«Onde está a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa(CPLP), onde se fala realmente português (o fá d’Ambô, o crioulo com base no português), ao contrário do resto da Guiné Equatorial?»
Desde que os navegadores portugueses a avistaram num primeiro dia do ano no século XV que a história de Ano Bom é uma história de sofrimento, exploração e esquecimento. A pequena ilha de 17,5 quilómetros quadrados, 180 quilómetros a sul da ilha de São Tomé e a 300 quilómetros da costa do Gabão, ponto de abastecimento de água potável e alimentos frescos para os navios que passam pelo golfo da Guiné, seria um paraíso para os seus 5000 habitantes, não fosse o colonialismo.
Os ano-bonenses apontam o ano de 1886 como o princípio da sua desdita, quando em nome da potência colonial espanhola se aboliu o sistema de governo histórico-político da ilha que funcionava até então e se impôs o controlo desde Buenos Aires. Os nativos, descendentes do primeiro povoamento da ilha por africanos de Angola, tinham conquistado essa autonomia depois das revoltas aquando da transferência de soberania da ilha de Portugal para Espanha pelos tratados de Santo Ildefonso (1777) e El Pardo (1778), que ditaram também a passagem para as mãos do vice-reino da Prata das ilhas de Corisco e de Fernando Pó.
Os espanhóis encarregar-se-iam de deixar à pequena ilha uma ditadura sanguinária como herança da independência da Guiné Equatorial. Primeiro por Francisco Macías Nguema, que depois de eleito nas primeiras eleições do país independente em 1968 se tornou ditador até ser deposto pelo sobrinho, Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, que o mandou fuzilar em 1979 e ficou ele com o poder até hoje.
Não é que Obiang tenha particular sanha em relação aos ano-bonenses. Nesse aspecto, é muito democrático: a violência e repressão do seu regime, o controlo obsessivo da sociedade, a mão de ferro em relação a qualquer dissidência estendem-se de Malabo, a capital, na ilha de Bioko (antiga Fernando Pó), até Rio Muni (a parte continental, onde fica a segunda maior cidade, Bata), passando pelas outras quatro ilhas que compõem o país (Corisco, Ano Bom, Elobey Grande e Elobey Pequena, esta última desabitada).
O autoproclamado governo da república de Ano Bom declarou a independência unilateral da ilha a 9 de Julho de 2022, depois de várias propostas de autonomia apresentadas ao regime sem obter qualquer resposta, a não ser mais «políticas de perseguição, repressão e assédio, discriminação sistemática, abandono e detenção em regime de incomunicabilidade, migração forçada, intimidação e extorsão contra a população de Ano Bom, bem como terrorismo de Estado e extermínio», como se lê no site oficial da jovem república.
«A ditadura que leva 56 anos como sistema na Guiné Equatorial não dialoga com ninguém. É arbitrária e tem a tortura como arma de repressão através das forças de segurança, gendarmes, polícias, Exército e quase meio povo fang colaborando. Os ano-bonenses vivem humilhados na Guiné Equatorial», disse ao Público o primeiro-ministro de Ano Bom no exílio, Orlando Cartagena Lagar.
Num país onde poucos ousam protestar nas ruas contra as arbitrariedades do regime, os cidadãos de Ano Bom manifestaram-se publicamente contra a empresa marroquina ligada ao poder em Rabat e Malabo que explora minerais na ilha sem qualquer preocupação com o impacto ambiental. Uma carta aberta contra as acções da Somagec levou o Presidente Obiang a enviar militares para Ano Bom com a incumbência de prender os 16 assinantes e todos aqueles que ousem protestar.
Comunicações cortadas
Mas com as notícias da repressão a chegarem à comunidade de activistas e exilados da Guiné Equatorial na diáspora, sobretudo em Madrid, o regime decidiu cortar as comunicações e isolar a pequena ilha do resto do mundo. O ministro de Transportes, Correios e Novas Tecnologias de Informação, Honorato Evita Oma, até ameaçou a Starlink de Elon Musk com sanções se não interrompesse o serviço de Internet por satélite. Segundo o Diario Rombe, o comunicado oficial foi publicado na terça-feira no site oficial do Governo equato-guineense. O regime quis impedir os habitantes de Ano Bom de comunicar a sua desdita para o exterior.
