Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A dúvida que tenho diz respeito ao grau.

É discutível que a formação do grau seja um processo flexional?

A flexão é sistemática e obrigatório, contudo não se nota isto no que diz respeito ao grau. Não sei se estou a complicar um pouco, mas gostaria de esclarecer esta dúvida.

Obrigada

Resposta:

Alguns tipos de grau ocorrem por processos flexionais.

A flexão é um processo morfológico que está ao serviço das intenções comunicativas do locutor e que permite ajustar as palavras variáveis a determinadas categorias. A flexão ocorre por processos de afixação, sendo o mais frequente caracterizado pela junção de um sufixo a uma forma de base.

Consideramos dois tipos de flexão, a verbal e a nominal e adjetival. A flexão verbal ocorre nas categorias pessoa, número, tempo e modo. Os sufixos que marcam a flexão de cada categoria não são visíveis em todos os casos, pelo que se considera que se encontram amalgamados, como se observa no exemplo:
(1) «cantávamos = canta[tema verbal] va[flexão modo e tempo] mos[flexão pessoa e número]»

A flexão nominal e adjetival ocorre nas categorias número (2), género (3) e grau (4):

(2) «gato – gatos»

(3) «gato – gata»

(4) «gato – gatinho – gatão»

Em cada caso, assinalamos o sufixo que marca a flexão em categoria.

No caso particular do grau, podemos distinguir a flexão dos nomes, que marca os graus aumentativo e diminutivo, da flexão dos adjetivos. Esta última é um processo morfológico quando resulta da junção de um sufixo de grau à base adjetival, como acontece no grau superlativo absoluto sintético (5):

(5) «alto – altíssimo»

Os restantes graus dos adjetivos não são expressos por processos morfológicos, mas sim por processos sintáticos, uma vez que resultam da junção de duas ou mais palavras, como se observa em (6) onde se apresenta o grau superlativo absoluto analítico:

(6) «alto – muito alto»

Pergunta:

É possível considerar a presença de deítico pessoal na frase «Atualmente, os alunos estudam bastante», mesmo estando a forma verbal na 3.ª pessoa?

Obrigada.

Resposta:

Sem outro contexto, na frase não está presente um deítico pessoal.

Os deíticos pessoais são palavras que têm como referência extralinguística o locutor ou o interlocutor a quem aquele se dirige. No caso em apreço, o locutor não parece estar a dirigir-se aos alunos, falando diretamente com eles. A frase apresentada parece indicar que o locutor fala dos alunos, daí a 3.ª pessoa do plural. Por esta razão, não consideramos que a frase inclua deíticos de pessoa.

Disponha sempre!

A locução «a par com»
Sinónima de «a par de»

O valor da locução «a par de» dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques, partilhado no programa Páginas de Português, da Antena 2 (em 17/11/2024).

Pergunta:

Estou com dúvida nisso pois acho bem estranho, o uso do de esta correto na frase do exemplo:

Ex: «um saco de farelo de milho»

Sempre que há uma frase em que o de aparece duas ou mais vezes, eu acho um pouco estranho.

Obrigado.

Resposta:

A construção não é errada, embora possa provocar estranheza do ponto de vista da sonoridade.

Na expressão apresentada em (1) está presente uma sequência de grupo nominais organizados de forma hierárquica:

(1) «[um saco de [farelo de milho]]»

Nesta construção o núcleo é o substantivo saco, que é complementado pelo grupo preposicional «de farelo (de milho)», que especifica o conteúdo do saco em questão. Por seu turno, o nome farelo assume-se como núcleo do grupo preposicional «de milho», que vai especificar a natureza do farelo referido na construção. O facto de o substantivo nuclear se ligar ao constituinte que completa a informação por meio da preposição de é muito comum. Na construção em análise, esse fenómeno ocorre duas vezes num contexto de muita proximidade do ponto de vista sintático, o que provoca a estranheza que refere o consulente, pela repetição da preposição de. Todavia, como se disse, não estamos perante uma construção incorreta, mas apenas menos elegante.

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Pergunta:

Como classifica a palavra último?

Trata-se de um adjetivo qualificativo ou numeral?

Resposta:

A palavra último é um adjetivo qualificativo.

Os adjetivos numerais equivalem à classe dos numerais ordinais na gramática tradicional, que são assim definidos por Cunha e Cintra: «Os numerais ordinais indicam a ordem de sucessão dos seres ou objetos numa dada série.»1. Nas frases (1) e (2), as palavras destacadas são adjetivos numerais que indicam a ordem da palavra que acompanham:

(1) «Ele escreveu o primeiro livro.»

(2) «Ficou em vigésimo lugar na corrida.»

A palavra último também convoca uma ideia de ordem. Daí a sua proximidade com os ordinais, contudo não equivale a um numeral, pelo que é considerado um adjetivo qualificativo. Evanildo Bechara identifica um conjunto de palavras que tem características similares a último, todas elas adjetivos qualificativos: «Último, penúltimo, antepenúltimo, posterior, derradeiro, anteroposterior e outros tais, ainda que exprimam posição do ser, não têm correspondência entre os numerais e por isso devem ser considerados meros adjetivos.»2

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova Gramática do português contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 383.

2. Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Editora Lucerna, pág. 206.