipo de redes de sociabilidade e contactos?» (cf. Alexandra Crisitna Santos Pereira,Transborder Himalaya: Processos e Transnacionalismo nos Empresários e Trabalhadores Nepaleses em Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gestão, volime II – Anexos, 2019, p. 5).

Em contexto não especializados, para referir a pessoa que é do mesmo país que outra, emprega-se compatriota e concidadão (cf. Infopédia e Dicionário Houaiss). Relativamente à mesma região ou lugar, é corrente o termo conterrâneo, a par de patrício e, mais raramente, compatrício (ibidem).