Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Confirmei no Dicionário Prático de Regência Nominal de Celso Pedro Luft que se escreve, tal como se ouve habitualmente, «sou licenciada em x PELA Universidade y» e «sou doutora(/doutorada) em x PELA Universidade y».

Pergunto, primeiro, se o mesmo se aplica – como seria de esperar – à designação mestre: é-se mestre em x POR [instituição de ensino y] (o dicionário referido é omisso neste ponto)?

Pergunto, depois, se é possível explicar gramaticalmente esta construção, que não é óbvia para mim.

Na frase «Sou licenciada pela Universidade y», «pela Universidade y» desempenharia, se compreendo bem, a função sintática de complemento agente da passiva – é a instituição de ensino que "licencia", i.e. que confere o grau académico de licenciado ao estudante. Não sei se este raciocínio está correto, e não consigo aplicá-lo aos outros casos: em «sou mestre pela Universidade y» e em «sou doutor pela Universidade y», o mesmo constituinte («pela Universidade y») não pode desempenhar a função sintática referida, parece-me. Conseguiriam explicar esta construção?

Obrigada pelo vosso precioso trabalho.

Resposta:

Tal como acontece com licenciado, também os nomes mestre e doutor podem ser acompanhados da informação que indica a área de especialização e a instituição que atribui o grau. Diremos, deste modo,

(1) «licenciado em linguística pela Universidade de Lisboa»

(2) «mestre em linguística pela Universidade de Lisboa»

(3) «doutor em linguística pela Universidade de Lisboa»

Relativamente às funções presentes nestas construções, teremos, antes de mais, de ter em consideração que o núcleo das estruturas é um nome, pelo que os constituintes que se relacionarem com ele desempenharão as funções associadas ao nome. Neste caso particular, os constituintes «em linguística» e «pela Universidade de Lisboa» desempenham a função de complemento do nome.

Existe uma relação entre o nome (ou adjetivo) licenciado e a forma verbal licenciar, pelo que a construção apresentada em (1) é próxima das que se apresentam em (4) e (5):

(4) «Ele é licenciado em linguística pela Universidade de Lisboa.»

(5) «A Universidade de Lisboa licenciou-o em linguística.»

No caso de (4), estamos perante uma frase passiva e os constituintes «em linguística» e «pela Universidade de Lisboa» desempenham, respetivamente, as funções de complemento oblíquo e de complemento agente da passiva. Já na frase (5), o constituinte «A Universidade de Lisboa» é sujeito e «em linguística» complemento oblíquo.

Quando o verbo licenciar se converte no nome licença, que é deverbal, este último herda a estrutura argum...

Pergunta:

Tenciono questionar um determinado grupo de pessoas, solicitando-lhes uma palavra como resposta (família, união, doces,...).

Tenho dúvidas relativamente à melhor opção:

a) De que vais vestir o teu Natal?

b) Do que vais vestir o teu Natal?

Agradecida.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis. Todavia, a opção mais natural será a que se transcreve em (1):

(1) «De que vais vestir o teu Natal?»

Nesta opção, usa-se o pronome interrogativo que antecedido da preposição de, pedida pelo verbo vestir («vestir alguém de alguma coisa»), o que indica que o constituinte que desempenha a função de complemento oblíquo.

É possível, no entanto, combinar o interrogativo que com o determinante artigo o. Esta possibilidade forma a locução interrogativa «o que», que é, em muitas situações equivalente ao uso de que:

(2) «Que queres comer?»

(3) «O que queres comer?»

No caso em apreço, tanto será possível usar a frase apresentada em (1) como a construção apresentada em (4):

(4) «Do que vais vestir o teu Natal?»

A opção entre as frases (4) e (1) poderá associar-se a razões estilísticas, contexto em que poderemos considerar que a frase (1) parece mais natural e agradável ao ouvido.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Fui passear pelo jardim» – «pelo jardim» é complemento oblíquo ou modificador do grupo verbal?

Resposta:

O constituinte «pelo jardim» desempenha a função sintática de complemento oblíquo na frase transcrita em (1)

(1) «Fui passear pelo jardim.»

O verbo passear pode ser usado como intransitivo (1), como transitivo direto (2) ou como transitivo indireto (3):

(2) «Fui passear.»

(3) «Passeou o cão.»

(4) «Fui passear para Lisboa.»

Neste último caso, o verbo pede um complemento oblíquo. O mesmo acontece na frase (1), na qual o verbo se constrói com um argumento interno introduzido pela preposição por («pelo jardim»), que desempenha a função de complemento oblíquo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Poder-me-ia esclarecer sempre o ato de fala presente na frase «Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia», presente no discurso de Martin Luther King?

