Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Como já foi escrito neste sítio, na Resposta a "Taquicardia" (dada por Carlos Rocha, 13 de novembro de 2013), o consenso académico coloca taquicardia, com o acento [tónico]em di, como a pronúncia correta.

Contudo, a minha dúvida vai no sentido de que o segundo elemento desta palavra provém do étimo grego κᾰρδῐ́ᾱ (kardíā); ao passar esta palavra para o latim científico (fonte de infinitos termos médicos), colocamo-la sob a regra da penúltima, que nos diz que a penúltima sílaba, por ser breve (a sílaba grega original é um iota breve), perde o acento, que passa para a antepenúltima sílaba.

Deste modo, o termo médico em latim científico tachychardia passaria a pronunciar-se com acento na antepenúltima sílaba, como o seu termo cognato em português, taquicardia, do mesmo modo como ocorre na pronúncia espanhola de taquicardia?

(Nota: na Resposta a "A pronúncia e o acento de ambrósia" (Carlos Rocha, 18 de maio de 2021), o iota breve de ἀμβροσία (ambrosía) também faz com que, na transposição latina, o acento passe para a antepenúltima sílaba.)

Resposta:

A questão dos termos científicos formados por radicais gregos não tem tido um tratamento uniforme, e, portanto, há muitas exceções, como parece ser o caso das palavras terminadas em -ia, incluindo a diferença prosódica entre taquicardia e ambrósia.

É verdade que muitos termos cultos e científicos formados por elementos de origem grega passam pela sua adaptação ao latim, donde depois foram ou são transmitidos ao português, conforme observa M.ª Helena T. C. Ureña Prieto et al., em Do Grego e do Latim ao Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 11):

«Regra geral e tradicional é a de supor sempre, real ou teoricamente, os nomes [gregos] recebidos por mediação do latim e aplicar-lhes a regra da acentuação latina. Deste modo serão graves ou paroxítonos os polissílabos que tenham a penúltima sílaba longa; serão esdrúxulos ou proparoxítonos os que tenham a penúltima sílaba breve.»

Contudo, a mesma fonte assinala que «a acentuação das palavras terminadas em -ia em português é oscilante» (ibidem, p. 37), fundamentando-se nos critérios formulados em 1940, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa (mantém-se a ortografia do original consultado):

«A prosódia dos sufixos de origem grega é regulada, como convém, pela quantidade etimológica. Recebe, porém, tratamento especial o sufixo -ia, cuja prosódia depende das várias condições históricas do seu uso, o que faz que em muitos casos seja tónico e noutros seja átono. Temos, por exemplo:

a) com acentuação n...

Pergunta:

O nome Vladimir pertence à onomástica da língua portuguesa?

Caso não pertença, qual seria a versão aportuguesada do nome?

Resposta:

É um nome de origem eslava1, que passou ao português por via do francês Vladimir (cf. José Pedro Machado, Dicionário Onomástico Etimológico da Lìngua Portuguesa).

Tem uma configuração que permite o seu uso na língua portuguesa, sem alterações, como comprova o registo da forma Vladimir no Vocabulário Onomástico da Língua Portuguesa (1999), da Academia Brasileira de Letras2. Neste mesmo vocabulário, também se regista e legitima a forma Vladimiro, que tem uma forma do género feminino, Vladimira.

Assinale-se que Vladimiro é aportuguesamento já antigo, pois tem registo no Vocabulário Ortográfico e Remissivo da Línga Portuguesa (1913), de Gonçalves Viana. O nome Vladimira está consignado no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa que a Academia das Ciências de Lisboa publicou em 1940.

 

1 O nome eslavo será um composto em que se associa vladĭ, «comandar», and mēri, «grande, famoso» (consultar Vladimir, na Wikipédia em inglês). É possível que reflita algum contacto com elementos germânicos (ibidem).

2 Esta fonte também consigna Wladimir, forma, no entanto, discutível, porque w continua limitado a grafias estrangeiras.

Pergunta:

A palavra timer, do inglês, pode ser traduzida como temporizador, porém existem algumas palavras estrangeiras que passaram a fazer parte da língua portuguesa.

Minha dúvida é se a palavra timer faz ou não parte do português, já que eu já a encontrei em alguns sites de dicionários, como no dicio.com.br.

Obrigado.

Resposta:

Se uma palavra importada (empréstimo), como é o caso de timer – literalmente, «marcador de tempo», ocorre frequentemente no discurso em língua portuguesa, então é porque ela, de alguma maneira, está em processo de integração.

De facto, assim parece, pelo menos, no que respeita à variedade brasileira, conforme sugerem os registos existentes no Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa e no Dicionário Houaiss, no qual timer figura em itálico como indicação de estrangeirismo e definido como «dispositivo visual ou sonoro que sinaliza o final de um período preestabelecido de tempo».

