Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Podem, por favor, identificar o tipo de dêixis presente em «Assinala-se esta quarta-feira o centenário do nascimento de José Saramago»?

Muito obrigada.

Resposta:

Na frase em questão, assinala-se a presença da dêixis temporal.

Os dêiticos temporais apontam para um intervalo temporal que tem por referência o “eu” no momento da enunciação.

No caso da frase apresentada, transcrita em (1), o locutor aponta para o dia da semana «quarta-feira» por meio do uso do determinante demonstrativo esta:

(1) «Assinala-se esta quarta-feira o centenário do nascimento de José Saramago.»

A expressão «esta quarta-feira» está diretamente ligado ao enunciador e ao momento em que ele proferiu o enunciado. Só estando em posses desses dados, conseguiremos identificar a referência temporal indicada pelo locutor.

A dêixis temporal construída poderá, deste modo, apontar para um intervalo de tempo que se sobrepõe ao momento de enunciação (o enunciado foi produzido na quarta-feira e o locutor aponta para o dia em que fala) ou para um momento futuro incluído na semana em que o locutor produziu o enunciado (por exemplo, o enunciado foi produzido na segunda-feira e o locutor aponta para a quarta-feira seguinte).

Disponha sempre!

Pergunta:

Ao ler um artigo de opinião num jornal português, a expressão «no imediato» deixou-me com uma dúvida.

No Brasil, é muito mais comum o uso de imediatamente, mas não sei se o significado é o mesmo no contexto de uso.

A oração era esta: «Devido à dimensão dos recursos, no imediato esses serviços são disponibilizados pelo oligopólio das grandes empresas tecnológicas.»

Talvez a interpretação seja a de que os serviços são «imediatamente disponibilizados» pelo oligopólio citado ou «estão imediatamente disponíveis» no oligopólio mencionado.

Agradeço-lhes muito pela ajuda para saber se a interpretação de «no imediato» é correta no contexto enviado.

Resposta:

A locução tem o significado de «no momento atual» e tem alguma frequência de uso.

Poderá, em algumas situações de uso, ser equivalente a imediatamente, como se verifica em (1), onde o sentido mobilizado é o de «no mesmo instante»:

(1) «A peça ficará disponível no imediato/imediatamente.»

Porém, noutros contextos em que a realidade temporal não equivale ao momento instantâneo, a equivalência já não ocorre, como fica patente em (2) e (2a), onde se descreve realidades distintas:

(2) «A área que levanta problemas no imediato é a cooperação política.»

(2a) «A área que levanta problemas imediatamente é a cooperação política.»

Disponha sempre!

Pergunta:

No poema "Seus Olhos", de Almeida Garrett, nos versos 4 e 5, «Não tinham luz de brilhar,/ Era chama de queimar», podemos aceitar a presença de três recursos expressivos, a metáfora, a hipérbole e a antítese?

Passo a explicar o meu ponto de vista.

– Metáfora e hipérbole (o poeta pretende realçar o poder que os olhos da mulher têm sobre ele e os sentimentos intensos que ela provoca, ao ponto de o fazer sofrer).

– Antítese (mostra que o amor que o sujeito poético sente é paradoxal, isto é, intenso, mas, ao mesmo tempo, destruidor).

Agradeço, desde já, a atenção e um possível esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, é possível considerar que nos versos em questão está presente uma combinação de tropos.

Identificamos, assim, uma metáfora associada à luz e outra associada ao fogo. Será possível também considerar que associada à metáfora do fogo é utilizada uma hipérbole que permite ampliar os sentimentos do sujeito lírico.

No entanto, a identificação de uma antítese nestes versos não parece viável, uma vez que este recurso consiste na «utilização de dois termos, na mesma frase, que contrastam entre si»1. Ora neste caso, luz e chama não contrastam entre si. Estabelecem antes uma gradação (da luz para o fogo) que permite descrever a intensidade dos sentimentos experimentados.

Disponha sempre!

 

 1. cf. E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia.

Pergunta:

É possível relacionar a conjunção adversativa mas com ideias de condição?

Por exemplo, na frase abaixo, pelo menos a meu ver, o sentido expresso pelo referido vocábulo se aproxima muito do mesmo valor da conjunção se ou da locução «desde que».

«Você até pode sair hoje à noite, mas não vá a nenhuma boate, nem consuma bebida alcoólica.»

Obrigado.

Resposta:

A conjunção mas pode ser associada a inúmeros valores1.

No caso da frase apresentada, mas pode expressar um valor de restrição que opera no plano das inferências. Assim, a primeira oração («Você até pode sair hoje à noite») desencadeia a inferência de que ao interlocutor foi concedida autorização para ir a qualquer lugar e fazer tudo o que é possível numa saída à noite. Todavia, as orações introduzidas por mas vêm cancelar essa inferência introduzindo-lhe uma restrição que corresponde a «não pode ir a boate; não pode beber álcool».

Deste modo, na frase em questão a conjunção mas opera sobretudo no plano pragmático.

Disponha sempre! 

1. A este propósito, consultem-se os textos associados.  

CfVirgula depois do “mas”?

Oxalá
Usos ao serviço da expressão de um desejo

Qual das frases está correta? «Oxalá que não chova!» ou «Oxalá não chova!» A professora Carla Marques dá a resposta a esta questão neste apontamento. 

(Apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2)