Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na construção «providenciem o recolhimento da taxa, bem como * da despesa postal», antes de «despesa postal» – asterisco – deve haver obrigatoriamente o pronome demonstrativo o, ou é possível a construção sem ele?

Grato desde já.

Resposta:

 A frase é aceitável sem o pronome demonstrativo o.

 Trata-se de uma construção elítica, na qual se subentende o grupo nominal «o recolhimento». A frase completa seria:

 (1) «Providenciem o recolhimento da taxa, bem como o recolhimento da despesa postal.»

 A elipse é usada muito frequentemente nas construções para evitar construções mais complexas ou alongadas, funcionando como um processo de economia linguística que é usado nos contextos em que é possível recuperar o material linguístico elidido1.

Disponha sempre!

  

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2351

Pergunta:

Qual a modalidade encontrada em «A todos volto a agradecer»?

Sendo considerado que o autor nos informa de algo certo (uma ação que toma), não expressando concretamente um juízo de valor, poderia ser considerada uma modalidade epistémica com valor de certeza?

Resposta:

A modalidade presente neste enunciado é a modalidade desiderativa.

Refira-se, antes de mais, que esta modalidade não se encontra entre os tipos de modalidade estudados no ensino básico ou secundário em Portugal.

A modalidade desiderativa exprime valores de vontade, desejo ou esperança1.

Ora, na frase em questão, o locutor expressa a vontade de agradecer aos seus interlocutores.

Disponha sempre!

 

1. cf. Fátima Oliveira e Amália Mendes in Raposo (coord.) Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, pp. 634.

Pergunta:

Ciente de que o verbo duchar pertence à vertente brasileira, pode o mesmo aplicar-se no português lusitano?

No contexto de um artigo científico, cujo idioma seja o do país português, seria correto aplicar a expressão "recém-duchado"?

Por outro lado, se considerar as expressões: "recém-higienizado" ou "recém-banhado", qual das três se poderia usar?

Obrigada!

Resposta:

O verbo duchar ou mesmo o substantivo ducha não se usam em português europeu1.

Para este contexto, o mais frequente é o verbo lavar, pelo que se aconselha a forma «recém-lavado». Também é aceitável a forma «recém-higienizado».

Para a forma substantiva, usa-se o termo duche

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Priberam

Um e outro
Concordância

A concordância do substantivo e do verbo com «um e outro» é o tema central do apontamento da professora Carla Marques, divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2 (em 04/02/2024). 

Pergunta:

Só tenho visto conteúdos em que se diz que o pretérito perfeito só é usado para ações terminadas no passado e que não tem relação com o presente, isto é, pretérito absoluto.

Mas, às vezes, sinto que possui parcialmente o valor do present perfect do inglês. Por exemplo, em «Maria, a maçã caiu ao chão», o verbo cair pode nos mostrar que a maçã ainda está caída ou que ela já foi removida do chão.

A ambiguidade é resolvida pelo contexto, é claro. Mas em alguns casos, não se dá para perceber muito bem. Existe alguma expressão para se referir a esse aspecto que envolve a língua portuguesa?

Outro exemplo: «Claro! Ela roubou o meu carro.» Pode ter dois significados: «que o meu carro está com ela»; e «que o meu carro tinha sido roubado por ela, mas o recuperei».

Resposta:

O pretérito perfeito descreve habitualmente uma situação que está completa, concluída, completamente realizada.

Todavia, é possível, em determinados contextos, que a situação descrita pelo pretérito perfeito não esteja efetivamente concluída, como em (1):

(1) «O João esteve a fazer um trabalho.»

A situação descrita como «fazer um trabalho» pode estar ainda em curso, prolongando-se no tempo.

Sobre as frases apresentadas pelo consulente, poderemos dizer o seguinte:

(2) «Maria, a maçã caiu ao chão.»

O verbo cair descreve uma ação que se completa quando a maçã toca no chão, pelo que não se poderá dizer que não se trata de uma situação concluída. O facto de a maçã permanecer no chão em nada invalida o que se diz atrás.

(3) «Claro! Ela roubou o meu carro.»

Em (3), a situação descrita como roubar corresponde a apropriar-se ilegitimamente de algo. Ora, quando isso acontece, a situação está concluída. O facto de a frase (3) poder querer dizer «que o meu carro está com ela» significa que o verbo roubar pode também ter o valor de «ficar com», construção que permite perspetivar a situação como estando a decorrer.

Disponha sempre!