Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Mais se informa» ou «Mais informa-se» são ambas corretas?

Obrigada.

Resposta:

A forma correta é «mais se informa».

Esta construção é usada para indicar que se vão apresentar outras informações para além das que foram já apresentadas em segmentos de texto anteriores. O pronome átono é colocado em posição proclítica (antes do verbo) por atração do advérbio mais.

Todavia, é possível a construção «mais, informa-se…», na qual o advérbio mais é seguido de vírgula e, deste modo, já não atrai o pronome átono. Em termos semânticos, esta construção apresenta ligeiras diferenças relativamente à anterior. Mais estabelece uma conexão com um segmento de texto anterior e indica que se apresentará ainda outra situação, neste caso uma informação. Nesta construção, a situação anterior não constituiria a apresentação de informação, ao contrário do que acontece com a expressão tratada inicialmente.

Disponha sempre!

Pergunta:

O poema de Ricardo Reis "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo" tem no verso «Que a abominável onda» uma clara metáfora da morte.

Contudo, alguns alunos consideraram a hipótese de adjetivação expressiva que me parece aceitável.

Gostaria que me indicassem que outros recursos poderão estar aqui expressos.

Obrigada.

Resposta:

O poema Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, do heterónimo Ricardo Reis, encerra com os versos «Que a abominável onda / O não molhe tão cedo.», nos quais podemos identificar diversos recursos expressivos.

Entre eles, encontram-se a metáfora da morte, referida pela consulente, e também a expressividade do adjetivo colocado em posição anterior ao nome, o que reforça a subjetividade que o sujeito lírico coloca na descrição da morte. A anteposição do adjetivo acentua o sentimento de medo da morte, um tópos da poética de Reis.

Para além destes recursos, é ainda possível apontar a presença da aliteração dos sons nasais («Que a abominável onda / O não molhe tão cedo.»), que parece introduzir no poema o som da agitação marítima, associada à metáfora de morte. A aliteração vem, deste modo, contribuir para intensificar o tom triste e melancólico, que se associa à consciência permanente da vinda inexorável da morte.

Disponha sempre!

A locução «cerca de»
Identificação da classe de palavras

A professora Carla Marques  identifica a classe a que pertence a locução «cerca de» em construções como «Este trabalho demora cerca de uma hora».

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 26/01/2024)

Pergunta:

Na frase «Quatro dos seus livros foram adaptados ao teatro e encenados em Portugal, na Alemanha e na Roménia», a palavra quatro é quantificador numeral cardinal ou é fracionário?

Obrigada.

Resposta:

A palavra quatro é um quantificador numeral com valor cardinal.

No contexto em que ocorre o quantificador quatro integra uma construção partitiva, com a estrutura «Expressão de Quantidade + de + Artigo + Determinante + Nome». As expressões partitivas permitem indicar uma parte de um todo, sendo que, neste caso, o todo é composto por todos os livros do autor de quem se fala.

Disponha sempre!

Pergunta:

O segmento «A vida mais uma vez tinha virado. Agora verificava a ordem dos armazéns, o bom estado dos navios, controlava as cargas e as descargas, discutia negócios e contratos. As suas viagens iam-se tornando rápidas e espaçosas.» – é um momento de descrição ou de narração?

Resposta:

Poderemos considerar, de forma genérica e com intuitos didáticos, que o texto em análise, extraído do conto Saga de Sophia de Mello Breyner Andresen, apresenta um momento de descrição. No entanto, o segmento textual evidencia traços híbridos.

Os segmentos narrativos são caracterizados, entre outros aspetos, por uma sucessão de eventos organizados numa cadeia temporal, os quais conduzem ao desenvolvimento de ações e à transformação de predicados1. Por seu turno, a descrição assenta na enumeração de características ou factos que permitem um melhor conhecimento de uma situação, um local ou uma personagem.

No caso em apreço, a enumeração de atividades desenvolvidas pela personagem pode apontar para o desenvolvimento do modo de descrição. No entanto, não se trata de uma descrição estática, pelo que poderemos considerar que estaremos perante um caso de descrição dinâmica que, segundo Paz assume os seguintes traços: «a descrição dinâmica, a que alguns chamam “exposição narrativa”, devido à sua proximidade da narração, e que regista a indicação clara, por ordem cronológica ou lógica, das diversas fases do processo em causa.»

O facto de se tratar de um caso marcado por algum hibridismo está presente no facto de se usar a enumeração e de se recorrer ao pretérito imperfeito do indicativo. No entanto, existe alguma temporalidade associada à apresentação das situações no segmento, que aponta para o dinamismo próprio da narrativa.

Disponha sempre!

 

1. Segue-se, em linhas gerais, a proposta de Jean-Michel Adam para a caracterização da sequência narrativa. Cf.