Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual é a forma correcta de abreviar companhia? A Infopédia assinala "Ca.", uma lista da Universidade Católica disponível online refere "co" e ainda encontro muitas vezes a abreviatura "cia.".

Haverá mesmo uma forma definida de abreviar esta palavra?

Agradeço antecipadamente o esclarecimento.

Resposta:

Não há uma abreviatura de companhia que possa considerar-se universal e, portanto, correta.

Uma abreviatura muito difundida é de facto a que o dicionário de abreviaturas da Infopédia regista, ou seja, Cia. Na mesma fonte, regista-se outra possibilidade: Ca. Parecida com esta última é a que o Código de Redação para a escrita do português nas instituições europeias regista: C.ª, que tem tradição há décadas, pois ocorre no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1940, publicado pela Academia das Ciências de Lisboa.

Já o caso de co é muito discutível, porque as fontes mencionadas não atestam tal. É bem possível que se trate da abreviatura co, do inglês company (cf. Lexico.com), ou seja, o mesmo que «companhia, empresa, sociedade» (cf. Infopédia).

Pergunta:

A minha questão prende-se com apelidos/patronímicos.

Conquanto seja um facto, para os genealogistas, que o apelido Andrade é de origem toponímica e não patronímica, a verdade é que me parece encontrar evidências (?) de que também possa ter origem patronímica. Pelo menos, no que toca à minha família, e apenas no concernente ao nosso costado paterno – em “busca da qual” vagueei por horas, dias, semanas, meses e anos a fio, no tempo em tinha de me deslocar para a consulta das fontes, à (actual) Torre do Tombo, ao Arquivo Distrital de Santarém, à Conservatória do Registo Civil de Ferreira do Zêzere e ao Arquivo Paroquial da minha freguesia natal.

O meu texto, que se segue, vale apenas para contextualizar a problemática. A questão, portanto, é: poderá o apelido Andrade ou d’Andrade ser o patronímico de André?

Grato pela vossa atenção.

«APELIDOS; PATRONÍMICOS O apelido é o sobrenome de família que se transmite de pais a filhos. Parece terem sido os romanos que trouxeram para cá o uso do apelido. Uso com que a invasão goda acabou: com eles as pessoas apenas tinham o seu nome próprio, nada mais. Mais tarde, sob o domínio árabe generalizou-se o uso dos patronímicos. Estes, antes de se tornarem em verdadeiros apelidos, começaram por ser sobrenomes derivados do nome do pai. Alguns acabaram mesmo por constituir nomes próprios, embora derivados de outros e exprimindo filiação.

No tempo dos nossos primeiros reis, e até D. João I, vigorava a regra de que ao filho mais velho se desse o nome do avô materno seguido do apelido patronímico. Exemplo acabado desta regra é o caso de D. Afonso Henriques: Afonso, porque neto materno de Afonso (Afonso VI, rei de Leão e Castela, como se sabe – pai de D. Teresa), Henriques, porque filho de Henrique.

Mas os patronímicos também se formavam pela mera aposição do nome do pai ao do filho: assim, v. g., «Pedro ...

Resposta:

Agradece-se ao consulente a partilha do muito interessante apontamento que dedica à questão dos patronímicos, a pretexto da história de família.

Para já, as fontes aqui consultadas1 apresentam Andrade como antropónimo cujo uso corresponde a um patronímico, mas sim ao do uso de um topónimo de origem galega (região de Pontedeume).

Como bem observa o consulente, há muitos apelidos que têm origem nos antigos patronímicos medievais. Notará também que os apelidos com esta origem terminam, na sua maioria, em -es, um sufixo que ocorre em documentos medievais sob a forma -ez ou -iz e que é comum a todas as línguas românicas das regiões centrais e ocidentais da Península. Este sufixo é, portanto, comum ao castelhano, a toda a área asturo-leonesa e a todo o sistema galego-português.

Regista-se também a possibilidade de os antropónimos se tornarem patronímicos sem qualquer sufixo, como é o caso de Afonso e Lourenço, uso também comum à maior parte da Península.

Claro está que, não sendo a presente resposta dada por um especialista em genealogia, não se exclui, quanto à família do consulente, a possibilidade de um uso patronímico de André  ter, por qualquer razão, dado lugar ao nome Andrade. Se assim for, parece tratar-se de uma situação insólita, porque, do ponto de vista dos padrões da história do onomástico de origem medieval, como é o caso dos apelidos terminados em -es, não se registam patronímicos com sufixo -ade.

 

1 José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa (2003) e José Leite de Vasconcelos, 

Pergunta:

Em 2009 este assunto foi aqui tratado e a opinião foi que a expressão «ouvidos de marcador» não fazia sentido. Mas hoje encontrei a referência seguinte, que poderá fazer sentido:

«Não é “ouvidos de mercador” e sim “ouvidos de marcador”. Na origem do provérbio está a marcação de escravos com ferro quente, com o nome do seu dono, para que fossem facilmente identificados. “O marcador” nunca "ouvia" as súplicas e gritos daquelas pessoas» (@vilminha_reis, Twitter, 07/05/2022).

Qual é a vossa opinião?

Obrigado.

Resposta:

Agradece-se ao consulente a questão, muito pertinente, que enviou.

