Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «com animais que falam e têm sentimentos e comportamentos como os dos humanos», os é um pronome pessoal ou demonstrativo?

Resposta:

A análise da natureza da palavra os está dependente do quadro teórico em que é feita.

Assim, no âmbito da gramática tradicional, o, a, os, as é considerado um pronome demonstrativo que, de acordo com Cunha e Cintra, se usa nos seguintes casos: «quando vem determinado por uma oração ou, mais raramente, por uma expressão adjectiva, e tem o significado de aquele(s), aquela(s), aquilo»1. Os autores apresentam como exemplo frases como:

(1) «O homem que ri, liberta-se. O que faz rir, esconde-se.» (Aníbal M. Machado, Cadernos de João, 228)

(2) «Ingrata para os da terra, / boa para os que não são.» (Carlos Pena Filho, Livro Geral, 120)

Perspetivas gramaticais mais recentes têm considerado que situações como as que estão presentes na frase em análise constituem casos de elipse nominal, que corresponde a uma situação na qual se identificam «construções que envolvem a omissão do nome que funciona como núcleo do sintagma nominal»2. Acrescenta-se ainda nesta proposta de análise que «os determinantes ou os quantificadores que funcionam como especificador único de um nome não podem ser omitidos na elipse nominal3. Desta forma e neste quadro, o é considerado um determinante artigo definido.

Coloca-se, noutro plano, o problema de determinar qual a perspetiva a adotar em contexto escolar não universitário. Rel...

Pergunta:

Gostava que me ajudassem a entender as diferenças entre aviso, comunicado e anúncio.

Obrigada

Resposta:

Nalguns contextos, sobretudo de maior informalidade, os três termos podem ser usados como equivalentes. Não obstante, poderão, em termos particulares, as palavras referir sentidos como1:

Aviso – documento que dá a conhecer uma situação; regra a seguir;

Comunicado - Comunicação emanada, geralmente de instâncias superiores, com um caráter oficial, destinado a conhecimento geral;

Anúncio – texto publicitário; participação de algo que aconteceu; texto apresentado numa revista para oferecer ou pedir algo (emprego, por exemplo); em contexto jurídico, texto destinado a tornar público um determinado ato.

Disponha sempre!

 

1. Fontes: Dicionário da Língua Portuguesa ContemporâneaDicionário Houaiss da Língua Portuguesa

Pergunta:

Estou a tentar encontrar uma explicação para a utilização do futuro subjuntivo em situações em que o evento não é provável.

Da minha pesquisa, a maioria dos locais que procurei têm uma definição semelhante a esta: «O futuro subjuntivo é utilizado para casos: acções que são prováveis, mas que ainda não ocorreram.»

Mas depois é aceitável numa frase como: «Se eu ganhar uma lotaria, vou construir uma mansão.»

Ganhar a lotaria não é uma possibilidade provável mas ainda assim o futuro subjuntivo é aceitável aqui. Não será esta uma situação em que, gramaticalmente, só deveríamos ser autorizados a utilizar o "pretérito imperfeito do subjuntivo"? Então eu queria saber até que ponto o futuro subjuntivo está ligado a acontecimentos prováveis?

Muito obrigado pela sua ajuda.

Resposta:

Os valores modais de possibilidade ou de probabilidade não são construídos pelo verbo isoladamente, mas por vários elementos da frase que entram em interação.

Assim, o futuro do conjuntivo (subjuntivo), quando usado em orações subordinadas, marca geralmente um intervalo de tempo futuro relativamente ao momento de enunciação.

No caso apresentado, o futuro do conjuntivo é usado numa oração subordinada adverbial condicional. Ora, este tipo de orações pode ser associado a três tipos de interpretação: factual, hipotética ou contrafactual (a este propósito, veja-se esta resposta).

O caso apresentado pelo consulente é uma frase com leitura hipotética, que, no caso das orações condicionais, se constrói com imperfeito ou futuro do conjuntivo na subordinada:

(1) «Se conseguisse terminar o trabalho hoje, seria ótimo.»

(2) «Se conseguires terminar o trabalho hoje, será ótimo.»

Este valor de hipótese significa que a situação descrita poderá ou não vir a ocorrer. É o que ocorre na frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (3):

(3) «Se eu ganhar uma/a lotaria, vou construir uma mansão.»

A frase condicional tem uma leitura hipotética, a que se acrescenta a conjugação dos verbos da subordinada e da subordinante de onde resulta a expressão de uma modalidade com valor de probabilidade.

Acrescente-se que, em língua, a expressão de uma probabilidade não implica a concretização da situação descr...

