Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É comummente utilizado por vários políticos, jornalistas, comentadores e várias outras figuras públicas, na televisão, no início de qualquer discurso o "dizer que", "observar que", "acrescentar que", sem qualquer continuação na sintaxe que permita que a utilização do verbo no infinitivo seja um sujeito. Exemplo:

«Boa noite a todos os presentes. Em primeiro lugar, dizer que, estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia. Acrescentar que, apresentaremos ainda hoje um conjunto de medidas de auxílio á economia. Observar que, estaremos atentos ao aumento de casos.»

Não tenho qualquer dúvida do erro. Na minha opinião, é um erro grosseiro, que se está a generalizar.

Gostaria que o Ciberdúvidas deixasse registado o quão grave é este erro, para bom uso da língua portuguesa.

Resposta:

Com efeito, a construção «dizer + oração completiva» pode desempenhar a função de sujeito, como acontece em (1):

(1) «Dizer que chegaria atrasado teria sido um ato de delicadeza.»

Todavia, como afirma o consulente, não é o que acontece nas frases em questão, de que (2) se constitui como exemplo:

(2) «Em primeiro lugar, dizer que estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia.»

Esta construção será, a meu ver, uma estrutura truncada que resulta da omissão de uma oração subordinante, que poderia corresponder ao que se apresenta em (3), onde se destaca a oração que poderá ter sido omitida:

(3) «Em primeiro lugar, gostaria de dizer que estamos a fazer todos os esforços necessários para contenção desta pandemia.»

Assim sendo, trata-se de uma construção que é característica de contextos informais de uso da língua, sobretudo na modalidade oral informal, e que poderá estar a constituir-se como modismo. Não obstante, deverá ser evitada em contextos de uso mais formais.

Disponha sempre!

47 palavras nos 47 anos do 25 de Abril
Neologismos, anglicismos, modismos e erros

No 47.º aniversário do 25 de Abril, a professora Carla Marques procurou 47 palavras que, de alguma forma, marcam o tempo em que se vive: desde neologismos a anglicismos, passando pelos modismos e pelos erros.

Pergunta:

A estrutura «o que implica não só ouvi-la» está correta, ou tem de ser «o que implica não só a ouvir»? Porquê?

Não entendo o porquê, especialmente porque estamos perante os vocábulos não e , que, teoricamente, exigem a posição proclítica.

Agradecido.

Resposta:

Com efeito, em termos muito gerais, tanto o advérbio como o advérbio não são indutores de próclise, ou seja, ambos atraem o pronome para uma posição anterior ao verbo. Não obstante, com orações infinitivas subordinadas, o advérbio não, quando incide sobre a oração subordinada, pode associar-se tanto a ênclise (colocação depois do verbo) como a próclise (colocação antes do verbo)1:

(1) «Ele receou não o encontrar em casa.»

(2) «Ele receou não encontrá-lo em casa.»

Por essa razão, ambas as frases apresentadas pelo consulente são aceitáveis.

Disponha sempre!

  

1. cf. Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2278-2279.

Pergunta:

Confesso que já procurei em algumas gramáticas referências sobre um possível uso da locução "uma vez que' como temporal mas sem sucesso.

Assim peço a vocês esclarecimento sobre o fato até porque é algo muito comum, corriqueiro de se ouvir ou mesmo ver construções do tipo:

1) Uma vez que chega o inverno, ele se retrai no interior de sua casa.

2) Uma vez que tomares este remédio, sentirás um intenso alívio.

3) Uma vez que a tocar, comece a dançar.

De fato, a norma culta alberga tais construções? Algum gramático faz referência? Algum dicionário ?

Desde já, bastante grato.

Resposta:

A locução «uma vez que» pode expressar um valor causal, quando associada ao modo indicativo:

(1) «Vou ter contigo ao café, uma vez que ainda não tomaste o pequeno-almoço.»

A mesmo locução pode ser associada a um valor condicional, equivalente ao que expressa a conjunção se, quando associada ao modo conjuntivo:

(2) «Uma vez que viesses a minha casa, mostrar-te-ia a minha coleção.»

Também o valor temporal pode ser o nexo expresso pela locução «uma vez que»:

(3) «Uma vez que tenhas concluído o estudo, vem ter comigo.»

Com efeito, gramáticas de referência e dicionários consultados1 não incluem explicitamente «uma vez que» no âmbito das locuções que expressam o valor temporal. Esta surge preferencialmente associada ao valor causal ou ao valor condicional. No entanto, a gramática tem abertura para a identificação de outras locuções que desenvolvam um sentido equivalente.

No caso das frases apresentadas pelo consulente, refira-se que, sem outro contexto que possa clarificar os valores que expressam, nelas a locução «uma vez que» poderá expressar valores diferentes. Assim, em (4), está associada a um valor temporal; em (5), o valor poderá ser temporal ou condicional; em (6), o valor será explicativo:

(4) «Uma vez que chega o inverno, ele se retrai no interior de sua casa.»

(5) «Uma vez que tomares este remédio, sentirás um intenso alívio.»

(6) «Uma vez que a [banda está a] tocar, comece a dançar.»

Disponha sempre!

 

1. Consultámos para esta resposta as seguintes obras: Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian; Mateus et al., Gramática da L...

Pergunta:

Tenho percebido que o uso do vocábulo se assemelha a valores semânticos umas vezes próximos de adversativos, outras vezes talvez a condicionais como nos exemplos abaixo :

«Divirta-se bastante nestas festas juninas, faça de tudo, só não solte balão.» (não estaria exercendo o papel da conjunção mas ou então da conjunção condicional contanto que?)

«Todos quiseram o lanche. Só você [é] que não.» (não estaria neste caso exercendo o papel da preposição exceto?)

«Foi só terminar a aula, que o garoto começou a brigar com os colegas.» (não estaria neste caso exercendo o papel de uma conjunção temporal?)

Resposta:

Na língua, palavras pertencentes a classes muito diversas podem ter a função de conectar segmentos de texto. Tradicionalmente, esta função é associada à classe das conjunções, que ligam orações no âmbito da coordenação ou da subordinação. Não obstante, palavras/locuções de outras classes podem contribuir para a conexão entre segmentos de textos, atribuindo-lhes um valor. A título de exemplo, veja-se o funcionamento da locução «de igual modo», com valor aditivo, em (1):

(1) «O João declamou um poema. De igual modo, a Rita apresentou um texto de sua autoria.»

ou da locução «de modo que», com valor consequencial, em (2):

(2) «Tem estudado muito, de modo que vai passar de ano.»

Este mesmo funcionamento pode ser exemplificado pela palavra , que tradicionalmente funciona como um advérbio, como em (3) ou em (4), esta última uma das frases apresentadas pelo consulente:

(3) «Só o João terminou o trabalho.»

(4) «Todos quiseram o lanche, só você que não.»

pode também funcionar, no plano do texto, como um conector com valor concessivo-condicional, como na frase apresentada pelo consulente, transcrita em (5):

(5) «Divirta-se bastante nestas festas juninas, faça de tudo, só não solte balão.»

Pode ainda contribuir para um valor temporal, como acontece em (6):

(6) «Foi só terminar a aula, que o garoto começou a brigar com os colegas.»

Esta frase é equivalente a (7):

(7) «O garoto começou a brigar com os colegas mal terminou a aula.»

Disponha sempre!