Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
130K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

dicionário de Caldas Aulete dá para a locução adverbial «ao abrigo de» o valor de «defendido contra» em vez de «ao resguardo de».

Porém, como interpretar «um direito ao abrigo duma lei» como "um direito defendido contra"?

Muito obrigado!

Resposta:

A locução preposicional «ao abrigo de» pode, com efeito, ter o sentido de «defendido de», «protegido contra»1. Este sentido é ativado numa frase como a que se apresenta em (1):

(1) «Foi debaixo do telheiro ao abrigo da chuva.»

Esta locução pode também ser usada com o sentido de «autorizado por», «em conformidade com», o que se verifica em (2):

(2) «Foi transferida ao abrigo da lei da mobilidade.»

Este segundo sentido é o que estará presente na expressão apresentada pelo consulente, que será equivalente a:

(3) «Este é um direito autorizado pela lei / em conformidade com o previsto na lei.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea.

Pergunta:

A expressão «sinto-te a falta» em vez de «sinto a tua falta» está gramatical e sintaticamente correta? Se sim, serão intercambiáveis em termos de significado?

Desde já obrigado.

Resposta:

Comecemos por considerar a construção «sinto a falta» que, sem contexto e sem qualquer complemento, não é aceitável.

O nome falta pede um complemento introduzido pela preposição de, que lhe completa o sentido:

(1) «Sinto a falta do João.»

Ora, se a entidade sobre a qual recai o sentimento de falta for uma 2.ª pessoa, o sintagma introduzido por de será substituído pelo possessivo tua:

(2) «Sinto a tua falta.»

Por esta razão, não é aceitável a expressão «sinto a falta» sem a verbalização do complemento de falta

Relativamente à construção «sinto-te a falta», estamos perante um caso de pronominalização do complemento do nome falta, que, para a 3.ª pessoa do singular, está atestado, como se verifica em (3) e (4):

(3) «É o doido que em nós prega e nos deixa aturdidos. Às vezes consigo afastá-lo, mas sucede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado.. Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim»  (Raul Brandão, Húmus)

(4) «E talvez ela chorasse, e lhe sentisse a falta.» (Eça de Queirós, Alves e Companhia)

Esta construção é equivalente a «sinto a sua falta» ou «sinto a falta dele». 

Ora, o uso de 3.ª pessoa, será compreen...

Pergunta:

Será possível que tem gente que não sabe o significado da palavra de pior, por aqui, no Brasil para cometer essa verdadeira e imensa atrocidade («menos pior»...)?

Muitíssimo obrigado!

Resposta:

O uso de pior está previsto nos compêndios gramaticais.

A forma pior substitui a construção «mais mal», quando mal é um advérbio, como acontece em (1):

(1) «Os meus alunos escrevem pior que os teus.»

Pior também se usa quando mais se combina com o adjetivo mau:

(2) «Esta receita é pior que a do João.»

Todavia se mais se combinar com uma construção adjetival ou participial iniciada por mal não se usa a forma pior1:

(3) «O texto do João está mais mal escrito que o do António.»

(4) «O modelo do Rafael está mais mal concebido do que o do João.»

Podemos, então, concluir que pior é uma forma do comparativo de superioridade, pelo que se quisermos construir um comparativo de inferioridade, não poderemos usar «menos pior». Teremos, antes de optar por «menos mal/mau».

Disponha sempre!

 

1. Não obstante, em alguns autores assinalamos o uso da formas sintética pior em construções onde seria expectável o aparecimento de «mais bem» ou «mais mal». Para mais informação consulte-se esta resposta.

Pergunta:

Gostaria de perceber se na expressão «Chora-me o coração que se enche e que se abisma», da segunda parte de "O sentimento dum ocidental" de Cesário Verde, está presente uma hipálage, personificação ou metáfora.

Ou se estão presentes todas estas figuras de estilo, mas a metáfora é mais evidente e abrangente.

Desde já, obrigada!

Resposta:

De acordo com o E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, os recursos referidos pela consulente têm as seguintes características:

i) a hipálage é um recurso expressivo que consiste na «atribuição a um objecto de uma característica que, na realidade, pertence a outro com o qual está relacionado»;

ii) a personificação expressa uma «perspectiva animista da realidade não humana sem vida»;

iii) a metáfora «possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos.».

Ora, por um lado, atendendo a que o recurso incide sobre o coração, elemento que está intimamente ligado ao eu, não poderemos considerar que existe efetivamente transferência das características de uma realidade para outra, pelo que não estamos perante uma hipálage.

Por outro lado, não poderemos considerar que a expressão evoca efetivamente uma personificação, uma vez que não se trata efetivamente de atribuir características humanas a uma realidade não humana.

Por estas razões, estamos em crer que a classificação mais ajustada à realidade criada pelo verso em apreço será a metáfora, uma vez que ela pretende expressar o sentimento de tristeza do eu, por meio do choro que se atribui ao coração.

Disponha sempre!

CfCesário Verde: de incompreendido a poeta amado

Pergunta:

Revisando o marketing da minha empresa, me deparei com o seguinte trecho:

«O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando na velocidade da luz.»

Eu corrigi para «... é uma dimensão que só pode ser alcançada viajando-se à velocidade da luz», mas fiquei com um peso na consciência, como se eu houvesse cometido um erro.

Apresento outras circunstâncias que também me deixaram com dúvida:

2 – «O sucessor de um número natural é obtido somando (ou somando-se?) uma unidade a ele. Supondo (Supondo-se) que esse número natural é x, a soma entre seus 10 sucessores é:»

3 – «Representando (ou Representando-se) a situação na forma de diagrama, retira-se a interseção de cada conjunto e conclui-se que há 30 pessoas gostando apenas de pizza doce.»

4 – «Testando (ou Testando-se?) qualquer número inteiro no lugar de n, por exemplo 1, conclui-se que A é o conjunto dos números pares e B dos ímpares.»

5 – «Sabendo (ou Sabendo-se) as dimensões do cercado, basta obter o perímetro (2p) do retângulo de dimensões 20×25.»

Devo dizer que coloquei a partícula se em todas. Cometi algum erro?

Desde já agradeço.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, sendo que a diferença entre ambas poderá ser mínima.

As orações gerundivas podem ter um sujeito nulo (i.e., não expresso) quando o seu sujeito coincide com o da oração subordinante:

(1) «Chegando a casa, o João vai estudar.» (= O João chega a casa)

Esse sujeito poderá ser o próprio interlocutor a que se dirige o discurso:

(2) «Fazendo este trabalho, terás sucesso.» (=tu fazes este trabalho)

Neste e noutros casos, é também possível optar por uma construção de se impessoal, que permite atribuir à frase um grau de indeterminação associado ao facto de não se identificar o sujeito do verbo. É o que acontece em (3):

(3) «Descobriu-se a verdade sobre o caso.» (=alguém descobriu)

As situações descritas em (2) e (3) podem aplicar-se à frase apresentada pelo consulente:

(4) «O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando na velocidade da luz.»

(5) «O hiperespaço criado por Star Wars é uma dimensão alternativa que só pode ser alcançada viajando-se na velocidade da luz.»

Em (4), o sujeito do verbo no gerúndio pode estar presente no contexto (em frases anteriores) ou pode corresponder ao interlocutor (tu / você). Em (5), a construção de se impessoal determina uma valor de indefinição relativamente ao agente de viajar. Ora, se na frase (4) também não for possível identificar o sujeito do verbo no gerúndio, equivalendo este a alguém, o mesmo valor de indeterminação será ativado, o que leva a que as frases (4) e (5) tenham valores muito próximos.

Disponha sempre!