Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «ele mantém-se no hospital», «no hospital» é considerado predicativo do sujeito?

Resposta:

O verbo manter-se pode ter usos copulativos, como acontece em (1)

(1) «A Rita mantém-se calada.»

A natureza de verbo copulativo fica patente, por um lado, no facto de manter-se não selecionar semanticamente o sujeito, aceitando os traços [±humano], [±animado] e [±concreto]1. Isto significa que manter-se não seleciona sujeito, sendo, portanto, compatível com diferentes tipos de sujeito, tal como acontece aos verbos copulativos:

(2) «O gato mantém-se atento.»

(3) «O debate mantém-se aceso.»

(4) «A verdade mantém-se escondida.»

Outra propriedade dos verbos copulativos está, por outro lado, relacionada com a possibilidade de terem como predicativo do sujeito um constituinte formado apenas por adjetivo, o que relativamente ao verbo manter-se fica patente nas frases (1) a (4).

Nestes usos, o verbo manter-se tem semelhanças com o verbo continuar na medida em que expressa a continuidade temporal da propriedade associada ao sujeito2.

A questão colocada pela consulente avança um pouco mais na problemática, uma vez que coloca o problema do verbo manter-se conjugado com predicação locativa. Atentemos, pois, na frase apresentada, aqui transcrita em (5):

(5) «Ele mantém-se no hospital.»

O uso de verbos copulativos com sintagmas preposicionais de valor locativo está previsto no

Pergunta:

Na frase «era uma árvore grande, ramosa, semelhante a um abeto, mas espinhosa... », podemos considerar a existência de uma enumeração para além da adjectivação e comparação nela existentes?

 

O consulente escreve de acordo com a grafia de 1945.

Resposta:

Com efeito, na frase apresentada está presente uma enumeração.

De acordo com o E-dicionário de Termos Literários, orientado por Carlos Ceia, a enumeração consiste na «Adição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto […] Distingue-se normalmente da acumulação, porque exige um nexo de relação semântica entre as coisas listada».

Ora, na frase apresentada, apresenta-se um inventário dos traços caracterizadores da árvore, pelo que é justo considerar que se mobiliza a enumeração enquanto recurso expressivo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Eu transformei o príncipe num sapo», qual a função sintática desempenhada pelo segmento «num sapo»?

Eu interpreto como um complemento oblíquo (X transformar Y em Z), no entanto, perguntaram-me se não poderia ser interpretado como predicativo do complemento direto.

Os meus agradecimentos pelo excelente trabalho que fazem.

Resposta:

As duas análises apresentadas poderão ser justificáveis em função do contexto em que se pretende promover o estudo gramatical.

O verbo transformar pode ser considerado um verbo transitivo direto e indireto com o sentido de “tornar diferente do que era”. No quadro desta análise, o verbo terá dois argumentos: um complemento direto e um complemento oblíquo. Esta será, eventualmente, uma análise mais ajustada ao quadro do ensino do 3.º ciclo.

Não obstante, uma análise mais fina pode permitir considerar o verbo transformar entre os verbos transitivo-predicativos de tipo resultativo, os quais «denotam a criação de uma entidade (construir, elaborar, escrever, fazer) […] denotam eventos em que uma entidade sofre um determinado processo do qual sai transformada (cortar, mastigar)»1. Teremos verbos transitivo-predicativos nas seguintes frases:

(2) «Construí a casa pequena.» (= «Construí-a pequena.»)

(3) «Fiz o trabalho bonito.» (=«Fi-lo bonito.»)

(4) «Cortei o pão em fatias finas.» (=«Cortei-o em fatias pequenas.)

Esta análise implica que os constituintes pequena, bonito e «em fatias finas» desempenham a função de predicativo do complemento direto.

No âmbito deste quadro, o verbo transformar pode ser considerado transitivo-predicativo uma vez que, na frase apresentada, também denota um processo de transformação do príncipe em sapo:

(5) «Eu transformei o príncipe num sapo.»

De acordo com esta análise, o constituinte «num sapo» terá a função de predicativo do complemento direto.

Esta análise é mais ajustada ao campo de reflexão gramatical desenvol...

Pergunta:

Gostaria de esclarecer se na frase seguinte estamos perante modalidade epistémica ou apreciativa: «Efetivamente, «George» é um conto muito bonito!».

Por um lado, o locutor parte de uma certeza, pelo que parece tratar-se de modalidade epistémica, por outro lado, o advérbio «muito» e o ponto de exclamação parecem fazer do enunciado uma apreciação (modalidade apreciativa).

Poderiam esclarecer-me?

Grata pela atenção.

Resposta:

A frase apresentada configura a modalidade epistémica com valor de certeza.

Na modalidade apreciativa, o locutor apresenta um juízo de valor positivo ou negativo sobre uma situação, ou seja, avalia o conteúdo do enunciado. Assim, a frase (1) apresenta a modalidade apreciativa, constituindo uma avaliação positiva do conteúdo do enunciado.

(1) «"George" é um conto muito bonito.»

Por seu turno, a modalidade epistémica «prende-se com graus de certeza ou avaliação da probabilidade acerca do conteúdo proposicional da frase.» (Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian. p. 623). No caso da frase apresentada pela consulente, o locutor expressa o seu grau de certeza relativamente à verdade do enunciado «George é um conto muito bonito»:

(2) «Efetivamente, «"George" é um conto muito bonito.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde já, agradeço a preciosa ajuda. A identificação quer da modalidade e de um valor modal nem sempre é fácil e consensual

Venho, pois, por este meio, pedir um esclarecimento relativamente a uma questão, visto que, consultados vários livros, não consegui obter respostas claras e contundentes.

« Não podes ir à escola!» «Proíbo-te de ir à escola!»

Neste caso, o valor modal é de proibição, obrigação ou permissão? Porquê? Em diferentes livros há diferentes respostas ...

Obrigado.

Resposta:

Em contexto escolar, a modalidade deôntica é abordada com dois valores: o valor de permissão e o valor de obrigação (cf. Dicionário Terminológico).

O valor de obrigação tem lugar quando um determinado sujeito impõe uma obrigação sobre uma entidade, como em (1):

(1) «Tens de ir estudar.»

O valor de permissão ocorre quando o sujeito dá uma autorização a alguém, como em (2):

(2) «O João deixou que eles fossem ao cinema.»

O valor de obrigação pode ser expresso por meio de verbos como obrigar, ter (de) ou por locuções como «ter a obrigação (de)»1.

O valor de permissão pode ser expresso por verbos como permitir ou poder ou locuções como «dar autorização», «ter autorização»1.

Assim, a frase aqui transcrita como (3) apresenta um valor de permissão: alguém determina que outrem não tem permissão para ir à escola. Também a frase transcrita em (4) tem um valor de permissão: alguém não permite a outrem que vá à escola:

(3) «Não podes ir à escola!»

(4) «Proíbo-te de ir à escola!»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 632-633.