Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível aplicar a estrutura do conto tradicional ao conto "A Aia", de Eça de Queirós.

Assim, qual será o momento da resolução: a morte do tio bastardo ou o suicídio da aia, coincidindo, neste último caso, os momentos da resolução e da situação final?

Muito obrigado!

Resposta:

Há diversas propostas de análise da estrutura do conto. Entre elas, a mais divulgada e estudada será a que consta do trabalho de Vladimir Propp presente na obra Morfologia do Conto.

Desta proposta tradicional não consta a fase da resolução. Vamos encontrar esta classificação, por exemplo em Jean-Michel Adam, em Les Textes – Types et Prototypes. O autor descreve a sequência narrativa como sendo composta pelo seguinte conjunto de macroproposições, sendo que nem todas são obrigatórias1:

  • Situação inicial
  • Nó desencadeador da ação (complicação)
  • Re-ação e/ou avaliação
  • Desenlace (resolução)
  • Situação final
  • Encerramento ou avaliação final (moralidade)

De acordo com a proposta de Adam, existe uma relação direta entre a situação inicial e a situação final e entre a complicação e a resolução. Assim, a resolução é o momento em que se encontra a solução para o problema criado na complicação.

Se pensarmos no conto A Aia, de Eça de Queirós, veremos que a fase da complicação coincide com a morte do rei que vem abrir a possibilidade de o trono ser ocupado (usurpado) pelo seu irmão bastardo, o que, consequentemente, coloca em perigo de vida o príncipe. Daqui advém um conjunto de ações que se resolvem com a morte do irmão bastardo e com a troca dos bebés pela aia, sendo esta a fase da resolução.

O momento do suicídio da aia pode ser encarado como a situação...

<i>Sob</i> ou <i>sobre</i>?
Duas preposições antónimas

Qual a opção correta: «Alguém está "sob" suspeição» ou «Alguém está "sobre" suspeição»? A resposta é dada no apontamento da professora Carla Marques

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 12 de novembro de 2023)

Pergunta:

Na sequência da elaboração de uma ata, houve uma correção e substitui-se tinham por têm no seguinte enunciado:

«O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham / têm de ser muito criteriosas.»

Gostaria de saber qual a forma mais correta.

Obrigada.

Antecipadamente grata.

Resposta:

As formas tinham e têm, no respetivo contexto, podem expressar valores diferentes, estando ambas corretas.

O pretérito imperfeito do indicativo (tinham) descreve uma situação localizada num intervalo de tempo passado, apresentada de forma não concluída. Assim, no caso da frase transcrita em (1), aponta para um estado de coisas que se remete para um intervalo de tempo passado, ou seja, com a frase indica-se que o presidente afirmou que, no passado, as atribuições deveriam ter a característica de serem criteriosas:

(1) «O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham de ser muito criteriosas.»

A seleção deste tempo verbal é compatível também com o exercício de transposição do discurso direto para o discurso indireto. Considera-se, nesta linha, que a frase em discurso direto tenha sido a que se apresenta em (2):

(2) « As atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Podemos estar perante uma transposição mais livre do discurso direto, na qual se recorre ao presente, como se observa em (3):

(3) «O presidente da reunião referiu que as atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Esta opção, embora em sentido estrito não siga as regras de transposição para o discurso indireto, é compatível com o uso do presente do indicativo com valor genérico. Com este valor, o presente contribui para a apresentação de características típicas de uma dada realidade. Ora, no caso da frase em apreço, o uso do presente poderá veicular a ideia de que a aplicação criteriosa das atribuições deverá acontecer em qualquer intervalo temporal (passado, presente ou futuro).

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber a predicação verbal da seguinte frase: «A multidão caminhava pela estrada poeirenta.»

Visto que caminhar é intransitivo, o predicado não seria verbal, apenas? Porque li que seria verbo-nominal em função de poeirenta ser predicativo e eu não consigo entender por que poeirenta teria essa função.

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

De acordo com autores como Cunha e Cintra1, o predicado verbo-nominal pode ocorrer em construções como (1), na qual existe um verbo significativo (sair) e um predicado que se refere ao sujeito (preocupada):

(1) «A Joana saiu de casa preocupada.»

Este predicado pode incidir sobre o sujeito, como em (1), ou sobre o complemento direto, como em (2), onde o adjetivo preocupado incide sobre o complemento direto («o rapaz»):

(2) «Ela achou o rapaz triste.»

Como se observa nas frases anteriores, um adjetivo pode ser predicado nominal em diferentes contextos.

Não obstante, também encontramos o adjetivo em funcionamento incidindo diretamente sobre o nome, como adjunto (modificador), como acontece em (3):

(3) «O rapaz triste chegou a casa.»

Neste caso, o adjetivo não é um elemento essencial à frase e pode ser eliminado, o que não acontece nas frases (1) e (2). Por essa razão, em (3) não temos um predicado nominal.

O mesmo acontece na frase apresentada pelo consulente, transcrita em (4):

(4) «A multidão caminhava pela estrada poeirenta.»

Neste caso, o adjetivo poeirenta incide sobre o nome estrada e em conjunto formam um grupo nominal uno.

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova gramática do Português Contemporâneo. Lexicon, p. 151 e ss.

Pergunta:

Tenho um bom domínio do português europeu mas deparei-me com uma construção numa frase que à primeira vista me pôs confuso: «não sei que te diga».

Pensava que se dizia «não sei que te dizer».

Qual das duas frases está correta? E que explicação se pode dar a isto?

Resposta:

As frases apresentadas são ambas possíveis. Poderão, todavia, ser sentidas por alguns falantes como ligeiramente diferentes.

Antes de mais, recorde-se que, quando na oração subordinante está presente um verbo relacionado com o conhecimento (saber, constatar, reconhecer, provar, entre outros), este seleciona o modo indicativo quando a oração subordinante é afirmativa1. Assim, dir-se-á:

(1) «Sei (o) que te digo

Se a oração subordinante for negativa, pode combinar-se com indicativo ou conjuntivo na subordinada1:

(2) «Não sei (o) que te digo / diga

Neste caso, a seleção do modo indicativo indica que o locutor se compromete com a verdade do conteúdo da oração subordinada. Já o recurso ao modo conjuntivo está relacionado com a indicação de que a situação descrita não envolve a «assunção da veracidade da proposição»2, ou seja, o locutor não se compromete com a verdade do que afirma na oração subordinada completiva.

É também possível o recurso ao infinitivo na oração subordinada, como em (3):

(3) «Não sei (o) que te dizer

A diferença entre as frases (2) e (3) é muito ténue e não será sentida por todos os falantes. A frase (3) poderá descrever sobretudo um procedimento («saber fazer alguma coisa») ao passo que a frase (2) descreve a ocorrência de um facto (que terá lugar ou não)3.

Disponha sempre!

 

1. Pilar Barbosa in Raposo et al., Gramática do Português