Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
113K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No semanário Expresso, num e-mail com uma resenha de notícias, li o seguinte texto: «Irão os israelitas retaliar o Irão?»

«"É um ponto de viragem, estamos num momento perigosamente imprevisível”, considera John Strawson, perito em Estudos do Médio Oriente, em declarações ao Expresso

A minha dúvida é sobre a utilização do verbo retaliar.

«Irão os israelitas retaliar o Irão» ou, o que me parece ser mais correcto, «irão os israelitas retaliar contra o Irão»?

Agradecendo uma vez mais o vosso interessante e útil serviço público, aguardo o vosso esclarecimento.

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas.

O verbo retaliar pode ser usado como1:

(i) transitivo direto, com complemento direto

    (1) «A China retaliou os Estados Unidos.»

(ii) transitivo indireto, com complemento oblíquo introduzido pela preposição contra

    (2) «A China retaliou contra os Estados Unidos.»

Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que a construção com a preposição contra é muito frequente em português europeu, o que poderá levar a que se considere uma construção mais correta do que outra, atendendo ao maior grau de exposição a uma do que a outra. Todavia, ambas estão corretas e poderão ser usadas nos mesmos contextos.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário Gramatical de verbos portugueses. Texto editores.

Pergunta:

Queria perguntar sobre três adjetivos relacionados com o choro: choroso, lagrimoso (lacrimoso), plangente.

Como compreendi a partir das definições dos dicionários, estes adjetivos podem ser considerados como sinónimos. Contudo, parece que existe uma diferença estilística entre eles.

Choroso parece ser uma palavra neutra, enquanto lagrimoso (lacrimoso) e plangente parecem ser palavras cultas, pertencentes à literatura. Será assim mesmo?

Também encontrei os exemplos em que todos os adjetivos mencionados se usam com a palavra voz: «voz chorosa»; «voz lagrimosa»; «voz plangente».

Digam, por favor, se estas três combinações de palavras têm o sentido diferente. Se sim, quais são as diferenças?

Desde já agradeço.

Resposta:

Os adjetivos choroso e lagrimoso poderão ser considerados sinónimos. Todavia, o adjetivo plangente já não se considerará um sinónimo perfeito dos anteriores.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, as palavras em análise têm a seguinte significação:

(1) choroso: «que verte lágrimas devido a uma forte emoção»

(2) lagrimoso: «que chora; que está banhado em lágrimas»

(3) plangente: «que exprime tristeza ou dor ou que é próprio de quem se lastima; que plange»

Concluímos, deste modo, que choroso e lagrimoso envolvem ambos as lágrimas, ao contrário de plangente que descreve a situação de se lastimar por tristeza ou dor, mas sem envolver diretamente o choro.

Relativamente aos usos de choroso e lagrimoso/lacrimoso, poderemos ainda acrescentar que o último adjetivo revela uma menor frequência de ocorrências do que o primeiro, no Corpus do Português, de Mark Davies e será sentido como mais literário.

Os adjetivos em análise podem ser combinados com diferentes nomes. Eis alguns exemplos, recolhidos do Corpus do Português, de Mark Davies:

(4) choroso: «final choroso», «rapaz choroso», «tom choroso», «olho choroso», «delírio choroso»

(5) lagrimoso/lacrimoso: «jovem lagrimoso», «ar lagrimoso», «som lacrimoso», «rosto lacrimoso»

Pergunta:

De uma forma muito resumida, costuma-se dizer que a forma simples do gerúndio indica uma ação em curso e a forma composta, por sua vez, indica uma ação concluída antes da ação expressa na oração principal.

No entanto nestas duas frases, as duas formas do gerúndio parecem indicar o mesmo tempo, posterioridade à ação expressa na oração principal:

Gerúndio simples: «Lendo o livro, podes sair.»

Gerúndio composto: «Tendo lido o livro, podes sair.»

Na minha leitura, as duas têm o valor de futuro. Está certa a leitura?

