Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Ele foi arrancado de casa À NOITE», confirma-se que o segmento destacado corresponde a um modificador do grupo verbal?

Agradecia o vosso esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, o constituinte «à noite» desempenha a função sintática de modificador (do grupo verbal).

A frase transcrita em (1), que se encontra na forma passiva, tem como forma ativa a frase (2)

(1) «Ele foi arrancado de casa à noite.»

(2) «[O João]1 arrancou-o de casa à noite.»

O verbo arrancar não pede como argumento um constituinte que forneça informação sobre o tempo, pelo que o constituinte «à noite» não é necessário para assegurar a gramaticalidade da frase. Para o comprovar, poderemos usar os testes que permitem distinguir um constituinte com função de complemento oblíquo de um com função de modificador do grupo verbal. Apliquemo-los à frase (2):

(i) Teste pergunta-resposta:

                P: «O que é que o João fez à noite?»

                 R: «Arrancou-o de casa.»

                P: «O que é que o João fez de casa?»

                 R: «*Arrancou-o à noite.»

(ii) Teste de clivagem:

               «Foi à noite que o João o arrancou de casa?»

           

Pergunta:

Podia dizer-me a diferença entre «estive a ler durante 2 horas» e «estava a ler durante 2 horas», do ponto de vista do significado?

Para mim, são frases idênticas, porque na combinação de «estar a» + infinitivo há um aspeto de continuidade e, embora estive não seja um verbo na forma do imperfeito («estive a» infinitivo), a frase tem um sentido de duração, pois o verbo não precisa de estar na forma do imperfeito para transmitir a continuidade da ação.

E, formulando a questão de outra forma:

1. Estava a ler quando a Maria chegou

2. Estive a ler quando a Maria chegou

Há alguma diferença entre as duas frases do ponto de vista do significado?

Resposta:

O pretérito perfeito do indicativo localiza uma situação num intervalo de tempo anterior ao momento de fala, descrevendo situações concluídas. Por essa razão, a frase apresentada em (1) descreve uma situação até ao seu ponto terminal (momento em que se deixou de ler):

(1) «Li durante duas horas.»

A combinação do verbo principal com o auxiliar aspetual «estar a» permite perspetivar a situação como durativa e, se o auxiliar for apresentado no pretérito perfeito, a situação é descrita como estando concluída:

(2) «Estive a ler durante duas horas.»

Ao contrário do pretérito perfeito, o imperfeito do indicativo não é adequado para descrever situações anteriores ao momento da enunciação. Este tempo pode, antes, ser usado para descrever a situação no seu decurso, perspetivando-a do seu interior, sem assinalar o seu início ou o seu fim. Por essa razão, frases simples como (3) ou (4) não são aceitáveis, porque nelas se combina o imperfeito com a sinalização do términus da situação.:

(3) «*Lia durante duas horas.»

(4) «*Estava a ler durante duas horas.»

No entanto, frases como (5) ou (6) já seriam aceitáveis porque a oração subordinada temporal «Sempre que ele lançava um livro» funciona como ponto de referência e o imperfeito passa a descrever situações que se repetem regularmente no passado:

(5) «Sempre que ele lançava um livro, eu lia durante duas horas.»

(6) «Sempre que ele lançava um livro, eu estava a ler durante duas horas.»

O imperfeito tem também a capacidade de atribuir duração a uma situação, como na frase (7), na qual este tempo verbal estabelece com a oração temporal uma relação de inclusão, ou seja, a oração «quando a Maria chegou» é incluída no interior da situação durativa «lia»:

<...

Pergunta:

Eu queria saber qual das frases está correta:

1. Ele cuidou que o décimo terceiro trabalho lhe tinha chegado.

2. Ele cuidou que o décimo terceiro trabalho a si tinha chegado.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas uma vez que, neste contexto, é possível usar tanto o pronome lhe como o pronome si.

O verbo chegar pode ser usado como transitivo indireto, construindo-se com um complemento preposicional, como em (1)

(1) «Os alunos chegaram à escola.»

Este verbo pode também ser usado como transitivo direto e indireto, tendo, portanto, um complemento direto e um complemento indireto:

(2) «Ele chegou o pão ao irmão.»

Neste caso, o constituinte com função de complemento indireto pode ser substituído pelo pronome lhe:

(2a) «Ele chegou-lhe o pão.»

Se atentarmos na frase adaptada a partir da que apresenta o consulente, verificamos que

(3) «O trabalho chegou ao João.»

(3a) «O trabalho chegou-lhe.»

Esta mesma estrutura pode ser combinada com o pronome si usado como reflexo ou como recíproco depois de uma preposição:

(4) «O trabalho chegou a/até si.»

Deste modo, as frases apresentadas pelo consulente são ambas possíveis.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «O evento caiu no esquecimento.», o segmento «no esquecimento» não poderá ser complemento oblíquo?

Obrigada.

Resposta:

A construção «cair no esquecimento» é idiomática.

O verbo cair pode ser usado como

(i) verbo intransitivo, não pedindo, portanto, nenhum complemento:

     (1) «Durante a guerra, muitos soldados caíram.»

(ii) verbo transitivo indireto, uso em que pede um complemento oblíquo:

     (2) «Ele caiu na estrada.»

     (3) «Ele caiu sobre o inimigo.»

Não obstante, no caso em análise, «cair no esquecimento» é uma construção idiomática (ver também esta resposta), que tem o valor de «apagar-se da memória»1, e é usada como estrutura fixa, pelo que não há lugar a análise dos seus elementos constitutivos.

 

Disponha sempre!

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

As minhas saudações a toda a equipe do Ciberdúvidas.

Gramáticas há que sugerem a formação proclítica de orações optativas «Bons olhos o vejam», «Bons ventos o levem», em vez de “Bons olhos vejam-no” e “Bons ventos levem-no”. Se eu entendi bem, poderia levantar a hipótese que orações desse tipo deriva de construção oracional do tipo «Eu desejo (que) …»?

Contudo, se se mudasse a ordem da oração, prevaleceria o fator de próclise “O vejam bons olhos” e “O levem bons ventos” ou mudaria para o fator de ênclise “Vejam-no bons olhos” e “Levem-no bons ventos”?

Porque, segundo gramáticas normativas, orações não podem iniciar por pronome oblíquos átonos. Acredito também que, se mantivesse a conjunção que, ficaria em próclise «Que os vejam bons olhos» e «Que os levem bons ventos», não é? Orações optativas e orações absolutas são a mesma coisa?

Então, que tendes a dizer-me de tudo isso?

Obrigado antecipadamente a toda a equipe por vir sanando muitas dúvidas do nosso idioma ao longo dos anos.

Resposta:

A expressão «bons olhos o vejam» é uma expressão idiomática, pelo que os seus constituintes são colocados com alguma rigidez na estrutura, não sendo possível alterar a sua ordem1. Deste modo, os exercícios de movimentação dos constituintes da expressão acabam por ser um exercício que não corresponde a uma realidade linguística.

Quanto à colocação do clítico, a próclise (colocação antes do verbo) ocorre porque a frase é optativa/exclamativa. Quando a frase inclui uma palavra exclamativa ou a própria frase tem uma natureza exclamativa, esses fatores geram próclise.

Disponha sempre!

 

 1. Não obstante, é possível substituir o pronome o por te: «Bons olhos te vejam».