Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «A questão colocada era idêntica, mas com o número 5 no enunciado, na vez do número 7», a expressão «na vez de» surge como alternativa a «em vez de».

Diria que só esta é que está correta, mas não estou seguro. São aceitáveis ambas as expressões?

Agradeço antecipadamente.

Resposta:

Na frase em questão, a locução «em vez de» é preferencial.

O nome comum vez pode surgir em diferentes situações de uso. Entre elas, regista-se a sua presença em variadas locuções, como «em vez de», cujo sentido é o de «em substituição a, em lugar de» ou «ao contrário de, ao inverso de; ao invés de»1, como se observa nos exemplos (1) e (2), respetivamente:

(1) «Comprou um vestido de seda em vez daquele de algodão.»

(2) «Em vez de rir, chorou.»

Ora, na frase em questão, o sentido mobilizado é o que aqui se apresenta em (1), pelo que se sugere o uso preferencial da locução «em vez de»:

(3) «A questão colocada era idêntica, mas com o número 5 no enunciado, em vez do número 7.»

Note-se que é possível encontrar o nome vez associado à contração da preposição em com o artigo definido a, como em (4) ou (5):

(4) «Ele falou na vez do João.»

(5) «Ele jogou na vez do João.»

Em (4), não estamos perante o sentido apontado em (1), mas sim num uso que conjuga o uso do verbo falar combinado com a preposição em, que aquele rege, seguidos do grupo nominal «a vez do João», pelo que o sentido da frase é o que o locutor falou no momento em que o João iria falar. Já na frase (5), temos uma situação similar: o verbo jogar rege a preposição em, que é seguida do grupo nominal «a vez do João».

Em determinadas situações, a significação da construção presente em (4) e (5) pode, não obstante, ficar muito próxima da que se assinala em (1), mas estamos perante uma situação distinta do ponto de vista sintático.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

A conjunção ou indubitavelmente é classificada como conjunção alternativa em qualquer livro de gramática. Não obstante, vejo que no contexto abaixo o sentido expresso por ela está mais adição em vez de alternância. Seria correto classificá-lo como conjunção aditiva?

«O professor fala português ou inglês fluentemente.»

Obrigado.

Resposta:

Na frase transcrita em (1), a conjunção ou é usada com o valor de inclusão:

(1) «O professor fala português ou inglês fluentemente.»

A conjunção ou pode ser usada com um valor exclusivo, sinalizando que a articulação entre dois elementos aponta para a opção por um deles, como se observa em (2) e (3):

(2) «Vou à praia ou vou à biblioteca.»

(3) «Podes escolher o João ou o Pedro.»

A conjunção ou pode também ser usada com um valor inclusivo, sinalizando que os dois elementos coordenados são ambos considerados (não existindo a exclusão de um deles, como no valor acima descrito). Veja-se o exemplo apresentado em (4):

(4) «Todos os alunos, meninos ou meninas, vão à visita de estudo.»

Na frase apresentada pelo consulente, a conjunção ou apresenta este último valor. 

Disponha sempre!

Pergunta:

Estaria correto afirmar que, no contexto abaixo, o advérbio agora está fazendo as vezes de um conector cujo valor semântico se aproxima bastante de uma consequência?

«Você quis que fosse dessa forma; agora, aguente as consequências.»

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço agora funciona como um marcador discursivo que assinala um valor consequencial.

Os marcadores discursivos unem segmentos do discurso auxiliando no processamento das relações que se estabelecem entre eles. O marcador agora pode ser usado com diferentes valores, mas, no caso da frase transcrita em (1), assinala uma relação de causa-efeito:

(1) «Você quis que fosse dessa forma; agora, aguente as consequências.»

Em (1), o marcador agora sinaliza a relação entre dois atos de fala: um ato assertivo, que descreve um estado de coisas; um ato ilocutório diretivo, que descreve uma situação que o locutor pretende que o interlocutor venha a realizar. Esta ordem/conselho é sinalizada(o) por agora como uma consequência do estado de coisas descrito na primeira oração. Por esta razão, o enunciado em análise inscreve-se também numa intenção argumentativa por parte do locutor.

