Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Às vezes, o verão pode ser demasiado quente, e "às outras vezes" pode chover demais»

«Às outras" não me parece correto. Não seria melhor " noutras vezes", "outras vezes", "outras?

Muito grata!

Resposta:

A estrutura «às outras vezes» não é aceitável.

Por um lado, temos a locução adverbial «às vezes», que tem uma estrutura fixa e que significa «em alguns casos, em algumas ocasiões». Esta construção não admite a inserção de outros elementos, pelo que são inaceitáveis as seguintes estruturas:

(1) «*Às todas as vezes»

(2) «*Às muitas vezes»

(3) «*Às outras vezes»

A locução «às vezes» surge no espaço sintático de outras construções que assumem também um valor temporal, como «por vezes», «outras vezes», «certas vezes».

Na frase em questão, a opção correta será a que se apresenta em (4):

(4) «Às vezes, o verão pode ser demasiado quente e/mas, outras vezes, pode chover demais.»

Note-se que o constituinte «outras vezes» não necessita de ser introduzido por preposição, uma vez que é independente na frase, funcionando como modificador.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o mais correto quando se quer apresentar uma coisa:

«Isto é a minha cidade; isto é um jardim; isto é a sua casa; isto são os meus gatos»...

«Esta é a minha cidade; este é o jardim; esta é a sua casa; estes são os meus gatos»...

Obrigado pela sua ajuda!

Resposta:

 Ambas as possibilidades estão corretas. A opção a tomar dependerá das intenções que associar às frases.

Os determinantes este e esse (e suas variantes morfológicas) são usados para assinalar a proximidade ou a distância de realidades, de natureza [+humana] ou [-humana], relativamente ao locutor:

(1) «Este livro é interessante.» (O livro está perto do locutor.)

(2) «Esse livro é interessante.» (O livro está distante do locutor.)

Relativamente ao determinante isto, ele não será usado neste contexto porque não é usado como determinante, mas apenas como pronome, o que significa que ele não poderá acompanhar um nome. Por essa razão, a frase (3) é incorreta:

(3) «*Isto livro é interessante.»

Usados como pronomes, este e esse continuam a poder sinalizar proximidade/distância:

(4) «Procuro um livro. Este é interessante.»

(5) «Procuro um livro. Esse que tens na mão é interessante?»

Por seu turno, isto pode ser usado como pronome em construções similares às anteriores, particularmente em casos em que se pretende veicular uma avaliação negativa de algo:

(6) «Procuro um livro. Isto não conta.» (O locutor deprecia o livro de que fala na segunda frase.)

Para além do que ficou dito, este, esse, isto podem ser usados como elementos de coesão que apontam para segmentos de discurso anteriores ou posteriores:

(7) «Ele contou as suas experiências de guerra e descreveu o exotismo dos locais por onde passou. Este assunto interessou os presentes.»

(8) «Ele contou as suas exp...

«Ora essa!»
Integração na classe de palavras

Como se classifica a expressão «ora essa»? Esta é a pergunta que motiva o apontamento da professora Carla Marques no âmbito da Dúvida da Semana, rubrica divulgada no programa Páginas de Português, da Antena 2, (01/12/2024). 

 

Pergunta:

Deve escrever-se «Tive permissão de aí entrar» ou «Tive permissão para aí entrar»?

Suponho que, sendo possível escrever das duas formas, dependerá do contexto – e, se assim for, peço o favor de me esclarecerem quando devo usar de e quando devo usar para.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as formas são possíveis, sendo igualmente corretas.

Neste âmbito, Barbosa e Raposo afirmam: «com alguns nomes, incluindo aqueles que denotam atos diretivos, relacionados na sua maior parte com verbos correspondentes, a preposição de ligação pode ser para, alternando frequentemente com de»1.

Do ponto de vista semântico, o sentido das duas construções é equivalente. Poderemos, não obstante, identificar na construção transcrita em (1) um enfoque mais evidente na finalidade da permissão, o que não acontece com a construção (2), que tem um valor mais neutro:

(1) «Tive permissão para aí entrar.»

(2) «Tive permissão de aí entrar.»

Em ambas as construções, os constituintes que acompanham o nome permissão são orações infinitivas completivas de nome, desempenhando a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

 

1. Barbosa e Raposo, in Raposo et al. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1938.

Pergunta:

Na frase «O que em mim sente está pensando», as formas verbais, apesar de pertencerem à 3.ª pessoa, visto que do ponto de visto pragmático correspondem à primeira pessoa, são deíticos pessoais e temporais?

Antecipadamente grata.

Resposta:

A questão que coloca é bastante complexa porque a poesia não corresponde a um ato de enunciação ocorrido numa situação real, a qual assume como origem de referência o eu, situado num dado espaço (o aqui) e num dado momento de enunciação (o agora).

O texto literário, todavia, pode convocar elementos deíticos para a sua construção. Todavia, o texto literário não ocorre no mundo onde está o leitor ou o autor, fundando-se num eu-aqui-agora distinto. O texto literário, como explica Silva, «projeta o leitor em outro mundo, que não é onde ele está, que não é onde se encontra ancorado pelas coordenadas da situação concreta; no entanto, o eu-aqui-agora é que possibilita a transposição para esse mundo ausente.»1

Nesta perspetiva, o poema pessoano instaura um aqui e agora, associados ao “eu” poético, a partir do momento em que, na quarta estrofe, se dirige à ceifeira, que inaugura como “tu”, o que fica patente no uso do imperativo («Canta») e uso dos demonstrativos e do pronome de 2.ª pessoa: «tua incerta voz ondeando!»; «Ah, poder ser tu»; «tua alegre inconsciência»). Ao criar, no seu poema, este contexto de enunciação, o sujeito lírico assume-se como locutor da sua enunciação, o que fica marcado pelo uso dos pronomes e do determinante de 1.ª pessoa: «O que em mim sente está pensando»; «meu coração»; «sendo eu».

Não obstante o que ficou dito, não poderemos considerar que, no verso «O que em mim sente está pensando», as formas verbais sente e está são deíticos pessoais, pois não “mostram” a 1.ª pessoa. Será, eventualmente, possível avançar a interpretação de que o sujeito lírico evidencia, por meio desta construção, um processo de despersonalização falando do seu “eu” que sente, como um ele, uma não p...