Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Agradecia que me clarificassem quando «garantir que...» pede conjuntivo.

As seguintes frases não me parecem corretas:

a) «Como vamos garantir que todos os que nos procuram serão tratados com a dignidade e a humanidade que merecem?»

Não devia ser «SEJAM tratados»?

b) «Como garantir que a inteligência artificial será ética e segura?»

c) «Temos agora de garantir que os governos respondem à chamada.»

d) «Como garantir que Portugal ficará pobre para sempre?»

Obrigadíssima.

Resposta:

A construção «garantir que» pode incluir na oração completiva tanto o modo indicativo como o modo conjuntivo.

O indicativo permite apresentar uma situação real (que aconteceu ou vai acontecer):

(1) «Como vamos garantir que todos os que nos procuram serão tratados com a dignidade e a humanidade que merecem?»

(2) «Como garantir que a inteligência artificial será ética e segura?»

(3) «Temos agora de garantir que os governos respondem à chamada.»

(4) «Como garantir que Portugal ficará pobre para sempre?»

A opção pelo modo conjuntivo marcará uma situação hipotética, não dada como factual:

(5) «Como vamos garantir que todos os que nos procuram sejam tratados com a dignidade e a humanidade que merecem?»

(6) «Como garantir que a inteligência artificial seja ética e segura?»

Nas frases (3) e (4), o conjuntivo não parece muito aceitável, talvez porque se faça referência a uma situação real.

Disponha sempre!

Pergunta:

É sabido que algumas profissões aparecem nos dicionários como «nome masculino».

Embora comandante seja um nome com dois géneros, subcomandante aparece em alguns dicionários como masculino (como no caso da Infopédia).

A minha dúvida é a seguinte:

Se realmente o género de subcomandante é apenas masculino, como se deveria chamar a uma mulher que ocupa esse cargo?

«A Isabel é o subcomandante da marinha» ou «A Isabel é a subcomandante da marinha»?

Resposta:

A forma transcrita em (1) está correta:

(1) «A Isabel é a subcomandante da marinha.»

Nem todos os dicionários estão atualizados relativamente às profissões e ao seu género, nomeadamente no campo militar, pelo que teremos de os consultar com o devido cuidado. No caso do nome subcomandante, este tem dois géneros tal como comandante.

Há, todavia, dicionários que já atualizaram esta realidade. Este aspeto será mais visível nos dicionários disponíveis em linha, que atualizam com frequência os seus dados. Por exemplo, o Dicionário Houaiss já prevê os dois géneros da palavra, como se observa na informação que apresenta: «subcomandante princ. etim. adjetivo e substantivo de dois gêneros que ou aquele que é imediato ao comandante ou o substitui».

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «A aluna pediu para ir à casa de banho», qual a função sintática da oração «para ir à casa de banho»?

Esta frase encontra-se em dois manuais de Português com soluções diferentes: num é complemento direto, noutro é complemento oblíquo.

Neste último caso, é dada a seguinte explicação: «Quando o verbo pedir é seguido pela preposição para e uma oração subordinada substantiva, a oração subordinada funciona como complemento oblíquo, indicando a finalidade da ação. assim, "para ir à casa de banho" indica a finalidade do pedido.»

Estou confusa!

Obrigada!

Resposta:

A oração em questão desempenha a função de complemento direto.

Tipicamente os verbo que são seguidos de oração infinitiva ligam-se a ela sem uma preposição. Há, contudo, casos em que a preposição surge, como se observa em (1) e (2):

(1) «Ele insistiu em ajudar o Manuel.»

(2) «Ele obrigou a Rita a vir com ele.»

Nestes casos, os verbos que regem uma preposição («insistir em»; «obrigar a») são seguidos de oração infinitiva. Quando se substitui a oração infinitiva por um pronome, observamos que a preposição se mantém junto do verbo porque estabelece uma ligação com ele e não com a oração infinitiva:

(1a) «Ele insistiu nisso (=em + isso).»
(2a) «Ele obrigou a Rita a isso.»

Quando os verbos diretivos são acompanhados de oração infinitiva, podem ocorrer com a preposição para, como acontece na frase apresentada pela consulente1:

(3) «A aluna pediu para ir à casa de banho.»

Se substituirmos a oração infinitiva por um pronome, constatamos que, ao contrário do que se verificou nas frases (1) e (2), na frase (3), a preposição para não ocorre junto do verbo:

(3a) «A aluna pediu isto.»

Este facto significa que a preposição para integra a oração completiva, como acontece com a conjunção que em (4):

(4) «A aluna pediu que trouxéssemos os cadernos.»

(4a) «A aluna pediu isto.»

Por essa razão, concluímos que em (3), a oração «para ir à casa de banho» desempenha a função de complemento direto.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Barbosa e Raposo in Raposo et. al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1913-1915 e 1929-1931.

Por exemplo
Uma locução adverbial

Qual a natureza da locução «por exemplo»? A professora Carla Marques aborda a questão no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2 (edição de 17 de março de 2024). 

Pergunta:

No excerto:

«O último elemento do grupo, o narrador, não era tão sonhador como os outros e, por isso, não via forma nenhuma naquela nuvem. Para não ficar mal perante os outros, ele afirma que vê um hipopótamo. Perante tal afirmação, toda a gente ficou espantada.»

As classes e subclasses das palavras via e para são, respetivamente, verbo principal transitivo direto e indireto (seleciona complemento direto e complemento indireto) e conjunção subordinativa final?

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço, o verbo ver é um verbo transitivo direto e indireto e a palavra para pode ser, no quadro do Dicionário Terminológico, classificada como conjunção subordinativa final.

Na frase transcrita abaixo, o verbo ver pede um complemento direto e um complemento oblíquo, tendo um funcionamento de verbo transitivo direto e indireto:

(1) «Ele não via forma nenhuma naquela nuvem.»

Para confirmar a natureza de um verbo e para distinguir os constituintes que desempenham função de complemento dos que desempenham a função de modificador, podemos usar dois testes (leia-se esta resposta): o teste da pergunta-resposta e o teste de clivagem. Apliquemo-los (para facilitar a análise colocamos a frase na forma afirmativa):

(2) «Ele via uma forma naquela nuvem.»

(i) Teste da pergunta-resposta:

     (2a) P: «O que é que ele fazia?»

             R: «via uma forma naquela nuvem.»

    (2b)  P: «*O que ele que ele fazia naquela nuvem?»

              R: «*via uma forma»

(ii) Teste de clivagem:

      (2c) «É ver uma forma na nuvem que ele faz?»

             «*É ver uma forma que ele faz naquela nuvem?»

Ambos os testes pretendem verificar se é possível afastar constituinte do verbo ou se este afastamento determina uma construção agramatical. Os constituintes que se podem afastar do verbo não são seus argumentos, ou seja, não são complementos do...