Em alternativa, contam-se formas vernáculas, de acordo com os padrões do português, como o termo temporizador, que se recomenda, pelo menos, quando se trata de referir um «dispositivo automático programável que ativa ou desativa um aparelho no momento estabelecido» (cf. Infopédia; ver também Priberam). Trata-se, portanto, de um termo adequado como equivalente de timer, quando este anglicismo designa um «dispositivo regulador da ignição» (dicionário inglês-português da Infopédia). Outras soluções vernáculas possíveis são cronómetro<...

Pergunta:

A propósito [de uma condicional de enunciação abordada] em 3/6/2022, acrescento o caso curioso das frases a seguir, em que a condição parece estar posta na oração principal, e não na subordinada iniciada por se:

«Se queres tornar-te culto, procura estudar muito.»

«Se escolhermos este caminho, precisaremos tomar cuidado com os perigos nele ocultos.»

«Se teu objetivo é atingir o ápice na carreira, prepara-te para enfrentar desafios.»

«Se você pretende escrever bem, leia bons autores.»

São também essas orações condicionais de enunciação?

Agradeço desde já a resposta.

Resposta:

Numa primeira análise, concorda-se com o que diz o consulente a respeito da primeira, terceira e quarta frases, porque nelas a condição é relativa a uma atitude de um coenunciador (um interlocutor): «quero tornar-me culto», «o meu objetivo é...», «pretendo». Na condicional, marcam-se, portanto, valores modais, neste caso de tipo volitivo ou desiderativo.

A conversão de tais frases nas construções condicionais "típicas" – factuais, hipotéticas, contrafactuais (ver "As regras da expressão da condição") – parece ter problemas de aceitabilidade se forem retiradas as palavras que marcam a atitude desse coenunciador. Pelo menos, é o que se concluirá com a manipulação das frases por meio da alteração dos núcleos verbais (o ? indica frase duvidosa ou até agramatical):

(1) ?Se te tornas/tornares/tornasses culto, estudas/estudarás/estudarias muito.

(2) ?Se atinges/atingires o ápice, enfrentas/enfrentarás muitos desafios.

(39 ?Se escreves/escreveres bem, lês/lerás bons autores.

Note-se, porém, que as frases acima não serão de todo impossíveis, porque a sua interpretação pode ser legitimada por fatores referenciais.

O segundo caso – «Se escolhermos este caminho, precisaremos tomar cuidado com os perigos nele ocultos» – incluir-se-á nas condicionais mais típicas, em que se estabelece uma relação entre valores factuais ou hipotéticos e estados de coisas: neste caso, a escolha do caminho é contemporânea ou um pouco anterior ao cuidado a tomar.

Pergunta:

Acabo de ler «Se algum doente a tocasse, ficaria curado.» Tudo me leva a crer que deveria ser «lhe tocasse» (tocar em). Estou a ver mal? É mesmo admissível «a tocasse»?

Obrigado.

Resposta:

Não é impossível nem incorreto «se algum doente a tocasse», mas, como «tocar alguém» pode ser sinónimo de comover («o discurso tocou-a profundamente»), a construção com lhe é mais clara quanto a denotar a ação de «aproximar ou pôr a mão (ou outra parte do corpo) em contacto com o corpo de outra pessoa».

O verbo tocar tem uso corrente como transitivo indireto: «tocar em alguém/alguma coisa», com pronominalização marcada por lhe – «tocar-lhe». Contudo, também se regista em dicionários1 e textos literários – e, portanto, legitima-se – como transitivo direto («tocar alguém/alguma coisa»). Exemplo:

(1) «Ela lançava-se contra o peito do irmão, chorava, chorava, os seus soluços ansiosos repercutiam no peito dele, que estava vencido, sem hostilidade, sem coragem mesmo para lhe tocar os cabelos [...].» (Agustina Bessa Luís, Os IncuráveisCorpus do Português2).

Mesmo assim, o verbo tocar, que é polissémico, pode revelar pequenas diferenças semânticas entre os dois usos, as quais nem sempre se prestam a sistematização. Por exemplo, o Dicionário Gramatical dos Verbos Portugueses (Texto Editora, 2007, coordenado por Malaca Casteleiro) apresenta o uso transitivo indireto em aceções que sugerem um contacto físico deliberado, como atividade eventualmente sexual:

(2) A mãe não o deixava tocar nas gavetas dela. («mexer, remexer»)

(3) A avó não admitia que a professora tocasse nos netos. («bater, agredir»)

(4) O arguido confessou ter tocado no rapaz. («apalpar, ter contacto sexual»)

Nos exemplos, afigura-se, portanto, estranho e mesmo incorreto o uso tra...