Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Vulnerável
Um adjetivo na pandemia

Os significados do adjetivo vulnerável em situações comuns e no contexto da pandemia são explorados pela professora Carla Marques na sua crónica difundida no programa Páginas de Português, da Antena 2 (de 9 de maio de 2021).

Pergunta:

Um acordo vantajoso (adjetivo) é um acordo em que há vantagem (substantivo). Um acordo prejudicial (adjetivo) é um acordo que dá prejuízo (substantivo). Um acordo desleal (adjetivo) é um acordo em que há deslealdade (substantivo). Nesses exemplos temos um substantivo associado a um adjetivo correspondente. Por que não podemos fazer essa mesma associação para o sintagma "um acordo tácito"? Qual seria o substantivo associado ao adjetivo "tácito"?

Resposta:

Formalmente, não existe um substantivo do qual o adjetivo tácito derive (ou vice-versa).

Nem sempre a língua se organiza segundo processos previsíveis ou regulares. Há com efeito inúmeros casos de adjetivos que correspondem a substantivos até porque se formaram, por derivação, a partir desses mesmos substantivos. É isto que acontece nos casos que apresenta:

(1) vantajoso – de vantagem + sufixo -oso

(2) desleal – prefixo des + leal

(3) prejudicial deriva do latim praejudicialis e prejuízo da forma latina praejudicium, o que mostra que eram palavras da mesma família já no latim.

Por fim, o adjetivo tácito deriva diretamente do latim da forma tacitus, que já era uma forma de particípio do verbo tacěo. Os dicionários não registam nenhum nome derivado deste verbo (ou vice-versa), o que se mantém até aos dias de hoje, embora se registe que o nome taciturno é da mesma família. A relação entre as palavras estabelece-se no âmbito dos significados relacionados com os traços “silencioso”, “calado”, mas, atualmente, tácito e taciturno especializaram os seus sentidos e usam-se em contextos bastante distintos.

Disponha sempre!

Pergunta:

Em que situação/contexto a palavra depois é advérbio de tempo e em qual ela é advérbio de ordem?

Resposta:

A classe dos advérbios é muito heterogénea, o que tem, desde sempre, dificultado a construção de uma proposta de divisão em subclasses coerente e suficientemente abrangente. São conhecidas interpretações que fazem assentar a subdivisão da classe em critérios estritamente sintáticos, outras em critérios semânticos e outras ainda numa mescla dos dois critérios.

Esta breve introdução serve para explicar que a classificação de uma palavra enquanto advérbio de tempo assenta na significação que a palavra introduz na frase, ao passo que a classificação de uma palavra na qualidade de advérbio de ordem (ou advérbio conectivo, segundo a terminologia escolar em Portugal) se centra no seu funcionamento na frase. Devemos acrescentar, ainda, que uma mesma palavra pode integrar diferentes subclasses em função do seu comportamento na frase.

Desta forma, depois poderá ser classificado como advérbio de tempo numa frase em que incida sobre um constituinte (à partida o sintagma verbal) com um valor de tempo:

(1) «Eles só chegaram a Lisboa depois.» (= mais tarde)

Poderá ser classificado como advérbio de ordem / conectivo numa frase em que contribua para o estabelecimento de uma determinada ordenação entre situações:

(2) «Primeiro, li as instruções. Depois, fiz a receita.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Ontem, comeram o bolo», ou «Ontem, bateram à porta», o sujeito é subentendido (eles comeram/eles bateram) ou sujeito indeterminado.

Grata pela atenção dispensada.

Resposta:

Nas frases apresentadas, se o sujeito for recuperável em contexto é subentendido por um processo anafórico.

O sujeito indeterminado refere uma entidade não especificada, não recuperável em contexto, sendo parafraseável por alguém, como acontece em (1) ou (2):

(1) «Diz-se que o João já chegou.»

(2) «Dizem que o João já chegou.»

O sujeito subentendido é recuperável em contexto ou por um processo anafórico, ou seja, é recuperável por ter uma referência presente num momento anterior do texto:

(3) «Os rapazes fizeram a festa. Ontem, comeram o bolo.»

Como se vê, se as frases apresentadas permitirem a recuperação do sujeito, estaremos em presença de um sujeito de tipo subentendido.

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria de saber a função sintática do pronome lhe na frase «ele pediu que lhe fatiassem duzentos gramas de mortadela».

Grato!

Resposta:

A frase apresentada inclui um caso de dativo ético (ou pronome de interesse). Este é um caso em que o pronome pessoal aparece na forma dativa (me, te, lhe…) não constituindo um argumento do verbo, nomeadamente um complemento indireto.

Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, apresenta como exemplo uma frase com dativo ético que inclui um complemento indireto, o que permite concluir que o pronome lhe não desempenha esta função sintática:

(1) «Não me enviem cartões a essas pessoas.»1

O dativo ético é usado sobretudo em contextos informais ou de comunicação oral e, de acordo com Bechara, ainda, é uma estratégia usada pelo locutor para tentar «captar a benevolência do seu interlocutor na execução de um desejo».2

Pelas razões expostas, o pronome lhe, na frase apresentada, não tem qualquer função sintática.

Disponha sempre!

 

Nota: Embora a frase apresentada admita a coocorrência do pronome dativo com um constituinte com a função de complemento indireto, como em «Não me fatiem duzentos gramas de mortadela ao João», também poderá apresentar-se a frase «Não me fatiem duzentos gramas de mortadela», onde será aceitável interpretar o pronome me como um complemento direto com a função de beneficiário.

 

1. Bechara,