Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Eu percebo que as orações que estabelecem relações de causalidade trabalham com os verbos no presente e no passado (tanto na oração principal quanto na oração subordinada).

Eu queria saber se isso é uma obrigação ou uma facultatividade.

Mais uma coisa: eu posso dizer que as orações condicionais e finais possuem uma relação subsidiária de causa-efeito?

Desde já, agradeço.

 

Resposta:

Não existe uma regra que determine quais os tempos verbais a utilizar na relação entre a orações que expressam causalidade e a subordinante. Tudo dependerá da intenção do locutor e da situação descrita.

Poderá estar em causa uma relação que teve lugar num intervalo de tempo passado, envolvendo tanto a causa como a consequência:

(1) «Ele não foi ao jogo porque estava doente.»

É também possível que a causa tenha tido lugar no passado e a consequência num intervalo de tempo futuro:

(2) «Ele não irá ao jogo porque esteve doente.»

A relação causa-consequência pode também ter lugar num intervalo de tempo futuro:

(3) «Ele não irá ao jogo porque será operado ao joelho.»

Há, pois, muitas combinações temporais possíveis na relação causa-consequência.

Por outro lado, as orações subordinadas condicionais também expressam, com efeito, relações de causa-consequência. Normalmente, a oração subordinada condicional expressa uma causa e a oração subordinante apresenta a consequência. A relação que se estabelece na frase leva a uma interpretação de condição real (4), hipotética (5) ou contrafactual (6):

(4) «Se ele está doente, não vai ao jogo»

(5) «Se ele estiver doente, não vai ao jogo.»

(6) «Se ele tivesse estado doente, não teria ido ao jogo.»

Por fim, as orações subordinadas finais expressam sobretudo uma relação entre um agente e uma finalidade ou uma intenção:

(7) «Ele treinou muito para ir ao jogo.»

Em certos casos, esta relação pode estar associada a uma interpretação que tem o valor de causa-consequência (a ação desenvolvida tem como consequência uma dada situação), mas o locutor não coloca a inte...

Pergunta:

Na frase «O Manuel sagrou-se campeão nacional», «campeão nacional» desempenha a função sintática de predicativo do complemento direto ou de predicativo do sujeito?

Muito obrigada!

Resposta:

Neste caso, o constituinte «campeão nacional» desempenha a função sintática de predicativo do complemento direto.

O verbo sagrar admite vários usos:

(i) como verbo transitivo direto:

     (1) «Sagrou o templo.»

(ii) como transitivo direto e indireto:

     (2) «Sagrou o jovem a Deus.»

(iii) como transitivo-predicativo:

     (3) «Sagrou o jovem (como) padre.»

Neste último caso, o constituinte «o jovem» desempenha a função de complemento direto e «padre» de predicativo do complemento direto.

O constituinte com função de complemento direto pode também ser preenchido por um pronome, como se observa nos casos seguintes:

(4) «Sagrou-o padre.»

(5) «Sagrou-te padre.»

(6) «Sagrou-se padre.»

A frase (6) é equivalente à apresentada pela consulente, na qual se desempenha a função de complemento direto e campeão de predicativo de complemento direto:

(7) «O Manuel sagrou-se campeão.»

Disponha sempre!

Pergunta:

É correto dizer «Falaste mais bem dele do que mal» ou dever-se-ia dizer: «Falaste melhor...»?

Efetivamente, o senso comum diz-nos que, quando o verbo não está no particípio passado, se deve dizer melhor. No entanto, no entender de alguns puristas como Sá Nogueira, melhor é comparativo de «mais bom» e nunca de «mais bem», como julgo que afirmam numa das vossas respostas.

Mesmo assim, esta posição será válida?

Tendo fundamento, devemos ser nós mais puristas ou laxistas?

Malgrado a insistência neste tópico que se faz presente nas respostas inúmeras dadas aqui na página, gostaria que me elucidassem (e, se o assunto for polémico e não se importarem, debatessem) as minhas dúvidas.

Um bem-haja a todos os consultores!

Resposta:

A frase «Falaste mais bem dele do que mal» será a mais aceitável. 

Recorde-se que melhor é comparativo de superioridade do adjetivo bom, não se usando a forma «mais bom», exceto quando se comparam «duas qualidades ou ações»1:

(1) «Ele é mais bom do que inteligente.»1

A forma melhor é também comparativo do advérbio bem.

Defende a posição mais normativa que junto a um particípio/adjetivo participal se deve usar «mais bem» e não melhor:

(2) «Ele está mais bem preparado do que eu.»

No entanto, há autores que discordam e consideram que atualmente se podem usar as duas formas (é o caso de Bechara, que cita também Mário Barreto2).

Depois de um verbo, usa-se melhor e não «mais bem»:

(3) «Aqui ele estuda melhor.»

No caso colocado pelo consulente, surge o advérbio bem e, nesta construção, parece-nos que a forma «mais bem» será a mais frequente porque, como explica Carlos Rocha, citando Vasco Botelho de Amaral, «[n]ote-se que é de uso empregar mais mal quando se expressam qualidades no mesmo sujeito: "V. Ex.ª escreve mais mal que bem." Por outras palavras, quando os advérbios mal e bem são os próprios termos da comparação, emprega-se "mais mal do que bem". Sendo assim, parece ficar também legitimada uma frase em que ocorra «mais bem do que mal», por exemplo, como acontece neste diálog...

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, de uma orientação sobre poder ou não suprimir o substantivo (no caso tempo) em construções como os exemplos abaixo:

«Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

«Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Daí, fica a dúvida qual das duas construções está correta ou ambas estão?

Obrigado.

Resposta:

Há duas frases possíveis:

(1) «Só gosto de músicas de quando eu era criança.»

(2) «Só gosto de músicas do tempo em que eu era criança.»

O advérbio relativo quando tem a capacidade de introduzir orações relativas com um valor temporal (como em (1)). No entanto, este advérbio tem a limitação de não ser usado com antecedente explícito1, daí a inaceitabilidade da frase apresentada em (3):

(3) «*Só gosto de músicas do tempo quando eu era criança.»

Desta forma, se se pretende explicitar o antecedente na frase, a opção adequada será a que se apresenta em (2), onde o antecedente tempo é retomado pelo pronome relativo que, antecedido da preposição em.

Disponha sempre!

 

* Assinala a inaceitabilidade da frase. 

1. Para mais informações, cf. Veloso in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 2107-2108.

Pergunta:

Na frase «João admira os mesmos pintores que Caio», entende-se que houve a elipse de «admira», isto é, «[…] que Caio (admira)».

Mas estaria igualmente correta uma frase como «João gosta dos mesmos pintores que Caio», considerando-se que o verbo «gostar» pede objeto indireto?

Se considerássemos somente a elipse do verbo, teríamos esta frase agramatical:

*«João gosta dos mesmos pintores que Caio (gosta)».

Ou seja, há que pressupor também a elipse da preposição de:

«João gosta dos mesmo pintores (de) que Caio (gosta)».

É pressuposto aceitável? Está correta a frase «João gosta dos mesmos pintores que Caio»? Se não, que torneios devemos dar à frase para corrigi-la?

Agradeço desde já quaisquer esclarecimentos.

Resposta:

Comecemos por fazer uma precisão: na frase (1), o constituinte «de pintores» tem a função de complemento oblíquo / complemento relativo. Não é complemento indireto porque não se pode substituir pelo pronome lhe.

(1) «Caio gosta de pintores.»

Uma frase como (2) é composta por duas orações: uma subordinante e outra subordinada relativa, introduzida pelo pronome que, o qual tem como antecedente o constituinte pintores:

(2) «João gosta dos mesmos pintores que Caio.»

A segunda oração caracteriza-se pela elipse do verbo gostar, pelo que a frase na sua forma completa seria a que se apresenta em (3):

(3) «João gosta dos mesmos pintores de que Caio gosta.»

No cotejo entre as frases (2) e (3), verifica-se que é a elisão do verbo gostar na oração subordinada que leva à elisão da preposição de, regida pelo verbo, pelo que a frase apresentada em (2) está correta.

Disponha sempre!