Pergunta:

Após ler em vários suportes sobre o aspeto verbal, continuo com algumas dúvidas:

a) quando, por exemplo, se afirma que o aspeto gramatical imperfetivo «apresenta a situação expressa pelo enunciado como ainda em curso e não concluída», por exemplo «O Ricardo pintava uma aguarela» (Aura Figueira, 24 de outubro de 2017, in Ciberdúvidas da Língua Portuguesa,  consultado em 03-10-2021), parece haver uma contradição; pois pela afirmação «a situação está e ainda em curso e não concluída», depreende-se que está em curso no momento da enunciação, isto é, quando o enunciador pronuncia a afirmação, o que, embora o contexto não seja totalmente preciso, não estará correto, pois tudo indica que a ação já terá terminado antes da enunciação;

b) o valor imperfetivo pode combinar-se com outros valores, nomeadamente o habitual e o iterativo? Por exemplo, em «Tenho encontrado gente admirável por todo o lado», temos concomitantemente o valor iterativo e imperfetivo? Seria possível esclarecerem-me? Muito obrigado    

Resposta:

A análise de um verbo na frase envolve diferentes planos que interagem entre si.

Assim, se nos situarmos na perspetiva dos valores temporais, sabemos que um verbo flexionado no pretérito imperfeito localiza, por defeito, a situação que descreve num intervalo de tempo anterior ao momento da enunciação.

Quando convocamos a análise aspetual, o objetivo é compreender como é apresentada a estrutura temporal interna da situação que o verbo descreve. É esta perspetiva que nos permite, por exemplo, afirmar que os verbos das frases (1) e (2) têm uma estrutura temporal distinta:

(1) «O João espirrou.»

(2) «O João lê um livro.»

Com efeito, em (1), descreve-se uma situação pontual, que não tem duração interna, enquanto em (2) se descreve uma situação durativa, que tem duração interna. Repare-se que, nesta ótica, não nos estamos a interessar pelo valor temporal, porque não estamos a localizar a situação num dado intervalo de tempo.

Quando convocamos uma análise do aspeto gramatical, estamos a combinar a análise do aspeto lexical com outros elementos da frase, como os tempos verbais, os advérbios, entre outros. Esta perspetiva permite, por exemplo, determinar se uma situação é apresentada como culminada ou não culminada. Este último aspeto é pertinente para a distinção entre o valor imperfetivo e o valor perfetivo. Assim, o valor imperfetivo corresponde àquele em que uma situação é apresentada como não culminada, ou seja, os seus limites temporais não são apresentados. Veja-se a frase (3)

(3) «Os homens pré-históricos deslocavam-se frequentemente.»

A situação descrita na frase (3) é apresentada como não delimitada temporalmente, sendo perspetivada do seu interior. É evidente que um dia a deslocação aí descrita deixou de ter luga...

Pergunta:

Queria compreender se a preposição a é corretamente usado na seguinte frase, e se utilizar de em vez de a não estará melhor:

«Assim que entraram no teatro sentiram o nariz contrair-se devido ao cheiro intenso [a] tintas, madeiras cortadas de fresco, vernizes.»

Muito obrigado.

Resposta:

De uma forma geral, e acordo com Celso Luft, ambas as regências são possíveis1. Para o demonstrar, são apresentados exemplos como:

(1) «Havia no quarto um cheiro a bafio» (Ramalho2)

(2) «Cheiro de couro» (poema de Drummond, NR, 7423).

Não obstante, o autor considera uma situação particular: não se pode usar a preposição a na expressão «cheiro de santidade». Para fundamentar esta situação, apresenta como exemplo:

(3) «justas e sofredoras, que morreram em cheiro de santidade” (Antero de Figueiredo: Fernandes4)

Pode verificar-se, no entanto, uma muito ligeira diferença de sentidos entre o uso de uma ou outra preposição. Assim, se compararmos as expressões (4) e (5), verificamos que a expressão (4) significa «o cheiro que as flores têm/emanam», enquanto a expressão (5) significa «o odor que alguém sentiu e interpretou como sendo de flores»

(4) «cheiro de flores»

(5) «cheiro a flores»

Assim, em certas condições e neste âmbito, a preposição de pode especializar-se no sentido de indicar a origem ou a fonte5.

Não obstante, refira-se também que com nomes deverbais (como é o caso de cheiro, que se forma a partir de cheirar), a nominalização do verbo associa-se frequentemente a uma construção em que o complemento nominal corresponde ao complemento direto do verbo, como acontece em (6)

(6) «a crítica ao livro» = «alguém criticou o livro»

Nestas situações, como afirmam Brito e Raposo, «existem nominalizações ativas com nomes deverbais correspondendo a verbos transitivos nas quais o complemento direto é introduzido não pela preposição canónica...