«(...) Dizem os manuais que a planificação linguística (aplicação prática da política linguística adotada por um Estado) se desenvolve em três vetores fundamentais: 1) a planificação do estatuto; 2) a planificação do corpus (constituição dos recursos necessários ao desempenho dos papéis a atribuir à língua); 3) a planificação do ensino (definição do modo como a(s) língua(s) será(ão) tratada(s) no sistema de ensino). (...)»
Começo com uma ressalva: não sou cabo-verdiana e não viso interferir nas políticas linguísticas que o Estado cabo-verdiano e os seus cidadãos soberanamente adota(re)m; além disso, não sou jurista, mas apenas uma linguista que observa a situação de fora. É exclusivamente dessa perspetiva que aqui escrevo. O meu objetivo é tão-só levantar questões sobre as quais venho pensando e, se possível, ajudar a verbalizar ideias, a definir objetivos.
Reconhecer e conferir estatuto oficial à língua cabo-verdiana é um desejo legítimo e compreensível, sobretudo num jovem país que há meio século não mais era que parte de um domínio colonial. A língua cabo-verdiana é a língua nacional de Cabo Verde, endógena, definidora da identidade do seu povo; o português é uma língua europeia, exógena, útil para a construção e consolidação do Estado.
As três alíneas do Artigo 9.º da Lei Constitucional n.º 1/V/99 de 23 de novembro, intitulado "Línguas oficiais", determina: «1. É língua oficial o Português. 2. O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa. 3. Todos os cidadãos nacionais têm o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las.» Do ponto de vista estritamente linguístico, a formulação deste artigo é estranha e confusa: por um lado, consagra-se no título a existência de mais do que uma língua oficial (através do uso do plural); por outro, na alínea 1., afirma-se que esse estatuto é reservado apenas ao português (através do uso do artigo definido); a alínea 3. retoma a forma plural («as línguas oficiais») e até determina o dever dos cidadãos de as conhecer e o direito de as usar, mas, pelo meio, em 2., não se determina que a língua cabo-verdiana é ou será oficial, mas só que «o Estado promoverá as condições para a [sua] oficialização». O que é que isso significa? Que condições são essas de que se fala? Passados 22 anos da publicação da Lei Constitucional, a língua cabo-verdiana ainda não é oficial e pergunto-me que condições terão sido criadas.
Dizem os manuais que a planificação linguística (aplicação prática da política linguística adotada por um Estado) se desenvolve em três vetores fundamentais: 1) a planificação do estatuto; 2) a planificação do corpus (constituição dos recursos necessários ao desempenho dos papéis a atribuir à língua); 3) a planificação do ensino (definição do modo como a(s) língua(s) será(ão) tratada(s) no sistema de ensino).
Comecemos pela definição do estatuto. Encontramos definições de «língua oficial», sobretudo em trabalhos de sociolinguística e de política linguística. Tomarei duas disponíveis online: a) língua oficial designada por lei para ser usada no domínio público (Learning Portal Glossary, UNESCO); b) língua que tem estatuto legal em determinada entidade política, e.g. Estado ou parte de um Estado, usada como língua da administração (Glossary of Statistical Terms, OCDE). Partindo apenas destas, logo encontramos duas visões do que pode ser uma língua oficial, reconhecida legalmente: parte do domínio público (propriedade de todos e de ninguém) ou uma língua de administração.
O que significa ou poderá significar tornar o cabo-verdiano língua oficial? Que visão se adotará? Que objetivos são visados pela oficialização? Que condições será necessário criar? Responder a estas questões, acredito, poderá ser um bom ponto de partida nesta discussão, mas o assunto fica muito longe de esgotado.
Crónica incluída no Diário de Notícias de 12 de julho de 2021.