É possível considerar um ato de fala diretivo? E assertivo?

Muito obrigado.

Resposta:

Podemos considerar que a frase em apreço configura um ato ilocutório diretivo indireto.

Antes de mais, recordemos que existe uma diferença entre as expressões «ato de fala» e «ato ilocutório». O ato de fala é um conceito que descreve as ações realizadas por um locutor através de um enunciado, visando intencionalmente obter algo. Um ato de fala é composto por três atos: o ato locutório, que corresponde ao enunciado pronunciado na sua materialidade linguística; o ato ilocutório, que corresponde ao ato realizado pelo locutor quando pronuncia um determinado enunciado; o ato perlocutório, que corresponde ao efeito produzido por um ato ilocutório no interlocutor. 

Neste caso particular, interessa-nos identificar o ato ilocutório veiculado pelo enunciado. Considerando que os atos ilocutórios diretivos têm o objetivo ilocutório procurar levar o interlocutor a realizar uma ação futura, poderemos considerar que, no contexto em que foi produzido o discurso político, o locutor tinha a intenção de incitar os interlocutores a uma ação que permita tornar reais e concretas as ideias da democracia. De acordo com essa interpretação, estamos perante um ato ilocutório diretivo.

Trata-se, todavia, de um ato ilocutório diretivo indireto porque o locutor não expressa uma ordem de forma direta. Esta ordem é atenuada por meio do recurso a uma frase declarativa, que, no entanto, pode ser interpretada como equivalente a (1), onde a ordem é apresentada de forma direta:

(1) «Vamos tornar reais as promessas da Democracia.»

Não consideramos que a frase apresentada pelo locutor veicule um ato ilocutório assertivo porque a intenção do enunciado não parece estar veiculada a um valor de verdade da afirmação. Por essa razão, não consideramos que a frase seja equivalente à afirmação apresentada em (2) porque o objetivo ilocutório não parece resumir-se, neste...

Pergunta:

Pode um sítio ser simpático? E um objecto? É a simpatia exclusiva dos seres vivos?

Conheço uma pessoa que regularmente afirma «este sítio é simpático» ou «este jantar é simpático», mas não consegue clarificar exatamente o que isso significa. Gera-se então a discussão do que significa ser simpático e se pode ser aplicável a lugares e objectos inanimados.

dicionário Priberam define simpático como «que inspira simpatia». Consigo conceber que isso se aplique a um local (mas não uma refeição) até ler a definição de simpatia no mesmo dicionário: «Sentimento de atração moral que duas pessoas sentem uma pela outra.» Esta definição nem dá latitude para animais serem simpáticos (discutível), mas parece de todo fechar a porta a objetos. Isto é, até ler a definição de moral: «Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL.» Um sítio pode invocar uma atração espiritual, mas se formos por este caminho temo que já nos estejamos a afastar demasiado do cerne da questão.

Recapitulando: pode a palavra simpático ser aplicada a seres não vivos?

Resposta:

O adjetivo simpático pode surgir em construções aplicado a entidades não humanas.

O adjetivo simpático deriva do nome simpatia e dele herda os traços semânticos que, nas aceções mais gerais, contribuem para a descrição de uma «afinidade moral, similitude no sentir e pensar que aproxima duas ou mais pessoas»1. Também pode descrever uma «impressão agradável, disposição favorável que se experimenta em relação a alguém que pouco se conhece»1 ou referir uma «pessoa que costuma ser agradável, delicada, afável»1. Podemos, assim, concluir que simpatia/simpático nas aceções denotativas previstas nos dicionários se aplica a entidades humanas.

No entanto, na língua, é possível recorrer a processos de extensão semântica, mais ou menos criativos, que permitem usos que à partida não estavam previstos. Estes procedimentos podem ocorrer, por exemplo, por meio de recursos expressivos que exploram usos criativos da linguagem. Tal pode ocorrer com o adjetivo simpático, que, por exemplo, por meio da construção de uma hipálage2, pode ser aplicado a entes não humanos. Tal acontece porque este recurso permite a transferência de uma característica humana para um animal ou objeto. Neste contexto, no Corpus do Português, de Mark Davies, na secção histórica, os usos do adjetivo simpático aplicado a diversas realidades estão bem documentados, o que mostra que nem sequer estamos perante um modismo recente:

(1) «Trazia um vestido simples, simpático, alegre, um grande avental claro – e os dentes brancos s...