Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se no verso «Um cheiro salutar e honesto a pão no forno», do poema "O sentimento dum ocidental", de Cesário Verde, estamos perante uma hipálage.

Os meus agradecimentos, desde já.

Resposta:

No verso em questão, podemos identificar a presença de uma hipálage.

A hipálage é um recurso expressivo que consiste na «atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado»1. Ora, no verso aqui considerado, observamos a transferência para o pão do traço moral honestidade, que provavelmente está associado ao padeiro. De igual forma, transfere-se para o pão o traço salutar, que descreve o efeito que ele provoca em quem fica exposto ao seu cheiro ou em quem o come. Assim a hipálage tira partido dos efeitos de sentido eufóricos associados a ambos os adjetivos, contribuindo para expressar uma valoração positiva da atividade do padeiro, do seu produto e dos seus efeitos no sujeito lírico.

Disponha sempre!

 

1. in E-dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia.

Pergunta:

Como se pode classificar o "Sermão de Santo António aos Peixes"?

Pergunto isto porque, estou na dúvida entre três aspetos, nomeadamente: o texto é um sermão, é uma alegoria e é um texto argumentativo. Como tal, qual ou quais das opções será a que classifica corretamente este texto?

Obrigado.

Resposta:

Todas as classificações são possíveis e estão corretas. A diferença entre elas está relacionada com o ponto de vista adotado para efetuar a classificação.

No âmbito do discurso religioso, o texto pertence ao género discursivo sermão, que obedece a regras específicas e é também preferido num contexto sociodiscursivo específico.

Do ponto de vista dos tipos de texto, trata-se de um texto argumentativo, que pertence a uma tipologia que compreende ainda textos de tipo narrativo, expositivo, injuntivo e dialogal.

Por fim, de um ponto de vista retórico-estilístico, o texto pode ser classificado como uma alegoria, tendo em atenção a sua intenção moral, centrada na oposição entre o bem e o mal.

Disponha sempre!

A sílaba tónica da palavra <i>mãezinha</i>
A função do til

Qual a sílaba tónica da palavra mãezinha? A professora Carla Marques aborda a questão no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, em 13/10/2024.

 

Pergunta:

Na frase «Ele foi arrancado de casa À NOITE», confirma-se que o segmento destacado corresponde a um modificador do grupo verbal?

Agradecia o vosso esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, o constituinte «à noite» desempenha a função sintática de modificador (do grupo verbal).

A frase transcrita em (1), que se encontra na forma passiva, tem como forma ativa a frase (2)

(1) «Ele foi arrancado de casa à noite.»

(2) «[O João]1 arrancou-o de casa à noite.»

O verbo arrancar não pede como argumento um constituinte que forneça informação sobre o tempo, pelo que o constituinte «à noite» não é necessário para assegurar a gramaticalidade da frase. Para o comprovar, poderemos usar os testes que permitem distinguir um constituinte com função de complemento oblíquo de um com função de modificador do grupo verbal. Apliquemo-los à frase (2):

(i) Teste pergunta-resposta:

                P: «O que é que o João fez à noite?»

                 R: «Arrancou-o de casa.»

                P: «O que é que o João fez de casa?»

                 R: «*Arrancou-o à noite.»

(ii) Teste de clivagem:

               «Foi à noite que o João o arrancou de casa?»

           

Pergunta:

Podia dizer-me a diferença entre «estive a ler durante 2 horas» e «estava a ler durante 2 horas», do ponto de vista do significado?

Para mim, são frases idênticas, porque na combinação de «estar a» + infinitivo há um aspeto de continuidade e, embora estive não seja um verbo na forma do imperfeito («estive a» infinitivo), a frase tem um sentido de duração, pois o verbo não precisa de estar na forma do imperfeito para transmitir a continuidade da ação.

E, formulando a questão de outra forma:

1. Estava a ler quando a Maria chegou

2. Estive a ler quando a Maria chegou

Há alguma diferença entre as duas frases do ponto de vista do significado?

Resposta:

O pretérito perfeito do indicativo localiza uma situação num intervalo de tempo anterior ao momento de fala, descrevendo situações concluídas. Por essa razão, a frase apresentada em (1) descreve uma situação até ao seu ponto terminal (momento em que se deixou de ler):

(1) «Li durante duas horas.»

A combinação do verbo principal com o auxiliar aspetual «estar a» permite perspetivar a situação como durativa e, se o auxiliar for apresentado no pretérito perfeito, a situação é descrita como estando concluída:

(2) «Estive a ler durante duas horas.»

Ao contrário do pretérito perfeito, o imperfeito do indicativo não é adequado para descrever situações anteriores ao momento da enunciação. Este tempo pode, antes, ser usado para descrever a situação no seu decurso, perspetivando-a do seu interior, sem assinalar o seu início ou o seu fim. Por essa razão, frases simples como (3) ou (4) não são aceitáveis, porque nelas se combina o imperfeito com a sinalização do términus da situação.:

(3) «*Lia durante duas horas.»

(4) «*Estava a ler durante duas horas.»

No entanto, frases como (5) ou (6) já seriam aceitáveis porque a oração subordinada temporal «Sempre que ele lançava um livro» funciona como ponto de referência e o imperfeito passa a descrever situações que se repetem regularmente no passado:

(5) «Sempre que ele lançava um livro, eu lia durante duas horas.»

(6) «Sempre que ele lançava um livro, eu estava a ler durante duas horas.»

O imperfeito tem também a capacidade de atribuir duração a uma situação, como na frase (7), na qual este tempo verbal estabelece com a oração temporal uma relação de inclusão, ou seja, a oração «quando a Maria chegou» é incluída no interior da situação durativa «lia»:

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