«... a conclusão que tiro para mim é que o melhor é comprar a versão original, em livro eletrónico.»
Assisti há uns meses a um workshop de Linguística em que uma sessão era sobre tradução. Fiquei a saber que os tradutores podem às vezes fazer apenas as funções de revisores de uma tradução que foi gerada pelo Google Tradutor. Isto parece ser prática para a tradução de rótulos de produtos ou instruções de uso de aparelhos.
O que eu não sabia era que essa prática também poderá estar a ser adotada para a tradução de livros inteiros.
Dou dois exemplos. Recentemente dei com os olhos no livro A Desilusão de Deus, de Richard Dawkins. Por acaso, conheço as obras do autor, biólogo evolucionista, e tinha lido este livro em inglês, que comprei em e-book. O título original é The God Delusion. Ora, Delusion não quer dizer “desilusão”, quer dizer “delírio”. O sentido do título The God Delusion é que a ideia de que Deus existe é uma ideia delirante.
Fui investigar: a tradução brasileira do título do livro é: Deus, um delírio; e é uma boa tradução. Depois, experimentei inserir no Google Tradutor o título The God Delusion e o que me saiu foi, justamente, A Desilusão de Deus! Richard Dawkins terá mais do que razão para processar a editora portuguesa, pois aquilo que é uma obra de defesa do ateísmo, The God Delusion, passou a ser em português, uma obra de apologia religiosa, A Desilusão de Deus!
O outro exemplo é de um livro de Anne Applebaum, com o título A Cortina de Ferro. Na altura em que o tinha na mão para o comprar, devia ter desconfiado das notas que se dão sobre a autora, na capa logo abaixo do título. Diz-se aí que Anne Applebaum é «Autora de Gulag e vencedor do Prémio Pulitzer». Mesmo assim, comprei. Custou-me 28 euros. Está à venda na língua original, inglês, em e-book, na Amazon, por 15 euros. Calculei que assim fosse, mas optei por comprar na mesma a tradução, em livro físico. Não o devia ter feito. Para além de estar coalhado de gralhas, o texto está cheio de traduções automáticas. Por exemplo, fala-se do ensino na RDA e diz-se (cito) «os tópicos aceitáveis eram a história da classe trabalhadora, a Revolução Russa e os logros da União Soviética». Ora, logro em português, quer dizer “fraude”. Como é que o sistema comunista insistia em que se ensinasse os logros da União Soviética é uma coisa que não se consegue explicar. Há constantemente frases decalcadas do inglês, como (cito) «Os membros do Politburo não eram os únicos que não sabiam o que fazer consigo no dia 17 de junho»; ou (cito) «A obra de propaganda demasiado óbvia e demasiado claramente produto resultante de uma discussão política acabou por tornar-se motivo de embaraço.»
Mas há outras passagens tão absurdas que uma pessoa não é capaz de dizer de onde é que elas vêm. Por exemplo, quando já se está a relatar a oposição ao regime, na Polónia e Hungria, diz-se que a liderança soviética, tomada de surpresa, não sabia como reagir. O remate do parágrafo é este: «As potências ocidentais também estavam a nadar.»
Gosto muito de ler livros em papel, reconheço valor às editoras portuguesas, mas a conclusão que tiro para mim é que o melhor é comprar a versão original, em livro eletrónico. Fica mais barato, mas sobretudo, ainda que eu não seja falante do inglês como língua materna, fico a perceber melhor o que lá se diz.
Apontamento de Ana Sousa Martins, coordenadora da Ciberescola da Língua Portuguesa, para a rubrica "Cronicando" do programa Páginas de Português (Antena 2, 11/11/2018).