Pergunta:
Considere-se o seguinte excerto:
«O único viajante com verdadeira alma que conheci era um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em tempos fui empregado. Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes; tinha mapas – uns arrancados de periódicos, outros que pedia aqui e ali –; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilustrações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer escritório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pedia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens para a Índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a Austrália.»
O segmento textual «Este rapazito coleccionava folhetos de propaganda de cidades, países e companhias de transportes» evidencia o respeito por que princípios da coerência textual? Respeita todos os princípios do mesmo modo; ou, por outro lado, um especialmente, em particular (por exemplo, o da relevância ou o da não contradição, em havendo a necessidade de se elencar só um)?
Muito obrigado.
Resposta:
O excerto apresentado intitula-se “O único viajante com verdadeira alma” e é retirado de O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares.
Relativamente à coerência textual, é importante que se diga, antes de mais, que esta se vai construindo ao longo de todo o texto, por meio de um processo cognitivo, encetado pelo leitor, que vai conferindo sentido e relação aos vários segmentos textuais.
A coerência assenta em três princípios básicos, que se relacionam com a forma como o pensamento humano se estrutura e como este organiza o mundo real:
i) o princípio da não contradição: as ideias / segmentos textuais não se devem contradizer;
ii) o princípio da não tautologia: as ideias não se devem repetir ao longo do texto;
iii) o princípio da relevância: as ideias do texto devem relacionar-se entre si, de modo que os diferentes segmentos não criem incoerência entre si.
Um texto coerente deve ainda evidenciar progressão temática e continuidade de ideias.
O segmento apresentado pelo consulente respeita o princípio da não tautologia dado que não repete ideias anteriores. Também respeita o princípio da relevância, dado que este segmento dá continuidade ao anterior, sendo relevante para o que ficou dito. Já o princípio da não contradição parece, numa primeira leitura, não ser respeitado. Com efeito, o segmento inicial refere um viajante, enquanto o segmento em análise autoriza a inferência de que o rapazinho não era viajante. Não obstante, afirma Fonseca que o leitor faz sempre um esforço de coerência que se orienta no sentido de procurar reconstruir a total...