A 24 de Julho, o activista equato-guineense Guillermo Akapo Bisoko escrevia no Diario Red que «a violência e a opressão por parte do regime apoderaram-se da ilha, deixando os seus habitantes num estado de constante medo e angústia». O Governo equato-guineense não está disposto a ceder um centímetro a quem ousa desafiar o seu poder absoluto. Nos últimos tempos «as autoridades intensificaram as suas medidas repressivas, silenciando qualquer voz dissidente e violando os direitos humanos de maneira flagrante».
«Tem havido detenções maciças de cidadãos da ilha de Ano Bom desde o final de Julho até esta data», disse na quarta-feira a investigadora Ana Lúcia Sá, no podcast do Público Na Terra dos Cacos. Num país onde não há «protestos maciçs contra o regime», houve manifestações na rua para contestar «as práticas de detonação ilegal que estão a destruir a fauna e a flora» da ilha e que «podem causar derrocadas e colocar em perigo a vida da população».
Na lista de atentados ao bem-estar e ao ambiente dos ano-bonenses em troca de milhões para o Estado central, que inclui o seu uso para aterro de lixo nuclear nos anos 1980, a ameaça vem agora dos explosivos da empresa marroquina Somagec, há muito a parceira favorita do Presidente equato-guineense, que construiu um porto e um aeroporto na pequena ilha.
Como escreve a Ambô Legadu, a agência de notícias da república independente de Ano Bom, «a alma de Ano Bom reside no seu relevo montanhoso, um traço distintivo que define a sua geografia e molda a sua paisagem». Para os ano-bonenses, a Somagec está a usar explosivos para extrair desse relevo montanhoso minerais de “forma clandestina”, o que levou aos protestos dos ilhéus, explica Orlando Cartagena Lagar.
«A Guiné Equatorial, junto com Marrocos, quer-se dizer, os dirigentes dos dois países são os donos da empresa Somagec que opera em Ano Bom desde cerca de 2005 até hoje», diz Cartagena Lagar. «Estão a extrair minerais de forma clandestina para cobrir as dívidas contraídas pela Guiné Equatorial em matéria de segurança. Desde 1979 que o Governo da Guiné Equatorial está custodiado por milhares de soldados marroquinos, o que aparentemente gerou uma dívida de milhões e, para cobri-la, o Governo entregou a ilha à Somagec.»
Escreve a Ambô Legadu: «A onda de sequestros nocturnos de cidadãos ano-bonenses pelo regime da Guiné Equatorial continua a ocorrer perante a impavidez da comunidade internacional, violando todas as normas e garantias constitucionais.» Onde está a União Africana? Onde está a Comunidade dos Estados da África Central? Onde está a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), onde se fala realmente português (o fá d’Ambô, o crioulo com base no português), ao contrário do resto da Guiné Equatorial?
O primeiro-ministro ano-bonense diz que o seu governo escreveu à CPLP a pedir ajuda há duas semanas e ainda não obteve resposta. Zacarias da Costa, o secretário executivo da organização, disse ao Público que tem estado de férias e só regressa ao trabalho na próxima segunda-feira, não tendo por isso informação sobre o assunto. Mas lembra que «a CPLP, como organização intergovernamental, não interfere, como mandam os seus princípios, em assuntos internos de cada um dos países».
«Em relação à violação dos direitos humanos, repressão, situações que acontecem, como agora na Guiné-Bissau, nós preferimos o diálogo com as autoridades nacionais e reforçar os mecanismos nacionais existentes para lidar com esses problemas. Nós não interferimos directamente no dia-a-dia e, sobretudo, na condução da governação do país», acrescentou.
Estrella Alfaro Aracil, de 50 anos, foi levada de casa às 4h de terça-feira e fez aumentar para quase 40 o número de detenções arbitrárias, noticia a Ambô Legadu, que deu conta da primeira morte devida à repressão esta quarta-feira. O coração de Anatolia Mum Majeda não resistiu às notícias, dando conta da condição de detenção dos seus dois filhos (Diosdado e Bienvenido Ballovera Mum), Na prisão, a tortura e os longos interrogatórios são o “tratamento” habitual para os que ousam desafiar o poder dos Obiang. E os ano-bonenses estão agora a senti-lo.
N. E.: Ler também "Guiné Equatorial cumpriu dez anos de “embaraço” na CPLP" (14/08/2024).
Cf. Seixas da Costa diz que CPLP não funciona e que Brasil não se empenha na organização
Peça publicada no jornal Público no dia 9 de agosto de 2024. Segue o Acordo Ortográfico de 1945.