Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Qual a diferença na análise sintática entre as seguintes idênticas orações iniciadas por porque?

«Ela não foi atendida porque chegou tarde» – significando que «ela não foi atendida por causa de ter chegado tarde».

«Ela não foi atendida porque chegou tarde» – significando que «ela não foi atendida não por ter chegado tarde [mas por não ter apresentado o necessário requerimento]».

Obrigado.

Resposta:

A primeira frase apresenta uma oração subordinante («Ela não foi atendida») seguida de uma oração subordinada adverbial causal («porque chegou tarde»). Esta relação de subordinação pode ser confirmada pelo facto de a oração subordinada poder ser anteposta à subordinante:

(1) «Porque chegou tarde, ela não foi atendida.»

Em termos semânticos, a oração subordinada apresenta a causa real da situação descrita na oração subordinante:

(2) «O facto de ela ter chegado tarde fez com que ela não fosse atendida.»

A segunda frase é elítica, pois o seu sentido depende de uma construção de negativa alternativa1, que, na sua forma completa, corresponde à frase apresentada em (3):

(3) «Ela não foi atendida porque chegou tarde, mas (sim) porque não apresentou o necessário requerimento.»

Do pondo de vista semântica, estamos perante uma estrutura que apresenta a causa real da situação descrita na oração subordinante através de uma estrutura retificativa (não x, mas y). No plano sintático, identificamos uma coordenação adversativa de duas orações subordinadas adverbais causais, na qual a primeira é a negação da causa e a segunda a sua retificação.

Disponha sempre!

 

1. Designação proposta por Quirk et al. 1985, apud Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 203.

Pergunta:

Maria Helena Mira Mateus [et al.], na sua Gramática da Língua Portuguesa, pág. 552 dá o seguinte exemplo:

«Ele disse que o desastre tinha ocorrido de madrugada e que não havia sobreviventes.»

Aqui o que é conjunção integrante, não é assim?

Mas que vem a ser SCOMPs*?

Obrigado.

 

* N.E. Sobre a pluralização de siglas e acrónimos, ver, por exemplo, esta resposta.

Resposta:

A frase apresentada é constituída por uma oração subordinante complementada por duas orações subordinadas completivas que se coordenam entre si, tal como se evidencia na segmentação da frase em (1):

(1) «[Ele disse]oração subordinante [que o desastre tinha ocorrido de madrugada]oração subordinada substantiva completiva [e que não havia sobreviventes.]oração subordinada substantiva completiva»

De acordo com o enquadramento teórico proposto na Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus et al.,  as orações completivas são constituintes frásicos que têm como núcleo o complementador, que corresponde à palavra que. Este complementador, por seu turno, seleciona um constituinte frásico. Ao conjunto formado pelo complementador e pelo constituinte frásico que este seleciona dá-se a designação de «sintagma complementador», ou seja, SCOMP.

Na frase em apreço, estão presentes dois SCOMP, que correspondem às duas orações subordinadas substantivas completivas.

Disponha sempre!

Pergunta:

De acordo com a gramática tradicional, como se deve construir?

«O delicioso conto "O suave milagre" do escritor português Eça de Queirós surge INSERTO no livro tal», ou «O delicioso conto "O suave milagre" do escritor português Eça de Queirós surge INSERIDO no livro tal»?

Porquê?

Obrigado.

Resposta:

Inserir é um verbo com duplo particípio, com uma forma regular (inserido) e uma forma irregular (inserto).

De uma forma geral, as gramáticas resolvem o problema dos verbos abundantes, ou seja, aqueles que apresentam duplo particípio, através de uma distribuição sintática das formas participiais. Assim, refere-se, sempre de forma modalizada, que a forma regular do particípio dos verbos, a designada forma fraca, constrói-se com os verbos auxiliares ter e haver, ao passo que a forma irregular, a forma forte, é acompanhada pelos verbos ser ou estar.

É também facto que a forma participial dos verbos pode ser usada como adjetivo. No caso do verbo inserir, ambas as formas se encontram atestadas pelos dicionários com uso adjetival, sendo apresentadas como tendo significados sinónimos:

(1) «Leia-se o capítulo inserido no final da obra.»

(2) «Este assunto surge inserto no capítulo II da obra.»

Não obstante, verifica-se que a forma participial forte, inserto, tem tendência a entrar em desuso na língua portuguesa, como conclui o estudo de Villalva e Almeida1.

Assim sendo, qualquer uma das frases apresentadas pelo consulente está correta do ponto de vista gramatical, sendo a que recorre à forma inserido preferida do ponto de vista dos usos.

Disponha sempre!

 

1. Villalva, Alina e Almeida, Marta,

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