É uma particularidade das orações que exprimem a ideia de condição? Poderia dar-me outros exemplos de frases em que as duas formas têm o mesmo valor?

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço, o valor das duas formas verbais é similar.

O gerúndio simples estabelece o seu valor temporal pela relação que mantém com o predicado da oração subordinante. Quando a oração gerundiva é colocada em início de frase, o uso do gerúndio pode propiciar uma leitura com valor de anterioridade temporal relativamente ao tempo da subordinante:

(1) «Chegando a casa, foi dormir.»

O gerúndio simples pode igualmente veicular uma leitura de sobreposição relativamente ao tempo da subordinante:

(2) «Levando os alunos pela rua, mostrou-lhes os pontos de interesse.»

O gerúndio composto, por seu turno, assinala uma situação concluída, terminada e é sempre anterior ao tempo que toma como referência, que corresponde ao momento da enunciação. Assim, quando a oração gerundiva (composta) é colocada antes da oração subordinante, o seu valor aponta para a anterioridade temporal1:

(3) «Tendo enviado a mensagem, foi descansar.»

Assim, verificamos que os valores veiculados pelo gerúndio simples e composto nas frases (1) e (3) são idênticos, tal como se verifica nas frases apresentadas pela consulente.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 549-552.

Pergunta:

Sendo aspirante a tradutor-intérprete, deparo-me, por vezes, com dúvidas relativas ao uso correto de certas expressões (idiomáticas, populares, entre outras).

Neste sentido, venho pelo presente perguntar se é legítimo o uso da expressão «fora de órbita» no seguinte contexto, com o intuito de dar à mesma uma conotação negativa e com o intuito de esta significar que algo é anormal e negativamente muito elevado:

«O ano passado, em algumas águas, as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico estavam ao pé da letra fora de órbita para o sistema de alerta da NOAA.»

Muito obrigado pela atenção!

Resposta:

A construção proposta parece um pouco “barroca” para o pretendido. Antes de mais, será excessivo o uso de duas construções de valor estilístico seguidas («ao pé da letra» e «fora de órbita») num texto de objetivo não literário.

Para além disso, o valor da construção «fora de órbita», no contexto em que está a ser usada, não me parece claro, pelo que não está assegurado que signifique o que pretende. Não esqueçamos que o uso mais comum de «fora de órbita» ativa o sentido de «que está ou é mentalmente perturbado»1, o que poderá introduzir ruído na interpretação do enunciado.

Proponho, por estas razões, que faça uso de uma construção mais simples e transparente, como:

(1) «[…] as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico eram excessivos para o sistema de alerta da NOAA.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa

Pergunta:

A crítica é, em traços gerais, uma análise/apreciação positiva ou negativa de um objeto.

Essa "apreciação" (positiva ou negativa) poderá ser concretizada recorrendo a adjetivos valorativos ou depreciativos?

Cordialmente.

Resposta:

A crítica pode ser efetuada recorrendo tanto a adjetivos valorativos como depreciativos.

A produção de um texto que tem por objetivo a crítica de uma determinada situação ou objeto envolve uma análise apreciativa que procura identificar os aspetos que se realçam pela positiva ou pela negativa (ou até ambos). Deste modo, a expressão da opinião do locutor que assume o papel de crítico pode verter-se em léxico da valoração positiva ou negativa em função do juízo de valor que a apreciação do objeto/situação motivou.

Neste contexto, não se deve confundir o objetivo comunicativo do texto e até a sua organização estrutural (enquanto género de apreciação crítica) com o significado de crítica entendido como «julgamento, dito desfavorável, usado para censurar alguém ou alguma coisa, realçando-lhe os defeitos»1, um dos valores do nome crítica, que está presente em usos como (1), no qual a palavra equivale a «dizer mal, censurar»:

(1) «Para se destacar, ele dirige as suas críticas ao trabalho dos colegas.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.