Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nos versos «Passai-me, por vossa fé, / meu amor, minhas boninas, / olho de perlinhas finas!», da obra Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, para além de metáforas e apóstrofes, podemos dizer, também, que estão presentes enumerações?

Muito grato!

Resposta:

Poderemos considerar a presença da enumeração nos versos referentes a uma fala da personagem Brízida Vaz, da obra vicentina.

A enumeração é um recurso expressivo que consiste na «[a]dição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto»1.

Neste caso, por meio de apóstrofes, enumeram-se traços eufóricos atribuídos ao Anjo, como uma estratégia argumentativa orientada para o convencer a salvar a personagem Brízida Vaz.

Disponha sempre!

 

 1. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia.

Pergunta:

Na frase «Aqui, onde vivo há muitos anos, sou feliz», qual a função sintática da oração subordinada adjetiva relativa explicativa «onde vivo há muitos anos»?

A dúvida é a seguinte: estas orações desempenham a função sintática de modificador apositivo de nome. Porém, aqui é um advérbio.

Então, qual a função sintática?

Obrigada!

Resposta:

A oração relativa «onde vivo há muitos anos» desempenha a função sintática de modificador do advérbio com valor explicativo.

Na frase apresentada, a oração relativa é introduzida pelo advérbio onde, que assume como antecedente o advérbio aqui. A oração, ao incidir sobre o advérbio, modifica o seu sentido, associando-lhe, neste caso, uma informação que apresenta uma explicação que contribui para a sua localização.

Nomes, adjetivos e advérbios podem incluir no grupo de palavras de que são núcleo constituintes com a função de modificador, que, por coerência, assumem uma designação que indica qual a classe sobre a qual estão a incidir.

Diga-se, todavia, que, de acordo com os documentos de referência curricular para o ensino não universitário, somente a função de modificador do nome é estudada.

Disponha sempre!

Pergunta:

Como podemos classificar a frase «Ofélia resolveu explicar o que sentia num bilhete, mas não sabia ao certo que palavras utilizar» quanto ao seu valor aspetual?

Resposta:

Na frase, podemos identificar diferentes valores aspetuais, associados às diferentes situações descritas.

Assim, em «resolveu explicar», está presente o valor perfetivo, que permite a apresentação da situação como concluída. Já em «o que sentia» e em «não sabia», identificamos o valor aspetual imperfetivo, ao serviço da descrição das situações como estando no seu decurso, não estando fechadas.

Disponha sempre!

Pergunta:

«Mais se informa» ou «Mais informa-se» são ambas corretas?

Obrigada.

Resposta:

A forma correta é «mais se informa».

Esta construção é usada para indicar que se vão apresentar outras informações para além das que foram já apresentadas em segmentos de texto anteriores. O pronome átono é colocado em posição proclítica (antes do verbo) por atração do advérbio mais.

Todavia, é possível a construção «mais, informa-se…», na qual o advérbio mais é seguido de vírgula e, deste modo, já não atrai o pronome átono. Em termos semânticos, esta construção apresenta ligeiras diferenças relativamente à anterior. Mais estabelece uma conexão com um segmento de texto anterior e indica que se apresentará ainda outra situação, neste caso uma informação. Nesta construção, a situação anterior não constituiria a apresentação de informação, ao contrário do que acontece com a expressão tratada inicialmente.

Disponha sempre!

Pergunta:

O poema de Ricardo Reis "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo" tem no verso «Que a abominável onda» uma clara metáfora da morte.

Contudo, alguns alunos consideraram a hipótese de adjetivação expressiva que me parece aceitável.

Gostaria que me indicassem que outros recursos poderão estar aqui expressos.

Obrigada.

Resposta:

O poema Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, do heterónimo Ricardo Reis, encerra com os versos «Que a abominável onda / O não molhe tão cedo.», nos quais podemos identificar diversos recursos expressivos.

Entre eles, encontram-se a metáfora da morte, referida pela consulente, e também a expressividade do adjetivo colocado em posição anterior ao nome, o que reforça a subjetividade que o sujeito lírico coloca na descrição da morte. A anteposição do adjetivo acentua o sentimento de medo da morte, um tópos da poética de Reis.

Para além destes recursos, é ainda possível apontar a presença da aliteração dos sons nasais («Que a abominável onda / O não molhe tão cedo.»), que parece introduzir no poema o som da agitação marítima, associada à metáfora de morte. A aliteração vem, deste modo, contribuir para intensificar o tom triste e melancólico, que se associa à consciência permanente da vinda inexorável da morte.

Disponha sempre!