Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Elas compraram um terço perto da catedral», qual a classe de um: determinante ou quantificador?

Penso que o verbo comprar implica uma quantidade, logo na minha opinião será um quantificador cardinal. Contudo, deparei-me com um colega que afirma que é um determinante.

Gostaria de tirar esta dúvida.

Resposta:

Sem ter conhecimento do contexto, não poderemos classificar a palavra um, que tanto poderá pertencer à classe dos quantificadores numerais como à dos determinantes artigos indefinidos.

Sendo um artigo indefinido, um incide sobre o nome terço, gerando uma leitura de valor indefinido: trata-se de um terço qualquer, que não se identifica, nem particulariza.

Sendo um quantificador numeral, um incide sobre o nome terço e produz uma leitura de quantidade: a informação dada é relativa ao número de terços adquiridos pelo locutor.

Com conhecimento do contexto, será possível aplicar alguns testes que permitirão ajudar na classificação da palavra um1:

(i) sendo quantificador, é compatível com construções do tipo apresentado em (1), onde se conjugam dois quantificadores (um e dois):

(1) «Elas compraram um terço perto da catedral e eu comprei dois

Note-se que dois incide sobre o nome terços, o qual está elidido na frase.

(ii) sendo artigo indefinido, é compatível com o plural (os quantificadores não se pluralizam):

(2) «Elas compraram uns terços perto da catedral.»

(iii) no plural, o artigo indefinido pode coocorrer com um quantificador numeral antecedendo-o (não se colocam dois quantificadores seguidos):

(3) «Elas compraram uns cinco terços perto da catedral.»

Disponha sempre! 

 

Pergunta:

Nas frases «A banda desenhada é interessante de ler» e «O texto está bem escrito e fixe de ler», perguntava-vos se o emprego da preposição destacada é possível.

Obrigado.

Resposta:

A utilização da preposição de é possível nos casos que apresentaremos abaixo. Refira-se, todavia que a segunda frase tem um problema de estrutura, pelo que consideraremos a frase apresentada em (1):

(1) «O texto é fixe de ler.»

A construção em causa é uma construção particular que é equivalente a uma frase na qual o adjetivo interessante (ou fixe) seleciona uma oração completiva com função de sujeito:

(2) «É interessante ler a banda desenhada.»

(3) «É fixe ler este texto.»

Os adjetivos que se constroem com oração completiva também permitem uma construção como a que se apresenta em (4) e (5):

(4) «A banda desenhada é interessante de ler.»

(5) «Este texto é fixe de ler.»

Neste caso, estamos perante uma estrutura copulativa que tem como sujeito o sintagma nominal que constitui o complemento direto na oração completiva (em (2) e (3)). Nas frases (4) e (5), a oração completiva perde o seu complemento direto e é introduzida pela preposição de1.

Atentando agora na segunda frase apresentada pelo consulente, veremos que o seu problema é de natureza sintática. A estrutura «bem escrito e fixe» coordena um particípio verbal com um adjetivo com sintaxes distintas: o particípio escrito ocorre com o verbo estar; o adjetivo fixe ocorre preferencialmente com o verbo ser:

(6) «O livro está bem escrito.»

(7) «O livro é fixe.»

Disponha sempre!

 

Usos da vírgula
Com sujeito e com vocativo

Partindo da frase «Pedro abre a porta.», a professora Carla Marques esclarece o contexto em que poderá existir uma vírgula após Pedro (apontamento do programa Páginas de Português da Antena 2).

Pergunta:

Na frase «queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes», o vocábulo que pertence a que classe e subclasse?

Resposta:

Na frase em apreço, que é um pronome relativo.

A expressão em questão constitui o que Cunha e Cintra designam por superlativo intensivo1, uma construção que expressa os limites de uma dada possibilidade.

Esta construção forma-se com a locução adverbial «o mais» (ou «o menos»), que seleciona como complemento o adjetivo possível ou uma oração relativa de sentido equivalente2:

(1) «Ele veio o mais depressa possível.»

(2) «Ele veio o mais depressa que pôde.»

Esta mesma situação está presente na frase apresentada pela consulente, na qual a locução «o mais» seleciona como complemento a oração relativa «que formos capazes». Esta oração, por seu turno, é introduzida pelo pronome relativo que.

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, pp. 546-547.

2. Para mais informação, cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1588-1590.

Pergunta:

Sabemos que o modo subjuntivo é usado com mais frequência acompanhado de algumas conjunções ou expressões impessoais. Mas ele também é o modo usado para indicar incerteza/possibilidade.

No caso a seguir, a frase indica incerteza/possibilidade, mas não há conjunção. Qual é a melhor forma de conjugar o verbo aguardar? «Aguardem» ou «aguardam»? O uso do subjuntivo, neste caso, é aceitável?

Não importa quais desafios nos aguardem, teremos força para enfrentá-los. / Não importa quais desafios nos aguardam, teremos força para enfrentá-los.

Resposta:

Ambos os modos são possíveis, embora o seu uso ative significações diferentes.

Antes de mais, diga-se que as frases apresentadas incluem uma oração interrogativa indireta: «quais desafios nos aguardem/ aguardem», que é introduzida pelo determinante interrogativo quais.

No interior desta oração, será possível recorrer a um tempo quer do modo indicativo quer do modo conjuntivo (subjuntivo), o que traduzirá uma intenção distinta.

Assim, poder-se-á optar pelo presente do modo indicativo, como em (1):

(1) «Não importa quais desafios nos aguardam, teremos força para enfrentá-los.»

Neste caso, o recurso ao presente do indicativo aponta para um valor de situação habitual, ou seja, descreve uma situação que acontece com regularidade, podendo também assumir um valor genérico ao descrever uma situação que engloba um conjunto de situações desta natureza.1

É possível também selecionar o presente do conjuntivo, como acontece em (2):

(2) «Não importa quais desafios nos aguardem, teremos força para enfrentá-los.»

Neste caso, o conjuntivo expressa um valor de localização da situação descrita num tempo posterior ao da oração subordinante, ou seja, referem-se os desafios que terão lugar no intervalo temporal posterior ao do momento de fala (daí o valor de possibilidade que o conjuntivo convoca).

Disponha sempre!

  

1. Para mais informação sobre os valores associados ao uso do presente do indicativo, consulte-se Oliveira in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulben...