«(...) Hoje é frequente, na Faculdade, alunos dirigirem-se a mim usando você. Confesso que sinto um calafrio, que não denuncio, e procuro explicar a forma que me parece mais adequada de usar as formas de tratamento em português europeu (...).»
A 20 de outubro, ouvi em fundo que Jorge Jesus, treinador do Sport Lisboa e Benfica, teria sido repreendido enquanto prestava declarações no julgamento do caso Football Leaks. Sem ser seguidora de futebol e nem ter grande paciência para as suas personagens, fiquei curiosa em saber a causa da repreensão. Pasme-se! Jorge Jesus dirigiu-se à procuradora usando o pronome você, em vez de usar o título «senhora procuradora». Quando li isto, não pude deixar de sorrir.
Sou filha de emigrantes, nasci na Venezuela e cresci rodeada de falantes de diferentes línguas e variedades do português. Tive como primeira língua de escolarização o espanhol. Vim viver para Portugal com 10 anos de idade. À época, na minha cabeça havia duas formas de me dirigir às pessoas: tu para a minha mãe e as pessoas mais chegadas e você para o meu pai e as pessoas mais velhas. Na minha cabeça estes eram os equivalentes do tú e do usted do espanhol. Mas, para meu azar, em português não era assim tão simples e, de cada vez que ousava dirigir-me, por exemplo, a uma professora usando você, invariavelmente ouvia por resposta «Você é estrebaria!». Durante anos, tentei a duras penas descodificar o significado desta expressão. Que me lembre, ninguém me explicou como devia dirigir-me adequadamente às pessoas a quem devia deferência.
Penso que foi já bem crescidinha que percebi finalmente que, na dúvida, o menos arriscado é usar um título (e.g. «o senhor / a senhora dona / o sr. dr. / o professor / o senhor agente, a senhora procuradora») e o verbo na terceira pessoa. Lembro-me de ter cometido muitos deslizes e passado outras tantas vergonhas, mas sempre atribuí esta falta de jeito à minha história de vida.
Hoje é frequente, na Faculdade, alunos dirigirem-se a mim usando você. Confesso que sinto um calafrio, que não denuncio, e procuro explicar a forma que me parece mais adequada de usar as formas de tratamento em português europeu, até porque defendo que cabe à escola veicular o padrão social adequado de uso da língua, i.e., a norma. Não lhes respondo «você é estrebaria», pois imagino que, como eu, muitos não perceberiam o idiotismo. Olham-me com perplexidade quando começo a referir as tantas variáveis em questão na escolha da forma de tratamento adequada; alguns procuram ajustar o seu comportamento linguístico; outros, logo no instante seguinte, voltam a dirigir-se-me usando você.
Há vários subsistemas de formas de tratamento em confronto na sociedade portuguesa atual. No diálogo entre Jorge Jesus e a procuradora assistimos ao confronto entre um, claramente inadequado à situação (apesar de todo o sucesso profissional e fama do treinador), e outro, conservador, de quem domina o código certo e detém o poder. A instabilidade no uso de formas de tratamento acontece porque a sociedade portuguesa mudou muito e rapidamente nos últimos anos. A democratização política traduziu-se na construção de uma sociedade menos estratificada, de relações interpessoais menos rígidas. A norma linguística (que é o registo do poder) resiste e adapta-se a custo à mudança. Mas inevitavelmente tal acabará por acontecer e você (quem sabe?) deixará um dia de ser estrebaria.
Artigo da linguista Margarita Correia publicado originalmente no dia 7 de novembro de 2020 no Diário de Notícias.