Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estaria correto afirmar que, no contexto abaixo, o advérbio agora está fazendo as vezes de um conector cujo valor semântico se aproxima bastante de uma consequência?

«Você quis que fosse dessa forma; agora, aguente as consequências.»

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço agora funciona como um marcador discursivo que assinala um valor consequencial.

Os marcadores discursivos unem segmentos do discurso auxiliando no processamento das relações que se estabelecem entre eles. O marcador agora pode ser usado com diferentes valores, mas, no caso da frase transcrita em (1), assinala uma relação de causa-efeito:

(1) «Você quis que fosse dessa forma; agora, aguente as consequências.»

Em (1), o marcador agora sinaliza a relação entre dois atos de fala: um ato assertivo, que descreve um estado de coisas; um ato ilocutório diretivo, que descreve uma situação que o locutor pretende que o interlocutor venha a realizar. Esta ordem/conselho é sinalizada(o) por agora como uma consequência do estado de coisas descrito na primeira oração. Por esta razão, o enunciado em análise inscreve-se também numa intenção argumentativa por parte do locutor.

Disponha sempre!

Pergunta:

Antes de mais, boa noite. Durante uma conversa com um amigo, surgiu uma duvida gramatical, após a frase «lembrei-me quando estava para a cozinha», ter sido dita.

A frase «lembrei-me quando estava para a cozinha» é gramaticalmente válida?

Quando penso na mesma, a frase que me parece correta seria «lembrei-me quando estava na cozinha», contudo, quando separo e analiso as palavras individualmente e com as respetivas ligações, não consigo encontrar um motivo para a mesma estar errada. Sendo que a ausência de motivos ainda é acompanhada pelo reforço da expressão «para a», ser comumente utilizada noutras frases tal como por exemplo, «lembrei-me quando fui para a cozinha». Neste momento, apenas estou confuso, e não consigo perceber o porquê de num sitio, soar estranho/errado.

Agradeço que quem potencialmente responder justifique e explique um pouco o porquê, independentemente de certo ou errado.

Resposta:

No caso em análise, a construção «estar para» é usada coloquialmente para localizar o sujeito da frase num dado espaço físico.

A estrutura «estar para» pode ser usada com diversos sentidos, tais como «sentir disposição ou inclinação (ger. us. em orações negativas)»1, como se exemplifica em (1):

(1) «Não estou para conversas.»

Também é usada em estruturas comparativas, em construções como a que se assinala em (2):

(2) «O casaco está para o Rui como o sol está para o verão.»

A construção pode também surgir com um valor modal que assinala o início iminente de uma dada situação:

(3) «Ele está para chegar.»

Por fim, sobretudo em contextos de oralidade informal, a construção usa-se para indicar, de forma difusa, um local afastado do locutor e/ou do interlocutor onde se encontra, encontrou ou encontrará o algo/alguém. Encontramos na literatura2 registos deste uso, associados sobretudo a situações de interação verbal entre personagens:

(4) «− O rapaz − tornou Gaudêncio − esse é arraçado, mas está para o moinho, desde ontem ao pôr do sol, a moer uma fanega.» (Manuel Ribeiro, A Planície Heróica, 1927)

(5) «− O Sr. Padre Soeiro, creio que está para casa da Srª D. Arminda…» (Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires.)

(6) «− Coitado, lá está para Celorico.» (Eça de Queirós, Os Maias.)

Pergunta:

Qual o recurso expressivo presente no excerto que transcrevo abaixo (a partir de «Começou por pintar...»)? Personificação ou enumeração?

«É que Dandy1 já não era o cachorro sem juízo. Amadurecido pela vida dura que levara na quinta do lavrador, tornou-se um companheiro de se lhe tirar o chapéu. Começou por pintar as cadeiras que tinha roído. Depois tomou a seu cargo vários trabalhos domésticos: lavava a louça, remendava lençóis e toalhas; fazia compras no minimercado. Para além de tudo isso deu-se ao luxo de estudar a História do Império Romano.» (Ilse Losa, O Rei Rique e outras histórias. Porto Editora, 2006, p. 21).

Obrigada.

 

1. A personagem Dandy é um cão.

Resposta:

Ambos os recursos expressivos estão presentes no segmento de texto assinalado.

Por um lado, recordemos que a personificação é o recurso que «consiste em atribuir qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais»1. Ora, no excerto em questão, o cão Dandy assume comportamentos tipicamente humanos no âmbito dos trabalhos domésticos, tais como lavar a roupa, remendar roupa, ir às compras. Nesta descrição, a descrição da personagem corresponde, assim, a um processo de personificação.

Para além disso, uma vez que a descrição do cão Dandy assenta numa listagem de tarefas, nela identificamos a presença da enumeração.

Disponha sempre!

 

1. Carlos Ceia, E-dicionário de termos literários.

Pergunta:

Podem, por favor, identificar o tipo de dêixis presente em «Assinala-se esta quarta-feira o centenário do nascimento de José Saramago»?

Muito obrigada.

Resposta:

Na frase em questão, assinala-se a presença da dêixis temporal.

Os dêiticos temporais apontam para um intervalo temporal que tem por referência o “eu” no momento da enunciação.

No caso da frase apresentada, transcrita em (1), o locutor aponta para o dia da semana «quarta-feira» por meio do uso do determinante demonstrativo esta:

(1) «Assinala-se esta quarta-feira o centenário do nascimento de José Saramago.»

A expressão «esta quarta-feira» está diretamente ligado ao enunciador e ao momento em que ele proferiu o enunciado. Só estando em posses desses dados, conseguiremos identificar a referência temporal indicada pelo locutor.

A dêixis temporal construída poderá, deste modo, apontar para um intervalo de tempo que se sobrepõe ao momento de enunciação (o enunciado foi produzido na quarta-feira e o locutor aponta para o dia em que fala) ou para um momento futuro incluído na semana em que o locutor produziu o enunciado (por exemplo, o enunciado foi produzido na segunda-feira e o locutor aponta para a quarta-feira seguinte).

Disponha sempre!

Pergunta:

Ao ler um artigo de opinião num jornal português, a expressão «no imediato» deixou-me com uma dúvida.

No Brasil, é muito mais comum o uso de imediatamente, mas não sei se o significado é o mesmo no contexto de uso.

A oração era esta: «Devido à dimensão dos recursos, no imediato esses serviços são disponibilizados pelo oligopólio das grandes empresas tecnológicas.»

Talvez a interpretação seja a de que os serviços são «imediatamente disponibilizados» pelo oligopólio citado ou «estão imediatamente disponíveis» no oligopólio mencionado.

Agradeço-lhes muito pela ajuda para saber se a interpretação de «no imediato» é correta no contexto enviado.

Resposta:

A locução tem o significado de «no momento atual» e tem alguma frequência de uso.

Poderá, em algumas situações de uso, ser equivalente a imediatamente, como se verifica em (1), onde o sentido mobilizado é o de «no mesmo instante»:

(1) «A peça ficará disponível no imediato/imediatamente.»

Porém, noutros contextos em que a realidade temporal não equivale ao momento instantâneo, a equivalência já não ocorre, como fica patente em (2) e (2a), onde se descreve realidades distintas:

(2) «A área que levanta problemas no imediato é a cooperação política.»

(2a) «A área que levanta problemas imediatamente é a cooperação política.»

Disponha sempre!