Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nas frases «Corri de tênis» e «Saí de vestido», como seriam classificados “de tênis” e “de vestido”? Seriam adjuntos adverbiais de instrumento? Não encontro uma classificação para eles...

Admiro muito o trabalho realizado neste site.

Agradeço desde já pela atenção.

Resposta:

Os constituintes em questão desempenham a função sintática de adjuntos adverbiais de modo1.

Em primeiro lugar, tanto o verbo correr como o verbo sair são, nas frases apresentadas, intransitivos. Daí a possibilidade de formarem frase sem necessidade de um constituinte que os complemente:

(1) «Corri.»

(2) «Saí.»

Assim sendo, os constituintes que acompanham os verbos nas frases que tratamos são adjuntos adverbiais.

No que respeita ao tipo de adjunto, verificamos que os constituintes «de tênis» e «de vestido» respondem às questões «como?» ou «de que modo ou maneira»:

(3) «Corri como?» – «De tênis.»

(4) «Saí como?» – «De vestido.»

Assim, verificamos que os constituintes em análise «se reportam ao verbo ou ao sintagma verbal da oração, para qualificar ou descrever como o processo verbal se realiza», tal como afirma Bechara (cf. Moderna gramática portuguesa. Nova Fronteira / Lucerna, p. 365).

Conclui-se, deste modo, que estamos perante dois constituintes com a função sintática de adjunto adverbial de modo.

Disponha sempre!

 

1. No âmbito da nomenclatura gramatical utilizada no ensino não superior, em Portugal, estes constituintes têm a função sintática de modificador (do grupo verbal). (Cf. Dicionário Terminológico em linha)

Pergunta:

Na oração «Ele viveu infeliz», «infeliz» é predicativo do sujeito? Mesmo que o verbo viver não seja copulativo?

Obrigada desde já.

Resposta:

Na frase em apreço, infeliz tem a função de predicativo do sujeito.

Tal como é afirmado, o verbo viver não é copulativo, mas sim um verbo principal, ou pleno, na medida em que se caracteriza por descrever o tipo de situação expresso na oração, selecionar o tipo de sujeito e mostrar marcas de concordância com o sujeito1.

Não obstante, existe um conjunto reduzido de verbos principais que selecionam predicativo do sujeito. Entre eles encontram-se passar (por), dar-se (por), sentir-se e viver2, que, em situações análogas às dos exemplos seguintes selecionam predicativo do sujeito:

(1) «Ele passou por muito inteligente

(2) «Ele deu-se por culpado

(3) «Ele sente-se feliz

(4) «Ele vive triste

Refira-se ainda que, com estes verbos, o predicativo do sujeito é frequentemente um adjetivo.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Quanto à resposta dada à consulta de Fernando Gaspar, em 30/9/2019, inclino-me a ficar com a impressão do consulente, em detrimento do parecer da consultora.

Se não, vejamos: o pronome o, a meu juízo, deve retomar um termo ou uma oração já referida, mas a oração já referida, no caso em tela, é «a irritação ditava-lhe uma violenta resposta», e não «dar uma violenta resposta» (a análise se deve fazer com o que está escrito, e não com ilações; do contrário, cada um poderia ter a sua e usar o pronome que lhe interessasse). Assim sendo, é impossível a substituição por causa do risco de ilogicidade. A forma lha se impõe, então; sendo a o pronome vicário de «violenta resposta».

Distração de Júlio Diniz.

Resposta:

Concordamos que a interpretação apresentada pelo consulente é válida e é possível. Todavia, ela tem como consequência assumir que Júlio Dinis errou. Não obstante o erro ser algo tão humano quanto, com toda a certeza, o foi Júlio Dinis, julgamos que é possível dar à frase uma interpretação distinta que a vê como um enunciado correto.

Tomemos, de novo, a frase (1) e nela o clítico o (amalgamado com lhe):

(1) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio DinisA Morgadinha dos Canaviais. Porto Editora, p. 448)

Relativamente à análise do pronome, consideremos os seguintes aspetos:

(i) o pronome clítico o é um pronome demonstrativo invariável, que é correlato da forma forte do demonstrativo isso, pelo que não pode assumir flexões no feminino ou no plural (não estamos perante a forma acusativa do pronome pessoal de terceira pessoa que, essa sim, flexiona em género e número);

(ii) o pronome clítico demonstrativo o denota um predicado e não uma entidade e «ocorre com verbos que selecionam frases por objecto direto» (Matos em Mateus,

Pergunta:

A minha dúvida está relacionada com a expressão «não me diga que...», e saber se o seu uso pressupõe uma dúvida (ou uma questão).

Se escrevo «não me diga que o acontecimento X teve lugar. (ponto final)», é correto (e habitual) pressupor que se está a questionar o acontecimento X?

Assim sendo, é legítimo afirmar que nem todas as questões têm necessariamente de terminar com um ponto de interrogação?

Desde já, obrigado.

Resposta:

Na ausência de um contexto que esclareça as intenções do locutor que profere esta frase, é difícil determinar qual a sua verdadeira intenção.

A frase apresentada é uma frase complexa, composta por uma oração subordinante, «Não me diga», e uma oração subordinada completiva, «que o acontecimento X teve lugar», cuja natureza cumpre aferir. Esta oração pode ser de três tipos:

 (i) é uma oração subordinada exclamativa: o locutor, após ter sido informado de que um dado acontecimento teve lugar de forma inesperada, exprime o seu espanto, afirmando «Não me diga que o acontecimento X teve lugar»;

(ii) é uma oração subordinada interrogativa: o locutor pretende averiguar se um dado acontecimento teve lugar e opta por interrogar o seu interlocutor de forma indireta, através do enunciado «Não me diga que o acontecimento X teve lugar»;

(iii) é uma oração subordinada declarativa: o locutor expressa o desejo de que o locutor não lhe apresente a situação descrita na subordinada.

No caso de a intenção ...

Pergunta:

A frase «Que dia é hoje?» é uma interrogativa direta. A frase «Veja que dia é hoje» é uma interrogativa indireta.

E a frase «Você pode ver que dia é hoje?» se enquadra em direta ou indireta? Por quê?

Resposta:

Convém começar por esclarecer que a frase

(1) «Veja que dia é hoje.»

pode não incluir uma oração subordinada interrogativa indireta. Aliás, consideramos que, sem outro contexto, o verbo ver é, preferencialmente, um verbo diretivo que seleciona como complemento direto uma oração completiva que corresponde à ordem dada. Estamos neste caso perante um ato ilocutório diretivo.

Se considerarmos que o verbo ver é usado como verbo de conhecimento ou desconhecimento, então a oração que o acompanha será uma completiva interrogativa indireta. Um contexto como o seguinte, no qual ver pode ser tomado como sinónimo de descobrir/verificar, é suscetível de esclarecer esta possibilidade de uso:

(2) «Não sei a data de hoje. Veja que dia é hoje.»

Estamos, neste caso, perante uma interrogativa indireta que, não obstante, não relata uma pergunta1 e 2. A diferença entre as duas interpretações está, portanto, relacionada com as intenções do falante e ocorre no domínio da pragmática, como se explica nesta