« (...) Todas as ocorrências de black, a palavra inglesa para «negro», foram traduzidas por preto. [...] Isto soa horrivelmente aos ouvidos de um português! (...)»
A palavra inglesa negro – traduzível literalmente por negro – é, no mundo anglófono, extremamente ofensiva e racista. Black é a palavra neutra ou a palavra não pejorativa. Em português, preto é ofensivo e negro é a palavra que se deve usar. Em termos de ressonâncias culturais, negro e black são, em relação ao português, falsos amigos com conotações perfeitamente inversas. Que um tradutor não saiba isto é grave para ele próprio, é grave para o leitor e é grave para o autor.
Particularmente se o livro em causa é A Estranha Morte da Europa, de Douglas Murray. Trata-se de um best-seller internacional, traduzido para o português em maio deste ano, e cuja tese principal é a de que a combinação entre o movimento massificado de pessoas a entrar no continente europeu e o colapso da identidade europeia, muito à conta de uma culpabilidade autoinfligida e cultivada relativamente ao nosso passado histórico, está a ser fatal para a Europa. Centrando-se na crise migratória de 2015, Douglas Murray faz perguntas muito pertinentes e desenvolve uma reflexão muito rigorosa e bem informada, apoiada em factos da atualidade e da história, em estatísticas e nos testemunhos de imigrantes que recolheu ao longo das suas viagens a Berlim, França, Grécia e em Lampedusa, para fazer este livro.
Comprei e versão original no Kindle e li a entrevista que o autor deu ao Observador aquando do lançamento da tradução em português. Fiquei a saber nessa entrevista que todas as ocorrências de black, a palavra inglesa para «negro», foram traduzidas por preto. Fui comprar o livro em português e confirmei. O resultado é o que ilustram as passagens que vou ler:
«O que tinha sido uma questão de pretos, caribenhos ou norte-americanos, torna-se agora uma questão de muçulmanos ou de islão(…)» (p. 101)
«Lá dentro, embora os sacerdotes sejam brancos mais velhos, o resto da congregação é composta por africanos pretos (…)» (p.110)
«A maior parte das pessoas são pretas e viajam para os subúrbios distantes (…)» (p. 111)
Isto soa horrivelmente aos ouvidos de um português!
Douglas Murray foi informado pelo jornalista do Observador acerca deste atropelo na tradução e ficou muito incomodado, como é de esperar. Imagino o que terá pensado quando lhe disseram, se é que lhe disseram ou se ele foi capaz de reparar, que também lhe alteraram o subtítulo do livro. Onde no original está «Immigration, Identity, Islam» na versão portuguesa está «Imigração, Identidade, Religião».
Apontamento de Ana Sousa Martins, coordenadora da Ciberescola da Língua Portuguesa, para a rubrica "Cronicando" do programa Páginas de Português (Antena 2, 30/12/2018).