Disponha sempre!

Pergunta:

Antes de mais, boa noite. Durante uma conversa com um amigo, surgiu uma duvida gramatical, após a frase «lembrei-me quando estava para a cozinha», ter sido dita.

A frase «lembrei-me quando estava para a cozinha» é gramaticalmente válida?

Quando penso na mesma, a frase que me parece correta seria «lembrei-me quando estava na cozinha», contudo, quando separo e analiso as palavras individualmente e com as respetivas ligações, não consigo encontrar um motivo para a mesma estar errada. Sendo que a ausência de motivos ainda é acompanhada pelo reforço da expressão «para a», ser comumente utilizada noutras frases tal como por exemplo, «lembrei-me quando fui para a cozinha». Neste momento, apenas estou confuso, e não consigo perceber o porquê de num sitio, soar estranho/errado.

Agradeço que quem potencialmente responder justifique e explique um pouco o porquê, independentemente de certo ou errado.

Resposta:

No caso em análise, a construção «estar para» é usada coloquialmente para localizar o sujeito da frase num dado espaço físico.

A estrutura «estar para» pode ser usada com diversos sentidos, tais como «sentir disposição ou inclinação (ger. us. em orações negativas)»1, como se exemplifica em (1):

(1) «Não estou para conversas.»

Também é usada em estruturas comparativas, em construções como a que se assinala em (2):

(2) «O casaco está para o Rui como o sol está para o verão.»

A construção pode também surgir com um valor modal que assinala o início iminente de uma dada situação:

(3) «Ele está para chegar.»

Por fim, sobretudo em contextos de oralidade informal, a construção usa-se para indicar, de forma difusa, um local afastado do locutor e/ou do interlocutor onde se encontra, encontrou ou encontrará o algo/alguém. Encontramos na literatura2 registos deste uso, associados sobretudo a situações de interação verbal entre personagens:

(4) «− O rapaz − tornou Gaudêncio − esse é arraçado, mas está para o moinho, desde ontem ao pôr do sol, a moer uma fanega.» (Manuel Ribeiro, A Planície Heróica, 1927)

(5) «− O Sr. Padre Soeiro, creio que está para casa da Srª D. Arminda…» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires.)

(6) «− Coitado, lá está para Celorico.» (Eça de Queirós, Os Maias.)

Pergunta:

Qual o recurso expressivo presente no excerto que transcrevo abaixo (a partir de «Começou por pintar...»)? Personificação ou enumeração?

«É que Dandy1 já não era o cachorro sem juízo. Amadurecido pela vida dura que levara na quinta do lavrador, tornou-se um companheiro de se lhe tirar o chapéu. Começou por pintar as cadeiras que tinha roído. Depois tomou a seu cargo vários trabalhos domésticos: lavava a louça, remendava lençóis e toalhas; fazia compras no minimercado. Para além de tudo isso deu-se ao luxo de estudar a História do Império Romano.» (Ilse Losa, O Rei Rique e outras histórias. Porto Editora, 2006, p. 21).

Obrigada.

 

1. A personagem Dandy é um cão.

Resposta:

Ambos os recursos expressivos estão presentes no segmento de texto assinalado.

Por um lado, recordemos que a personificação é o recurso que «consiste em atribuir qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais»1. Ora, no excerto em questão, o cão Dandy assume comportamentos tipicamente humanos no âmbito dos trabalhos domésticos, tais como lavar a roupa, remendar roupa, ir às compras. Nesta descrição, a descrição da personagem corresponde, assim, a um processo de personificação.

Para além disso, uma vez que a descrição do cão Dandy assenta numa listagem de tarefas, nela identificamos a presença da enumeração.

Disponha sempre!

 

1. Carlos Ceia, E-dicionário de termos literários.