Ana Martins - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Ana Martins
Ana Martins
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e licenciada em Línguas Modernas – Estudos Anglo-Americanos, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestra e doutora em Linguística Portuguesa, desenvolveu projeto de pós-doutoramento em aquisição de L2 dedicado ao estudo de processos de retextualização para fins de produção de materiais de ensino em PL2 – tais como  A Textualização da Viagem: Relato vs. Enunciação, Uma Abordagem Enunciativa (2010), Gramática Aplicada - Língua Portuguesa – 3.º Ciclo do Ensino Básico (2011) e de versões adaptadas de clássicos da literatura portuguesa para aprendentes de Português-Língua Estrangeira.Também é autora de adaptações de obras literárias portuguesas para estrangeiros: Amor de Perdição, PeregrinaçãoA Cidade e as Serras. É ainda autora da coleção Contos com Nível, um conjunto de volumes de contos originais, cada um destinado a um nível de proficiência. Consultora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e responsável da Ciberescola da Língua Portuguesa

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber quais os tipos de discurso existentes para além do Discurso político, que faz parte do programa de 11.º ano. Será que podemos dizer que existe um discurso poético (no sentido de declamação de um poema), ou aquilo que existe são textos poéticos divididos nas suas respectivas categorias (épico, lírico...)? E um discurso publicitário existe? Quais as principais características?

Já agora, agradecia alguma bibliografia sobre o assunto que seja do vosso conhecimento.

Agradeço desde já a atenção dispensada!

Resposta:

1. Se consultar o programa de Português em vigor (Programa de Português 10.º, 11.º e 12.º anos – Cursos Científico-Humanísticos e Cursos Tecnológicos (2001/2002), encontra no domínio «Funcionamento da Língua», sob o tópico «Pragmática e Linguística Textual», o item «Tipologia textual/protótipos textuais».

1.1. O que se entende por «protótipos textuais»?
Esta classificação deriva das célebres propostas de classificação de sequências textuais prototípicas, do linguista francês Jean-Michel Adam (Les Textes: Types et prototypes, Paris, Nathan).

O que Adam diz, basicamente, é o seguinte: face à extrema diversidade da natureza dos discursos reais, efetivamente produzidos, na oralidade ou na escrita, é possível fazer o reconhecimento de um conjunto estável de características afetas a sequ|ências textuais (agregados de frases ou parágrafos). As sequ|ências textuais prototípicas (que no programa aparecem como «protótipos textuais) não são textos ou discursos reais ou empíricos, mas abstrações, ou seja, conjuntos de características no que toca aos diferentes modos de organização das frases em texto.

Consideram-se (apenas) seis sequências prototípicas (ou «protótipos textuais»):

– sequência narrativa: sucessão de acontecimentos; enredo, transformação; unidade temática; moralidade.
– sequ|ência descritiva: designação/enumeração; localização; caracterização/qualificação.
– sequ|ência dialogal: fórmulas de abertura; fórmulas de fechamento, pares adjacentes (de concordância/discordância).
– sequência argumentativa: argumento; conclusão; pressuposto
– sequência instrucional:verbos 3.ª pess...

Pergunta:

Nas respostas anteriores, a propósito de subentendidos, referiu-se a lei do litote.

Será possível uma explicação da referida lei?

Muito obrigada.

Resposta:

Num qualquer acto comunicativo, o interlocutor pode sempre captar mais informação do que aquela que o enunciado significa, de um modo literal.

A operação interpretativa geral é esta:
Se o locutor K acreditou que era bom dizer X, é porque ele pensa Y.

Concluiu-se Y, não pelo que se disse (o conteúdo de X), mas pelo facto de se ter dito X.
Oswald Ducrot (1972 — Dire et ne pas dire. Principes de sémantique linguistique, Paris, Hermann. pp. 133-137) apurou alguns princípios/leis que desencadeiam subentendidos.

Lei da informatividade:Todo o enunciado A, sendo apresentado como fonte de informação, induz no subentendido de que o interlocutor ignora A ou, inclusivamente, que tende a pensar não-A.

Lei da exaustividade: O locutor dá, sobre o tema de que fala, as informações mais fortes/pertinentes que possua e que sejam susceptíveis de interessar o interlocutor.

Lei da litotes: Conduz a interpretar um enunciado como dizendo mais do que a significação literal que comporta. É uma lei complementar à da exaustividade.

Assim:

«Certos presidentes de câmara são corruptos.»

Em determinados contextos, certos pode ter o sentido de todos. O processo interpretativo é este:

Se o locutor escolheu A, que é a formulação mais forte, é porque ele quis dizer mais, mas não pôde.

Que semelhanças há entre Obama e o padre António Vieira? Pelo menos duas: o espectáculo da palavra e o fervor religioso. Na Igreja de S. Roque era preciso reservar lugar para ouvir os sermões de Vieira; no Grant Park, em Chicago, 240 mil pessoas vibraram durante os 15 minutos da elocução de Obama1: comoveram-se com o poder da «esperança» (a palavra surge 6 vezes); regozijara...

Sobre a boçalidade do uso indiscriminado de palavras inglesas na imprensa — um artigo de Ana Martins no Sol.

Li há tempos esta passagem no Diário de Notícias: «refere o analista André Rodrigues (…) num relatório de research» (DN, 24/10/08). Lembrei-me imediatamente do dialecto miscigenado dos emigrantes portugueses em França, parodiado (com injustificável desprezo, aliás) em locuções do tipo «ir de vacances», «entrar na autoroute» e «janelas à la fenêtre numa casa estilo maison».

Pergunta:

Na frase «Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém», «com ninguém» sintacticamente é o quê? Tradicionalmente e segundo a TLEBS.

Continuação do bom trabalho.

Resposta:

Segundo a TLEBS (e, vulgarmente, segundo os actuais estudos de sintaxe) trata-se de um complemento oblíquo. Por definição, o complemento oblíquo é seleccionado pelo verbo, ao contrário do modificador. Quando realizado por um grupo preposicional, ele não pode ser substituível pelo pronome pessoal na forma dativa (lhe/lhes). Este critério permite distinguir o complemento oblíquo (quando realizado por grupo preposicional) do complemento indirecto.

No caso da frase em apreço, o complemento oblíquo «com ninguém» não é exigido por um verbo ou complexo verbal (verbo auxiliar + verbo principal) mas por uma expressão verbal fixa — «ter uma pega» — que actua como verbo/complexo verbal.

(Outros exemplos:«andar à pega»; «mandar vir» )

Segundo a gramática tradicional, «com alguém» é um complemento circunstancial. É importante notar que não há equivalência entre complemento circunstancial e complemento oblíquo. O termo (e noção) complemento circunstancial não permite distinguir o constituinte preposicional que é seleccionado pelo verbo daquele que o não é. Segundo a gramática tradicional, tanto é complemento circunstancial:

«Vim de Paris.»
como:
«Como sardinhas de quando em vez.»