Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O vocábulo escravidão, ou «a escravidão», é um substantivo concreto ou abstrato?

A razão da minha pergunta é a seguinte: enquanto uma pessoa vive livre, ela não é escrava (obviamente), mas sendo arrebatada a sua liberdade num determinado instante da vida, sendo presa e, afastada sua dignidade humana, a escravidão é um fato, entretanto, vindo a sua libertação, a escravidão deixa de existir. Logo, a escravidão só existe enquanto alguém a sofre e outra a pratica.

Sendo assim, a palavra escravidão pode ser substantivo abstrato e concreto dependendo do momento histórico?

Obrigado.

Resposta:

A noção de concreto e abstrato está em vários âmbitos mais próxima da filosofia da linguagem do que propriamente da gramática, porque envolve conceitos que vão além dos critérios estritamente gramaticais1.

Não obstante, segundo Cunha e Cintra, os substantivos concretos «[...] designam os seres propriamente ditos, isto é, os nomes de pessoas, de lugares, de instituições, de um género, de uma espécie ou de um dos seus representantes», enquanto os substantivos abstratos «[...] designam noções, acções, estados e qualidades, considerados como seres»2. Refira-se ainda que a classificação dos substantivos quanto à sua subclasse deve acontecer preferencialmente associada à utilização das palavas numa frase, porque o contexto pode gerar situações que exijam a consideração de novas análises.

De forma generalista, o substantivo escravidão parece convocar sempre um conceito associado a um determinado estado, pelo que diria que estamos perante um substantivo abstrato, quer este refira um estado geral e teórico quer designe uma situação concreta. Em qualquer das situações a situação descrita é não palpável, não tendo materialidade, pois descreve um estado, uma conceptualização e não uma realidade física.

Ainda assim, é de acrescentar que um substantivo abstrato pode ser usado como concreto, como se explica nesta resposta.

Disponha sempre!

 

1. Veja-se a opinião de Napoleão Mendes de Almeida citada nesta resposta

2. C...

Pergunta:

Estou estudando a coesão lexical e me deparei com uma contradição: alguns afirmam que esse tipo de coesão se dá por reiteração e substituição e outros, por reiteração e contiguidade.

Afinal, como ocorre a coesão lexical? Apenas por reiteração e substituição, ou também por contiguidade?

Obrigado.

Resposta:

Na verdade, não estamos perante uma contradição, mas antes perante diferentes traços caracterizadores do processo de coesão lexical e diferentes formas de organizar os processos coesivos. Assim, a coesão lexical pode processar-se ora por reiteração/repetição, como em (1), ora por substituição, como em (2):

(1) «Os rapazes chegaram a casa. Os rapazes foram lanchar.»

(2) «Os rapazes chegaram a casa. Os jovens foram lanchar.»

A reiteração / repetição consiste na retoma do nome antecedente. Este fenómeno designa-se anáfora fiel1, como acontece em (1). A substituição assenta, geralmente, em processos de hiperonímia ou de sinonímia, como acontece em (2) onde a relação anafórica assenta no processo de sinonímia entre rapazes e jovens. Este processo é conhecido como anáfora infiel1. Algumas propostas gramaticais consideram a reiteração como um processo que inclui tanto a repetição como a substituição2.

A contiguidade ou colocação é outro fenómeno da coesão lexical que se processa através de itens lexicais que não se relacionam por processos de reiteração. Neste caso, estamos perante palavras que estabelecem laços de sentido num mesmo texto sem que uma reative o sentido de outra. Neste caso, a relação entre as palavras/ expressões assenta num elo semântico que as liga, como acontece em (3):

(3) «A escola tinha começado e o estudo era necessário. Todos os alunos teriam de trazer os compêndios para o início das aulas

Na frase (3), os sintagmas «a escola», «o estudo», «os alunos», «os compêndios» e «[d]as aulas» estabelecem uma relação semântica entre eles, não sendo propriamente usados...

Pergunta:

«Sou alérgico a leite» e «sou alérgico ao leite».

«Sou alérgica a carne» e «sou alérgica à carne»-

Em princípio eu diria: «sou alérgico a leite» e «sou alérgico ao leite de ovelha»/ «Sou alérgica a carne» e «Sou alérgica à carne de vaca"».

O que é que está correto e porquê?

Obrigadíssima pelo esclarecimento.

Resposta:

As frases aqui apresentados estão todas igualmente corretas. Os pares de expressões apresentados distinguem-se pela presença/ ausência do determinante artigo definido associado aos nomes leite ou carne. A diferença que se estabelece entre elas poderá relacionada com o traço [+específico] que o artigo definido introduz no sintagma nominal, se bem que os usos mais comuns parecem ter tendência para anular o contraste semântico entre as construções.

As construções em questão descrevem uma referência de valor genérico, ou seja, o leite ou a carne referidos não constituem entidades individuais, mas designam um conjunto de entidades, uma “espécie”. Este valor genérico consegue-se tanto com ausência de determinante artigo como pela sua presença.

A diferença introduzida pelo uso do determinante artigo em cada uma das frases poderá estar relacionada com a distinção entre entidades. Por exemplo, o artigo definido poderá marcar o traço definido que o locutor associa à carne ou ao leite por contraste com outros produtos aos quais não é alérgico:

(1) «Sou alérgico ao leite e à carne, mas não à fruta ou ao peixe.

No entanto, na prática, o mais comum será que os falantes usem as construções de forma indistinta porque as suas significações acabam por se sobrepor, não resultando do seu uso uma verdadeira diferença de significação1.

Disponha sempre!

 

1. A este propósito, veja-se também esta resposta.

Vulnerável
Um adjetivo na pandemia

Os significados do adjetivo vulnerável em situações comuns e no contexto da pandemia são explorados pela professora Carla Marques na sua crónica difundida no programa Páginas de Português, da Antena 2 (de 9 de maio de 2021).

Pergunta:

Um acordo vantajoso (adjetivo) é um acordo em que há vantagem (substantivo). Um acordo prejudicial (adjetivo) é um acordo que dá prejuízo (substantivo). Um acordo desleal (adjetivo) é um acordo em que há deslealdade (substantivo). Nesses exemplos temos um substantivo associado a um adjetivo correspondente. Por que não podemos fazer essa mesma associação para o sintagma "um acordo tácito"? Qual seria o substantivo associado ao adjetivo "tácito"?

Resposta:

Formalmente, não existe um substantivo do qual o adjetivo tácito derive (ou vice-versa).

Nem sempre a língua se organiza segundo processos previsíveis ou regulares. Há com efeito inúmeros casos de adjetivos que correspondem a substantivos até porque se formaram, por derivação, a partir desses mesmos substantivos. É isto que acontece nos casos que apresenta:

(1) vantajoso – de vantagem + sufixo -oso

(2) desleal – prefixo des + leal

(3) prejudicial deriva do latim praejudicialis e prejuízo da forma latina praejudicium, o que mostra que eram palavras da mesma família já no latim.

Por fim, o adjetivo tácito deriva diretamente do latim da forma tacitus, que já era uma forma de particípio do verbo tacěo. Os dicionários não registam nenhum nome derivado deste verbo (ou vice-versa), o que se mantém até aos dias de hoje, embora se registe que o nome taciturno é da mesma família. A relação entre as palavras estabelece-se no âmbito dos significados relacionados com os traços “silencioso”, “calado”, mas, atualmente, tácito e taciturno especializaram os seus sentidos e usam-se em contextos bastante distintos.

Disponha sempre!