A justificação do tuíte em causa está bem achada, terá sentido, mas não encontra apoio nem em registos históricos nem em dados comparativos com outras línguas que têm expressões homólogas da portuguesa.

Assim:

a) consultando o Corpus do Português (de Mark Davies), não se acham ocorrências de «ouvidos de marcador» – só «ouvidos de mercador», pelo menos, desde o século XIX;

b) em castelhano regista-se «hacer oídos de mercader» (dicionário da Real Academia Espanhola), em catalão diz-se «fer orelles de marxant/mercader» (Diccionari) e, em italiano, «fare orecchi da mercante» (dicionário Treccani), sem encontrar ocorrência de algo parecido a «ouvidos de marcador».

Não se justifica, portanto, a assertividade do tuíte em referência quanto à suposta versão correta da expressõa. O parecer do Ciberdúvidas continua válido, com a margem de dúvida sempre existente quando se trata de palavras e expressões idiomáticas de génese factual pouco ou nada documentada.

Pergunta:

Deparo-me com a antiga expressão «em rama» utilizada no sector de transformação de produtos como «farinhas em rama (moagem de, por exemplo)», «algodão em rama», «açúcar...», entre outros. Significa algo em bruto, não processado, como por exemplo, a primeira farinha extraída logo após a primeira passagem na mó.

Muito comum nas antigas moagens, o termo caiu em desuso nas moagens modernas.

Seja como for, não encontro em lado nenhum uma explicação para a origem linguística da expressão «em rama». Apenas a ligação com a outra expressão, «pela rama», ou seja, superficialmente, mas desconfio que esta é que tenha derivado da outra.

Obrigado pela atenção.

Resposta:

Não há consenso sobre a origem de rama, palavra que figura na locução «em rama», no sentido de «em bruto, tal qual se extrai, não industrializado» (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, consultado em 07-05-2022), que ocorre «também usado substantivamente: ramas de açúcar, ramas de petróleo» (ibidem).

São vários os dicionários que a identificam com rama («ramagem»), mas há também quem defenda – Antenor Nascentes – que a forma é adaptação do francês rame, empréstimo talvez transmitido pelo castelhano. Note-se que o francês rame denomina sobretudo um grande quantidade de folhas (cf. Trésor de la Langue Française) e é termo com origem no vocábulo catalão raima, cognato, afinal, de resma e como esta última forma também proveniente do árabe vulgar hispánico rázma (cf. Diccionari Català).

A transmissão castelhana da palavra ao português é sugerida pelo facto de o dicionário da Real Academia (s. v. rama) registar a locução «en rama», homóloga do português «em rama», e atribuir-lhe a referida génese francesa.

Não obstante, é preciso realçar que um conhecido arabista, Federico Corriente (1940-2020), considera que «en rama» exibia a palavra rama, o mesmo que o português rama e, portanto, de origem latina, por derivação de ramo. O filólogo espanhol rejeita, portanto, a hipótese árabe, porque, segundo ele, além de esta levantar dific...

Pergunta:

Primeiramente gostaria de cumprimentá-los pela excelente prestação de serviços com que somos brindados pelo Ciberdúvidas!

No português brasileiro, a oposição pronome reto X pronome oblíquo átono não é levada a sério na fala espontânea, ficando restrita à língua escrita formal. Assim, são comuns frases como «eu conheço ele», «eu encontrei ela», «eu vi elas», etc.

O único caso que se obedece é a oposição eu e me e, mesmo assim, entre pessoas de muito baixa escolaridade, pode-se ouvir um «ele viu eu» ou, ainda pior, «ela me viu eu». [...]

Eu gostaria de saber, afinal, se em Portugal, na fala espontânea, podem-se encontrar construções com o pronome reto empregado em vez do oblíquo átono.

PS.: Não há problemas para o brasileiro, mesmo de pouca instrução, em relação às formas tônicas.

Resposta:

Em Portugal, mesmo na fala informal, mantém-se o uso dos pronomes átonos – os «pronomes oblíquos átonos» da terminologia brasileira, ou seja, da Nomenclatura Gramatical Brasileira de 1959 – com a função de complemento direto (ou objeto direto, para seguir a terminologia brasileira).

São, portanto, insólitas as formas «ele viu eu» ou «ela me viu eu», e normal a forma «ela viu-me» (com a tendência para ênclise do português de Portugal, em frases simples cujo verbo não esteja modificado por advérbios).

Contudo, como já foi dito em resposta anterior, é preciso assinalar que construções na 3.ª pessoa, como «eu conheço ele», «eu encontrei ela» ou «eu vi elas» não são desconhecidas de todo, quando verbos de perceção como ver ou verbos causativos como mandar são seguidos de orações de infinitivo: «eu vi ela chegar» (em vez do correto «(eu) vi-a chegar»); «mandei ela escrever uma carta» (talvez menos frequente, em vez do correto «mandei-a escrever»).

Também são correntes os pronomes oblíquos em construções muito informais – «olha ela toda bonita» – e até algo infantis como «ó mãe, olha eu a andar de bicicleta sem mãos».

É possível, portanto, que o uso brasileiro resulte de alguma convergência entre inovações locais e construções mais marginais que já eram produzidas pelos colonizadores portugueses. É uma hipótese que, dadas as fontes consultadas, não se pode aqui confirmar.