Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como explicar que com o nome dor se utiliza a preposição de, na maioria dos casos («dor de costas», «dor de dentes»), mas nalguns casos se utiliza com a preposição em («dor nos joelhos», «dor nas costas»)?

Resposta:

As opção por uma das duas preposições implica a mobilização de sentidos ligeiramente diferentes.

A preposição em tem um valor de localização espacial. Assim, nas expressões «dor nas costas» ou «dor nos joelhos» indica-se o local onde a dor ocorre1.

A preposição de tem um valor que indica o origem ou a fonte de algo. Desta forma, as expressões «dor de costas» ou «dor de joelhos» apontam para o local onde a dor tem origem2.

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1. Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1547-1548.

2. Idem, ibid., pp. 1548-1550.

Pergunta:

A nomenclatura relacionada com a área específica da gramática tem vindo a alterar-se profundamente, desde o pronome oblíquo ao sujeito nulo; desde a expansão dos grupos verbais e nominais ao desaparecimento do condicional como modo, substituído agora pelo futuro perfeito ou futuro do pretérito.

Fico inquieta com tanta alteração que remove a lógica em que assentou toda a minha aprendizagem.

Mais do que uma pergunta, trata-se de um desabafo.

Obrigada.

Resposta:

Uma das características do conhecimento científico é a sua evolução constante. A investigação realizada e as novas propostas de análise dos fenómenos permitem que o conhecimento avance em qualquer âmbito de estudo. Nos estudos gramaticais verificamos também esta dinâmica, que vai permitindo uma abordagem mais rigorosa e alargada dos fenómenos da língua. Diferentes gramáticas e trabalhos específicos de investigação têm desenvolvido este percurso. Por seu turno, o sistema escolar tem vindo a incorporar alguns destes avanços, convertendo-os em conteúdos a estudar em diferentes momentos de ensino.

Foi neste âmbito, por exemplo, que o complemento circunstancial deixou de ser considerado pelos programas de Português e se passou a estudar as funções de modificador e de complemento oblíquo. Igualmente neste contexto e a partir da entrada em vigor da Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário, propôs-se a introdução do termo sujeito nulo para as situações em que o sujeito não tem realização lexical. O Dicionário Terminológico, atual documento de referência para o ensino de português, mantém também a designação. No entanto, com o Programa e Metas Curriculares de Português do Ensino Básico (2015), este conceito d...

Pergunta:

Considere-se o seguinte excerto:

«O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.»

O segmento textual «Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes» evidencia o respeito por que princípios da coerência textual? Respeita todos os princípios do mesmo modo; ou, por outro lado, um especialmente, em particular (por exemplo, o da relevância ou o da não contradição, em havendo a necessidade de se elencar só um)?

Muito obrigado.

Resposta:

O excerto apresentado intitula-se “O único viajante com verdadeira alma” e é retirado de O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.

Relativamente à coerência textual, é importante que se diga, antes de mais, que esta se vai construindo ao longo de todo o texto, por meio de um processo cognitivo, encetado pelo leitor, que vai conferindo sentido e relação aos vários segmentos textuais.

A coerência assenta em três princípios básicos, que se relacionam com a forma como o pensamento humano se estrutura e como este organiza o mundo real:

i) o princípio da não contradição: as ideias / segmentos textuais não se devem contradizer;

ii) o princípio da não tautologia: as ideias não se devem repetir ao longo do texto;

iii) o princípio da relevância: as ideias do texto devem relacionar-se entre si, de modo que os diferentes segmentos não criem incoerência entre si.

Um texto coerente deve ainda evidenciar progressão temática e continuidade de ideias.

O segmento apresentado pelo consulente respeita o princípio da não tautologia dado que não repete ideias anteriores. Também respeita o princípio da relevância, dado que este segmento dá continuidade ao anterior, sendo relevante para o que ficou dito. Já o princípio da não contradição parece, numa primeira leitura, não ser respeitado. Com efeito, o segmento inicial refere um viajante, enquanto o segmento em análise autoriza a inferência de que o rapazinho não era viajante.  Não obstante, afirma Fonseca que o leitor faz sempre um esforço de coerência que se orienta no sentido de procurar reconstruir a total...

Pergunta:

A construção «estiveram presentes todos exceto….» está correta? É uma frase que insistentemente surge na abertura de atas.

Se estiveram todos não há exceções, o que me recorda uma outra construção que, embora também não me pareça completamente correta, considero mais aceitável por conter um "reforço" da ideia.

É ela: «Todos, sem exceção.»

Obrigada.

Resposta:

O uso em causa faz parte de um conjunto de expressões formulaicas usadas na redação de atas. Todos aponta para um valor de quantificação universal que, ao ser associado a exceto, acaba por ser reduzido. Deste modo, todos passa a designar a totalidade do universo referido, sem considerar os elementos abrangidos por exceto.   

Por seu turno, «todos sem exceção» é uma expressão fixa com um cariz redundante que serve para reforçar a ideia de totalidade do universo referido. Esta construção joga com a que analisámos anteriormente, evidenciando que, neste caso, não há lugar a reduções do universo referido.

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Pergunta:

Na frase «nós viemos para o almoço», o segmento «para o almoço» não desempenha a função de complemento (neste caso, oblíquo)?

Vi, numa aula do programa Estudo em Casa (RTP), a usarem este exemplo, mas classificando-o como modificador (grupo verbal).

Grata pelo esclarecimento.

Resposta:

O constituinte «para o almoço» desempenha, na frase em questão, a função de complemento oblíquo.

A identificação dos complementos de um verbo pode ser efetuada por meio da aplicação do teste da construção pseudoclivada. O teste mostra-nos quais os constituintes que podem ser afastados do verbo: estes desempenham a função de modificador. Os constituintes que tiverem de permanecer junto do verbo são seus complementos.

Apliquemos o teste à frase:

(1a) «O que nós fizemos foi vir para o almoço.»

(1b) «*O que nós fizemos para o almoço foi vir.»

O facto de a frase (1b) não ser aceitável indica que não podemos separar o constituinte «para o almoço» do verbo vir. Por essa mesma razão a frase (1a) já é aceitável. Este teste permite concluir que o constituinte em análise desempenha a função de complemento oblíquo.      

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