Após 21 anos de ausência, viajei até à Guiné-Bissau, país onde vivi durante cinco anos (1993-98), a desempenhar o papel de leitora de Português, sob a alçada do Instituto Camões.
Ao sair do avião, abraçou-me o calor da terra africana, o aroma inconfundível da Natureza pujante, o vozerio do povo, alegre, vivaz, e senti que estava em casa, como se a ausência de duas décadas se resumisse ao ontem. O crioulo, ou melhor dizendo, o guineense, apoderou-se da minha fala e passou a ser a minha língua (durante os cinco anos em que vivi na Guiné, aprendi a língua, com prazer redobrado, para melhor conhecer o povo e para melhor ensinar o Português).
Se uma língua é veículo de cultura, também o é de o carácter de um povo, da sua idiossincrasia. O povo guineense é um povo generoso, alegre, dócil, paciente e afectuoso, traços que transparecem na língua, cuja fonética se aproxima do linguajar infantil, pois que as vogais abertas predominam, principalmente o /i/: misti «querer»; djuvi «ver»; mansi «amanhecer»; kumi «comer»; bibi «beber»; gardici «agradecer»; tchubi «chover»; nhinhi «rir», e assim… Deste modo, a própria língua se reveste de uma tónica carinhosa e nos abraça como os seus falantes nos abraçam, fazendo-nos sentir pertença, família.
Por outro lado, a língua guineense é em si mesma poesia, pois que se alicerça em metáforas naturais, que nos aquecem de ternura. A título de exemplos: cogumelo é Kasa di padja («casa de palha» – padja é todo o tipo de erva) ou guarda-tchuba di sapu; «depois de amanhã» é ermon de amanhã («irmão de amanhã»); os sinais da pele são tinta de Deus; os limões pequenos são fidju de limon (filhos de limão); os velhos ou velhas são omi garandi ou mindjer garandi ( «grandes), não pelo seu tamanho, mas pela sabedoria que encerram. Por isso são respeitados e tratados com muito carinho e muita paciência. Pessoa má é korson susu «coração sujo»; tornozelo é udju di pé «olho do pé»; homenzarrão é santa maria d’omi.
O léxico é resultado de uma poética deliciosa, a alma do ser humano (pekadur) da Guiné-Bissau. País, gente, que me acolheu e acolhe com um carinho, uma bonomia, uma alegria e generosidade que não encontro em mais lugar algum. Inclusive no país onde nasci. Afinal, o meu país é onde me sinto em casa, em família. Por isso, a Guiné-Bissau é nha pubis, nha tchon «meu povo, meu chão».
N. E. – Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.