Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
102K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No poema "Seus Olhos", de Almeida Garrett, nos versos 4 e 5, «Não tinham luz de brilhar,/ Era chama de queimar», podemos aceitar a presença de três recursos expressivos, a metáfora, a hipérbole e a antítese?

Passo a explicar o meu ponto de vista.

– Metáfora e hipérbole (o poeta pretende realçar o poder que os olhos da mulher têm sobre ele e os sentimentos intensos que ela provoca, ao ponto de o fazer sofrer).

– Antítese (mostra que o amor que o sujeito poético sente é paradoxal, isto é, intenso, mas, ao mesmo tempo, destruidor).

Agradeço, desde já, a atenção e um possível esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, é possível considerar que nos versos em questão está presente uma combinação de tropos.

Identificamos, assim, uma metáfora associada à luz e outra associada ao fogo. Será possível também considerar que associada à metáfora do fogo é utilizada uma hipérbole que permite ampliar os sentimentos do sujeito lírico.

No entanto, a identificação de uma antítese nestes versos não parece viável, uma vez que este recurso consiste na «utilização de dois termos, na mesma frase, que contrastam entre si»1. Ora neste caso, luz e chama não contrastam entre si. Estabelecem antes uma gradação (da luz para o fogo) que permite descrever a intensidade dos sentimentos experimentados.

Disponha sempre!

 

 1. cf. E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia.

Pergunta:

É possível relacionar a conjunção adversativa mas com ideias de condição?

Por exemplo, na frase abaixo, pelo menos a meu ver, o sentido expresso pelo referido vocábulo se aproxima muito do mesmo valor da conjunção se ou da locução «desde que».

«Você até pode sair hoje à noite, mas não vá a nenhuma boate, nem consuma bebida alcoólica.»

Obrigado.

Resposta:

A conjunção mas pode ser associada a inúmeros valores1.

No caso da frase apresentada, mas pode expressar um valor de restrição que opera no plano das inferências. Assim, a primeira oração («Você até pode sair hoje à noite») desencadeia a inferência de que ao interlocutor foi concedida autorização para ir a qualquer lugar e fazer tudo o que é possível numa saída à noite. Todavia, as orações introduzidas por mas vêm cancelar essa inferência introduzindo-lhe uma restrição que corresponde a «não pode ir a boate; não pode beber álcool».

Deste modo, na frase em questão a conjunção mas opera sobretudo no plano pragmático.

Disponha sempre! 

1. A este propósito, consultem-se os textos associados.  

CfVirgula depois do “mas”?

Oxalá
Usos ao serviço da expressão de um desejo

Qual das frases está correta? «Oxalá que não chova!» ou «Oxalá não chova!» A professora Carla Marques dá a resposta a esta questão neste apontamento. 

(Apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2)

Pergunta:

«Não DEVEMOS ter medo de nada e NÃO (devemos) DESISTIR da luta.»

Na frase anterior será possível subentender o verbo devemos entre o advérbio não e desistir?

Obrigado

Resposta:

A construção sem o verbo dever não é possível.

Os casos de elipse verbal1 normalmente envolvem orações de valor idêntico, como se exemplifica em (1):

(1) «O João comprou um livro e a Ana (comprou) um caderno.»

Para além disso, quando na primeira oração existe um complexo verbal (verbo auxiliar + verbo principal), normalmente apenas o primeiro é realizado na segunda oração, como em (2). Quando existe elipse do verbo principal, a estrutura será a mesma. Veja-se (3):

(2) «Os alunos têm comprado este livro e os professores também têm (comprado este livro).»

(3) «Os alunos têm comprado o livro azul e os professores (têm) comprado o livro azul.»

O processo de elipse que se propõe tem assim o problema de o complexo verbal ser diferente nas duas orações («dever ter medo» vs. «dever desistir»), o que dificulta a recuperação na oração coordenada do verbo auxiliar. Nesse caso, a opção natural para evitar a repetição seria a coordenação de orações infinitivas por meio da conjunção nem:

(4) «Não devemos ter medo de nada nem desistir da luta.»

A frase (4) distingue-se da frase proposta pelo consulente porque naquela construção se procura proceder a uma coordenação de estruturas oracionais negativas, o que impede a elipse. Já na frase (4), apresenta-se uma negação oracional de coordenação, o que ocorre pela utilização da conjunção nem2.

 

1. Cf. Matos in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2362 e ss....

Pergunta:

Voltando novamente ao uso do infinitivo pessoal/impessoal (flexionado ou não), queria esclarecer se, de facto, há situações que exigem um ou outro. Ou seja, estamos a falar de questões meramente estilísticas, sem que o seu uso indiferenciado implique agramaticalidade frásica?

Muito obrigado pelo contributo.

Resposta:

A questão colocada envolve muitas situações particulares que não temos oportunidade de aqui sistematizar por limitações de espaço e tempo.

Poderemos afirmar que, de uma forma geral, se usa infinitivo flexionado quando este ocorre numa oração com sujeito expresso, como em (1):

(1) «É conveniente tu ires à reunião de pais.»

Usa-se infinitivo não flexionado quando o sujeito implícito da oração subordinada é o mesmo da oração subordinante, como em (2):

(2) «Os alunos querem oferecer um livro à professora.»

Para mais situações, sugerimos a leitura do cap.37 da Gramática do Português, de Raposo et al.

Disponha sempre!