Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Um amigo meu mostrou-me uma conversa que ele estava a ter com alguém, e a pessoa disse algo que para ele foi curioso. Ele respondeu com «deixas-me curioso», ao que eu comentei a dizer que «deixas-me curioso» está errado, que devia ser «deixaste-me curioso». Já se passou um ano e continuamos a teimar sobre isto.

Para mais esclarecimento, eles nunca tinham falado antes, e não me lembro da conversa ao certo, mas foi algo do género:

«–Sim, sei o teu nome porque já te conhecia de vista.

– Ui, deixas-me curioso.»

Queria então saber se é «deixas-me» ou «deixaste-me».

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis, embora com uma ligeira diferença de sentido.

A frase que inclui o verbo conjugado no presente do indicativo aponta para a intenção de expressar um estado episódico que se prolongará durante um período de tempo, que não será necessariamente longo1:

(1) «Deixas-me curioso.»

A frase que inclui o verbo flexionado no pretérito perfeito do indicativo descreve uma situação que teve lugar no passado e que, no momento da enunciação, se encontra já concluída/fechada.

(2) «Deixaste-me curioso.»

Assim, em (1), a curiosidade prolongou-se até ao presente e durará algum tempo, enquanto em (2), a curiosidade foi momentânea e no presente já não tem lugar2.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 514-516.

2. Cf. Idem, ibid., pp. 517-518.

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte dúvida: na frase «Se soubesse, seria ele a decidir», que função sintática desempenha a expressão «a decidir»?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

O constituinte «a decidir» desempenha, na frase apresentada, a função de predicativo do sujeito.

A oração copulativa «seria ele a decidir» é constituída pelo verbo copulativo ser, que tem como sujeito o pronome ele, como o comprova o fenómeno de concordância:

(1) «Se soubesse, seriam eles a decidir.»

O predicativo do sujeito, neste caso, é desempenhado pela oração infinitiva «a decidir»1.

Disponha sempre!

 

1 Afirma Raposo: «O constituinte predicativo de uma oração copulativa pode ser ele próprio uma oração, quer finita […] quer infinitiva.» (Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1292).

O adjetivo <i>preto</i>
Da cor à ideologia

Na sua crónica divulgada no programa programa Páginas de Português, a professora Carla Marques aborda os significados do adjetivo preto, desde a sua relação com a cor às ideologias que pode veicular na comunicação: uma reflexão motivada pela polémica suscitada em Portugal, por causa de uma notícia da agência Lusa em que uma deputada foi identificada pela cor da pele.

 
*Crónica emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, do dia 23 de maio de 2021.

 

Pergunta:

O presente do indicativo raramente está associado ao valor imperfetivo, correto? Li na gramática Domínios que tal era difícil de acontecer.

A minha questão é se o valor imperfetivo pode ser expresso pelo presente do indicativo, sem ser em estruturas do género «ele está a fazer exercícios».

Agradecido.

Resposta:

 

O aspeto imperfetivo está presente quando se descreve uma situação a partir do seu interior, sem considerar os limites inicial ou final:

(1) «O João abre / abria a porta.»

Nesta frase, localiza-se a situação no presente (abre) ou no passado (abria) sem indicar o seu desfecho. Exatamente o contrário acontece quando se utiliza o pretérito perfeito do indicativo:

(2) «O João abriu a porta.»

O recurso a este tempo/modo verbal permite perspetivar a situação do seu exterior apresentando-a como concluída. O recurso ao pretérito mais-que perfeito do indicativo permite apresentar a situação igualmente com este valor perfetivo.

Assim, por norma, o presente do indicativo e o pretérito do imperfeito do indicativo veiculam um valor imperfetivo.  Não obstante, em algumas situações mais raras, o presente do indicativo pode associar-se ao valor perfetivo, sobretudo em casos em que o verbo é acompanhado de advérbios como agora, «neste momento» ou sempre1:

(3) «Agora, a Rita chega à meta.»

(4) «O Rui termina o exercício sempre em primeiro.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Mira Mateus et al., Gramática da Língua Portuguesa. Ed. Caminho, pp. 144-145.

 

Pergunta:

Acerca da frase «A teatralização do Memorial do Convento não “concorre”, não entra em competição com o romance», gostaria de saber se posso considerar que a frase em apreço veicula um valor habitual (=nunca concorre)? E genérico?

É pertinente considerar que veicula um valor habitual (independentemente de se poder "conjugar" com outros valores)?

Creio que sim, a par de «O Bernardo não concorre com os colegas», que expressa, exatamente, um valor habitual.

Agradecido

Resposta:

Sem outro contexto, a leitura que parece mais favorecida é a leitura da habitualidade, que é desencadeada pelo uso do presente e que também se verifica pela compatibilidade da frase com o advérbio habitualmente:

(1) «Habitualmente, a teatralização do Memorial do Convento não “concorre”, não entra em competição com o romance.»

Aqui descreve-se uma repetição regular e habitual de uma situação, a de não se verificar concorrência entre o espetáculo teatral e o romance.

Não obstante, se a frase não se referir a um espetáculo em particular, mas qualquer espetáculo teatral da obra em causa poderá, expressar um valor genérico, como em:

(2) «Geralmente, qualquer teatralização do Memorial do Convento não “concorre”, não entra em competição com o romance.»

Disponha sempre!