Artur Morão - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Artur Morão
Artur Morão
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Professor de Filosofia, investigador no Centro de Estudos de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica. Fundador de LusoSofia. Colaborador do Instituto de Filosofia Prática (IFP) da Universidade da Beira Interior, na Covilhã.

Filólogo, latinista, helenista, musicólogo. Tradutor para português de obras de autores como AristótelesAby WarburgCarl DahlhausFriedrich Nietsche, Hegel, Immanuel Kant, Jean Baudrillard, Martin Heidegger, Max Weber, Sigmund Freud, entre outros.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Ao ler a ode Nem vã esperança vem, não anos vão, de Ricardo Reis – que reproduzo abaixo –, encontrei no quinto verso a palavra labento. Em vão procurei esta palavra no dicionário eletrónico Priberam e na Infopédia. A minha questão é a seguinte: qual o significado desta palavra?

Muito agradeço, se me puderem elucidar, assim como, se for possível, que expliquem a sua etimologia.

 

«Nem vã esperança vem, não anos vão,

Desesperança, Lídia, nos governa

        A consumanda vida.

Só espera ou desespera quem conhece

Que há que esperar. Nós, no labento curso

         Do ser, só ignoramos.

Breves no triste gozo desfolhamos

Rosas. Mais breves que nós fingem legar

         A comparada vida.»

28-9-1926

Resposta:

O significado de labento nos versos referidos é fugaz, efémero, inconstante e sinónimos afins. Situa-se no mesmo campo semântico que lábil, labilidade.

Labento – que não aparece nos dicionários da nossa língua – parece ser uma invenção de Fernando Pessoa, tão ao jeito dos latinismos de Ricardo Reis. Será um erro de transcrição? Deveria ser, porventura, labente, porque deriva do particípio presente labens, do verbo latino labor, eris, i, lapsus sum (cair, escorregar, etc.). Veja-se, por ex., o ablativo absoluto de Virgílio: labente anno, «encaminhando-se o ano para o seu fim». A desinência latina -ens em geral dá -ente em português:.Por exemplo: dolente, sapiente, continente, presidente, etc.

O significado (bem claro no poema) gira à volta da transitoriedade e fugacidade da vida. 

Por outro lado, não sei se labento será um hápax legómenon (algo dito só uma vez) mesmo em Fernando Pessoa. Virá tal adjetivo a ter um uso corrente? Duvido. Mas aí está ele, e não figura mal no ritmo dos melancólicos versos de Ricardo Reis.

«A montanha pariu um rato»

A curiosa e sugestiva expressão «A montanha pariu um rato» é dissecada numa explicação que nos surpreende.

Pergunta:

Quanto ao ablativo singular do pronome relativo/interrogativo latino qui, quae, quod, sempre o pronunciei “quó”. Na expressão statu quo” oiço quase sempre a pronúncia “qúo”, o mesmo não acontecendo com o advérbio de lugar na expressão “quo vadis?”, que toda a gente pronuncia “quó”. Seria possível que me esclarecessem se a pronúncia “qúo” é um erro? Já agora, na declinação de “qui, quae, quod”, sempre pronunciei o nominativo masculino “quí” e o dativo singular “cúi”. Estarei correto?

Muito obrigado.

Resposta:

A pergunta apresenta já a resposta certa, precisa apenas de debelar a dúvida. 

1. Quo na expressão statu quo (ou também status quo) é o ablativo do pronome relativo qui, quae, quod; é um monossílabo e deve pronunciar-se /quó/, como também refere, e bem.  É, pois, um disparate rotundo fazer dele um dissílabo e pronunciá-lo como "qúo". A causa da difusão do "qúo" reside nos meios de comunicação, onde pessoas, mesmo com formação intelectual variada, desconhecem estes aspetos e também não se preocupam com a sua exatidão ou justeza. E o erro, qual vírus renitente, espalha-se e alastra.

2. Há igualmente razão quanto à pronúncia do nominativo masculino qui e do dativo cui.

Pergunta:

Gostaria de saber qual a origem e significado da expressão «Fazer-se de Inês». 

Resposta:

     O significado é fácil de encontrar: alude à atitude de «fazer de conta que se desconhece a situação» (embaraçosa); dar a entender que nada se tem a ver com um problema.

     No entanto, a origem é difícil de descortinar. Existe a expressão, de certo modo paralela, «Inês é morta» (ou seja, agora, já é tarde, já não há remédio) e a referência dirige-se evidentemente a Inês de Castro.

     Apresentou-se-me a hipótese de a primeira expressão ter possivelmente a ver com a «Farsa de Inês Pereira», onde ela disfarça logo no princípio e, também, após a notícia da morte do primeiro marido. Reli a peça, mas o disfarce não apresenta bem o mesmo matiz. Apesar de tudo, acho que a expressão não se teria imposto sem a alusão a um lugar clássico, mais ou menos conhecido. 

N.E. – Na pesquisa efetuada, encontrámos no Novo Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de Rodrigo Fontinha, a expressão «Inês-d'orta»: «pessoa que é ou se finge de idiota para levar a vida.», semanticamente idêntica à da pergunta do consulente.