Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
102K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a diferença (se existe) entre incómodo e inconveniente?

Deveria dizer «Lamento muito o incómodo causado» ou «Lamento muito o inconveniente causado»?

Obrigada.

Resposta:

As duas frases são possíveis, sendo, no contexto apresentado, equivalentes.

Nas frases em apreço, incómodo e inconveniente são usados como nomes comuns. Incómodo pode ser usado com diversos significados, entre os quais se encontra a noção de «trabalho; canseira; maçada; aborrecimento»1. Já o nome inconveniente pode ser usado com o valor de «desvantagem; contratempo; transtorno»1. Assim, a diferença entre as palavras é, de facto, muito fina: inconveniente aponta sobretudo para algo que não era esperado e que, por essa razão, trouxe algum transtorno à pessoa. Já incómodo pode implicar que a situação exigiu algum tipo de esforço à pessoa envolvida. Em muitas situações, as palavras acabarão por ser usadas sem que se considerem estas distinções.

Disponha sempre!

 

1. Infopédia em linha.

Pergunta:

Gostaria de saber se nesta frase, tirada do contexto, «O Ministro foi recebido pelo Presidente a seu pedido», este seu não será ambíguo, no sentido em que tanto se pode referir ao «Ministro» como ao «Presidente»?

Nesta outra formulação, «O Ministro foi recebido a seu pedido pelo Presidente», será que desaparece a ambiguidade?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, a frase transcrita em (1) é ambígua, uma vez que o determinante possessivo seu pode remeter para dois antecedentes: «o ministro» ou «o Presidente»:

(1) «O ministro foi recebido pelo Presidente a seu pedido.»

Esta ambiguidade leva a que não fique clara a identificação do responsável pelo pedido.

Não obstante, refira-se que, em português, o uso do possessivo seu normalmente favorece a interpretação de que o referente é o sujeito da oração principal1. Desta forma, no caso da frase apresentada em (1), a interpretação mais favorável será a de que o referente de seu é «o ministro».

De qualquer modo, para evitar ambiguidades, o falante tem à sua disposição várias possibilidades que contribuem para a desambiguação referencial. Uma delas é a colocação do sintagma que integra o possessivo mais perto do referente, tal como sugere o consulente:

(2) «O ministro foi recebido a seu pedido pelo Presidente.»

ou

(2a) «A seu pedido, o ministro foi recebido pelo Presidente.»

É também possível substituir o possessivo por um demonstrativo que introduza maior clareza na relação anafórica. Veja-se a diferença resultante do uso de este ou aquele:

(3) «O ministro foi recebido pelo Presidente a pedido daquele.»

(4) «O ministro foi recebido pelo Presidente a pedido deste.»

Os demonstrativos este e aquele diferenciam-se pelo facto de este apontar para um referente mais próximo e aquele para um mais distante. Assim, na frase (3), aquele aponta para «o ministro», ao passo que, na frase (4), este

Pergunta:

Em frases como «Está um papel no chão», existe um sujeito ou este é indeterminado/nulo?

Suponho que esta frase até possa ser invertida para «Um papel está no chão», mas por outro lado, uma frase como «Está um dia bom» não permite tão naturalmente a modificação para «Um dia está bom».

Obrigado de antemão pelo esclarecimento!

Resposta:

As frases apresentadas enquadram-se no âmbito das construções copulativas. Estas frases caracterizam-se por dizerem algo sobre o sujeito, ao qual se associa uma situação descrita pelo predicativo do sujeito por intermédio de um verbo copulativo (ser ou estar, tipicamente).

A ordem canónica das frases copulativas é «sujeito + verbo copulativo + predicativo do sujeito». Não obstante, é possível alterar esta ordem para uma frase quer copulativa invertida («predicativo do sujeito + verbo copulativo + sujeito») quer para situações como «verbo copulativo + sujeito + predicativo do sujeito».

Esta última possibilidade está presente na frase transcrita em (1):

(1) «Está um papel no chão.»

A inversão da ordem dos elementos da frase tem lugar, por exemplo, em situações dêiticas, em frases que, na oralidade, acompanham o gesto de apontar para algo (ou em que esta identificação é feita mentalmente)1:

(2) «Está um gato na lareira.»

(3) «Está uma manifestação à porta da escola.»

O facto de «um papel» ser sujeito na fase (1) pode ser comprovado pelo fenómeno de concordância, pois caso se recorra ao plural o verbo flexiona, concordando com o sujeito, como se observa em (4):

(4) «Estão vários papéis no chão.»

No caso da frase apresentada em (5), estamos também perante um uso dêitico relacionado com o momento de fala:

(5) «Está um dia bom.»

Na frase, não existe um constituinte que funcione como sujeito da predicação, mas, em casos desta natureza, é comum a interpretação de que o locutor se refere ao «agora» (momento em que fala) ou ao «hoje» (intervalo temporal em que fala):

(5a) «[Hoje] está um dia bom.»

...

Pergunta:

No Brasil, para mencionar a decisão de uma corte de justiça, diz-se «O Tribunal entende pela inexistência de x», «O Tribunal entendeu pela ocorrência de y».

Gostaria de saber se essa regência do verbo entender está correta.

Resposta:

Não encontramos registo desta construção nem em dicionários generalistas1 nem em dicionários de verbos2. Não obstante, ela é bastante comum em textos de natureza jurídica, tanto no Brasil como em Portugal, como se pode comprovar pelos exemplos de registos devolvidos por uma pesquisa na internet:

(1) «[…] verifica-se que O Tribunal entende pela sua prescritibilidade […]» (aqui)

(2) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral in re ipsa […]» (aqui)

(3) «Geralmente, o Tribunal entende pela prorrogação do stay por mais 180 dias […]» (aqui)

(4) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral […]» (aqui)

O verbo entender, nestes casos, é usado com o sentido de «decidir entre várias possibilidades, após uma escolha ajuizada», e rege a preposição por. Uma vez que não há registo desta construção nos usos comuns, mais ou menos formais, estaremos perante um caso de jargão sintático, restrito a um uso sociolinguístico enquadrado na área do discurso jurídico.

Disponha sempre!

Pergunta:

Eu gostaria de saber quais são os tipos de orações coordenadas copulativas que existem e quais são as características de cada uma.

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista sintático, podemos considerar dois tipos de orações coordenadas copulativas: as sindéticas e as assindéticas. As primeiras são orações conectadas por uma conjunção copulativa, como em (1):

(1) «O João foi ao parque e a Rita ficou em casa.»

As segundas são orações cuja conexão não é sinalizada por uma conjunção, sendo o valor desta conexão inferido, como acontece em (2):

(2) «O João foi ao parque, a Rita ficou em casa.»

Do ponto de vista semântico, estas orações têm um valor aditivo, considerado o seu significado básico, uma vez que adicionam propriedades, situações ou outros.

Não obstante, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e podem assumir ainda outros valores1:

(i) valor adversativo:

      (2) «Estudou imenso e teve má nota.» (= mas)

(ii) valor conclusivo:

      (3) «Já terminei o estudo e vou descansar.» (= por isso)

(iii) valor condicional:

      (4) «Vai a essa aula e ficas a saber a matéria.» (= se)

(iv) valor de sequência temporal:

      (5) «Levanta-se cedo e começa o estudo.» (= depois disso)

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento, cf. Matos e Raposo in Raposo et al.,