Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
133K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Lemos comumente que o adjunto adverbial modifica verbo, adjetivo e advérbio e que, na ordem direta, se posiciona no fim da frase. Assim sendo, é separado por vírgulas quando posicionado de outro modo.

Mas essa diretiva não se fragiliza quando o adjunto adverbial modifique, não o verbo, mas o adjetivo? Nesses casos, parece-me que a ordem direta e, portanto, também o uso de vírgulas na ordem indireta dependem de uma análise quanto ao posicionamento do adjunto adverbial em relação ao adjetivo.

Pergunto se, no caso abaixo, a ordem direta não seria esta, sendo assim justificável não usar vírgulas:

«A expressão incomum no contexto requer leitura atenta.» (planeja-se que «no contexto» modifique o adjetivo incomum)

Se o raciocínio acima estiver de acordo com a norma, não só seria correto não utilizar vírgulas na construção acima como o uso delas poderia vincular de maneira indesejável o adjunto adverbial a outro termo:

«No contexto, a expressão incomum requer leitura atenta.» (não me parece aqui que o adjunto adverbial modifique incomum, entendo que modifique o verbo).

Muito obrigado desde já.

Resposta:

Conforme sinaliza a intuição do consulente, o uso de vírgulas no constituinte «no contexto» pode associá-lo a uma função sintática distinta daquela que desempenha sem vírgula.

Em primeiro lugar, diga-se o adjunto adverbial (modificador do grupo verbal), quando é anteposto ao verbo, costuma levar vírgula:

(1) «No sábado, fomos ao cinema.»

Por esta razão, a frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (2), inclui um adjunto adverbial, que leva vírgula por estar localizado em início de frase:

(2) «No contexto, a expressão incomum requer leitura atenta.»

Nesta frase, o constituinte «no contexto» incide sobre o grupo verbal «requer leitura atenta» modificando o seu sentido: afirma-se que a leitura atenta deve ser feita num determinado contexto.

Não obstante, este mesmo constituinte pode associar-se não ao verbo, mas ao adjetivo incomum, como também sinaliza o consulente:

(3) «A expressão incomum no contexto requer leitura atenta.» 

Neste caso, «no contexto» é um complemento do adjetivo e, nessa qualidade, terá de ser colocado à direita do adjetivo e não leva vírgula, como acontece com outros complementos de adjetivo apresentados, a título de exemplo, a seguir:

(4) «Feliz com a situação»

(5) «contente por ter terminado»

(6) «ansioso para começar»

Em (3), o adjetivo incomum rege a preposição em, que introduz o complemento do adjetivo, e, neste caso, o que se afirma é que o traço incomum se ativa em determinado contexto, sendo equivalente a (7):

(7) «A expressão que é incomum no contexto requer leitura atenta.»

...

Pergunta:

Diz-se «estar mortinho por» ou «estar mortinho para»?

Resposta:

Com o sentido de “estar desejoso/ansioso”, é preferível a construção com a preposição por.

O adjetivo mortinho (assim como o adjetivo morto) constrói-se sobretudo com as preposições de e por.

Introduzido pela preposição de, o sintagma preposicional que acompanha o adjetivo tem o significado de causa / razão1:

(1) «Estou mortinho de fome.»

Com a preposição por, a construção tem o sentido de “estar ansioso”, “estar vivamente interessado”2:

(2) «Estou mortinho por chegar.»

Não obstante, como verifica Celso Luft, hoje verifica-se uma tendência para usar a preposição para nos contextos em que se usava apenas a preposição por3, o que se poderá ficar a dever ao facto de a preposição para traduzir um valor de finalidade que não é distante do "estar desejoso" que se traduz com a preposição por:

(3) «Estou mortinho para falar com o João.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp.1549-1550

2. Cf. Luft, Dicionário Prático de Regência Nominal. Ed. Ática, pp. 344-345.

3. Id., Ibid.

Pergunta:

Não querendo, de todo, desafiar Alberto Caeiro ou qualquer outro dos heterónimos de Pessoa, gostaria de (melhor) compreender a regra que permite escrever o seguinte: "O rebanho é os meus pensamentos"

Bem sei que se aplicam regras específicas quando se utilizam nomes colectivos. Porém, aplicando a mesma lógica, peço-vos que me indiquem se os próximos exemplos estão ou não correctos:

«O público é as minhas emoções.»

«A multidão é as minhas reivindicações.»

