Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente à atração exercida pela conjunção subordinativa, e devido ao facto de estarmos perante frases longas, agradecia que me esclarecessem se a próclise continua a fazer sentido nas mesmas:

«A afirmação é verdadeira PORQUE, na infância, sonhamos muito e iludimo-NOS muito.»

«A afirmação é verdadeira PORQUE, quando ele vê um castelo ou vai à praia, recorda-SE da infância e LEMBRA-SE que esse sonho foi destruído.»

Em relação à segunda frase, perguntava se é obrigatória a preposição de regida pelo verbo lembrar-se («lembra-se de que»).

Cordialmente

Resposta:

De uma forma geral, os pronomes clíticos (ou átonos) que surgem no interior de uma oração subordinada são colocados em posição proclítica.

As frases apresentadas pelo consulente envolvem, no entanto, uma questão adicional: a colocação do clítico em orações subordinadas finitas coordenadas entre si. Nestes casos, quando a conjunção subordinativa não está presente nas orações coordenadas, aceita-se a ênclise ou a próclise nos termos coordenados. Assim, as frases apresentadas a seguir são ambas aceitáveis:

(1) «A afirmação é verdadeira porque, na infância, sonhamos muito e nos iludimos muito.»

(2) «A afirmação é verdadeira porque, na infância, sonhamos muito e iludimo-nos muito.»

Finalmente, na segunda frase apresentada pelo consulente, a tendência será a de considerar aceitável o uso com próclise em ambas as orações (3), sendo, todavia, possível a ênclise na segunda oração coordenada (4):

(3) «A afirmação é verdadeira porque, quando ele vê um castelo ou vai à praia, se recorda da infância e se lembra que esse sonho foi destruído.»

(4) «A afirmação é verdadeira porque, quando ele vê um castelo ou vai à praia, se recorda da infância e lembra-se que esse sonho foi destruído.»

Relativamente ao uso da preposição de com o verbo lembrar-se, esclarecem Cunha e Cintra que, com uma oração completiva, a preposição pode ser omitida. Os autores apresentam como exemplo:

(5) «Lembro-me que certa vez juntei uma porção de artigos médicos sobre o assunto.» (Rubem Braga,

Pergunta:

Na frase «Temos maçã e pero, enquanto em inglês há só apple», qual é o valor da conjunção enquanto?

Muito obrigada!

Resposta:

No caso apresentando, a conjunção enquanto apresenta um valor contrastivo.

Comummente, a conjunção enquanto traduz um valor temporal, introduzindo uma oração que tem frequentemente um valor durativo:

(1) «O João lia um livro enquanto a Rita via televisão.»

Não obstante, enquanto pode exprimir um contraste entre duas orações quando estas incluem verbos que, do ponto de vista aspetual, traduzem estados1, como em (2):

(2) «O João é muito simpático enquanto a Rita é antipática.»

O mesmo se verifica na frase apresentada pela consulente.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2006.

Pergunta:

Gostaria de ficar esclarecida quanto ao seguinte:

1.º – As palavras de sentido coletivo dúzia, dezena e década pertencem à classe dos quantificadores numerais ou dos nomes?

2.º – A palavra duplo pode ser nome, adjetivo e quantificador. Podem dar-me exemplos do seu emprego enquanto adjetivo e quantificador?

Obrigada.

Resposta:

De acordo com o Dicionário Terminológico, que compila os termos a utilizar em contexto escolar não universitário, a classe do quantificador «expressa uma quantidade numérica inteira precisa (numeral cardinal) (i), um múltiplo de uma quantidade (numeral multiplicativo) (ii), ou uma fracção precisa de uma quantidade (numeral fraccionário)». No Dicionário Terminológico não se apresentam exemplos de casos particulares que correspondam às palavras apresentadas. Não obstante, na Gramática do Português, é apresentada uma secção dedicada aos «numerais cardinais especiais», onde se refere que certos numerais «indicam, mesmo no singular, grupos de identidades cujo número especificam com exatidão»1. As palavras dúzia, dezena e década integram este caso especial quando acompanham um nome, denotando um número2, pelo que, no quadro do ensino não universitário, poderão ser consideradas quantificadores numerais.

Por outro lado, a palavra duplo pode, efetivamente, integrar diferentes classes de palavras, de acordo com o seu comportamento. Assim, poderá funcionar como

(i) quantificador multiplicativo: «Passou a contratar o duplo dos trabalhadores que contratava antes.»3

(ii) adjetivo: «Bebe café em doses duplas.»

(iii) nome comum: «O duplo substituiu o ator principal.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 934.

2. Estes casos especiais que não e...

Pergunta:

Na frase «Os lutadores agrediram uns aos outros», qual a função sintática do termo «uns aos outros»?

Obrigado.

Resposta:

No sentido de «trocar agressão» ou de «agredir reciprocamente», o verbo agredir deve ser usado pronominalmente (agredir-se).

A frase apresentada deve, assim, ter a seguinte forma:

(1) «Os lutadores agrediram-se uns aos outros.»

Neste caso, o pronome se desempenha a função de complemento direto, desempenhando a expressão «uns aos outros» a mesma função sintática.

Nesta frase, a expressão «uns aos outros» constitui um caso de redobro do clítico, que corresponde a uma expansão de uma função sintática por meio de um pronome clítico1, semelhante ao que se verifica em (2) e (3):

(2) «Chamámo-las a elas para o palco.»

(3) «Eles cumprimentaram-se um ao outro

Disponha sempre!

 

1. Cf. Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, pp. 832-833.

Pergunta:

Na frase «no encontro histórico de 1843 [de Garrett] com Passos Manuel, que serviu de pano de fundo ao romance e à deambulação...», qual seria a função sintática de «de pano de fundo»? Seria complemento oblíquo?

Agradeço desde já a ajuda.

Resposta:

O constituinte «de pano de fundo» tem a função de complemento oblíquo.

O verbo servir pode ser usado como

(i) intransitivo: «Este vestido serve.»

(ii) transitivo direto (e indireto): «Ele serve o vinho (aos convidados) depois da refeição.»

(iii) transitivo indireto: «Ele serve de modelo.»

Neste último caso, o verbo rege a preposição de, que introduz o complemento oblíquo.

O facto de os constituintes «de modelo» e «de pano de fundo» desempenharem a função de complemento oblíquo comprova-se também por não poderem ser omitidos da frase nem ser possível substituí-los pelo pronome lhe.

Disponha sempre!