Grafia de acordo com a norma ortográfica de 1945

Resposta:

Nesta frase, o verbo ser encontra-se na 3.ª pessoa do singular porque concorda com o sujeito da frase, que é «o rebanho». Este constituinte é passível de ser substituído pelo pronome pessoal ele, o que clarifica a opção pela 3.ª pessoa do singular.

Acrescente-se ainda que o verso de Caeiro, retirado do poema "Sou um guardador de rebanhos", constitui uma frase copulativa identificadora, que se caracteriza por identificar o sujeito «como sendo portador de tal ou tal propriedade.» (Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1319).

Desta forma, visto que as restantes frases apesentadas pelo consulente têm a mesma natureza do verso do poema de Caeiro, estas são corretas.

Disponha sempre!

Pergunta:

Recentemente li num blog a frase: «Umas pessoas não comem gatos.»

Em seguida houve um comentário afirmando que esta frase estaria errada, porém sem explicar o porquê.

Fiquei confuso, pois me pareceu que «Algumas pessoas não comem gatos», soaria melhor aos ouvidos.

Assim, gostaria de saber qual seria a construção correta e se haveria alguma orientação ou cautela no emprego de umas e algumas, particularmente no início das frases.

Obrigado!

Resposta:

Habitualmente, o uso do determinante artigo indefinido contribui para a apresentação de um sintagma nominal indefinido, como se observa pelo contraste entre a frase (1), com um sintagma definido, e a frase (2), com um sintagma indefinido:

(1) «A rapariga chegou.»

(2) «Uma rapariga chegou.»

O determinante algum é também associado à expressão de um valor indefinido:

(3) «Alguma coisa deve ter acontecido.»

No entanto, pode também expressar uma quantificação vaga1:

(4) «Ele não teve muita paciência, teve alguma paciência.»

Ora, o determinante indefinido um não tem capacidade de expressar este valor de quantificação, pelo que não pode ser utilizado com esta intenção. Parece ser este o caso presente na frase apresentada pelo consulente. Sem outro contexto, a frase (5) parece apontar para um valor de quantificação vaga, pois o determinante algum, ao incidir sobre o nome, exprime uma quantidade imprecisa de pessoas:

(5) «Algumas pessoas não comem gatos.»

Este valor de quantificação pode também estar associado ao plural, pois a frase (6) é aceitável no singular, mas não no plural, que parece barrar a leitura de sintagma indefinido:

(6) «Uma pessoa não come gatos.»

(6a) «*Umas pessoas não comem gatos.»

Não obstante, é possível criar contexto de uso em que a intenção incida sobre o valor de indefinição, que permitirá alternar entre o determinante um e o determinante algum:

(6) «Já todos sabem. A notícia divulgou que umas pessoas comeram gatos.»

(7) «Já todos sabem. A notícia divulgou que algumas pessoas c...

Pergunta:

Em «O peculiar rei.», o adjetivo detém um valor restritivo, explicativo (ou não restritivo)?

Não obstante o facto de o adjetivo desempenhar a função sintática de modificador restritivo do nome, pode considerar-se que o seu valor não é restritivo, porque está anteposto ao nome «rei»?

Esta dúvida que coloco surgiu da realização de uma ficha de trabalho que me foi facultada e após ter pesquisado e encontrado referências a um «valor não restritivo», associado aos adjetivos antepostos.

Agradecido!

Resposta:

Tipicamente os adjetivos que são colocados depois do nome contribuem, sobretudo quando são qualificativos, para uma leitura que permite identificar a entidade referida pelo nome / grupo nominal, como acontece em (1):

(1) «O carro amarelo está estacionado.»

Nesta frase, o adjetivo amarelo permite associar a predicação a um carro particular, que se distingue dos restantes pela ação restritiva do adjetivo. Neste caso, diz-se que o adjetivo tem valor restritivo.

Quando colocado em posição pré-nominal, tipicamente, o adjetivo qualificativo não tem a capacidade de restringir o âmbito de significação do nome. Em (2), o adjetivo simpático não distingue o homem dos restantes, mas expressa uma avaliação subjetiva do homem:

(2) «O simpático homem deixou-me passar.»

Neste caso, diz-se que o adjetivo tem um valor não restritivo.

É este o caso da frase apresentada pelo consulente, na qual o adjetivo peculiar detém um valor não restritivo, na medida em que não contribui para distinguir a entidade rei de outros reis.

Disponha sempre!