« [...] O isso preserva o mistério. Claro que sabemos o que é isso. Só que não é preciso falar nisso. [...]»
Não conseguimos viver sem isso. Isso é indiscutível.
De todas as saudações que conheço, a mais portuguesa tem sempre um isso. «Como é que vai isso?» é sempre mais rico e mais espesso do que apenas «Como é que vai?»
«Como é que vai?», sem isso, refere-se à pessoa inquirida e nada mais. Mas «como é que vai isso?» estende o campo de inquérito a toda a existência. Isso tanto pode ser essa velha carcaça, como essa vida tão atribulada, como uma coisa qualquer na qual não se pode – ou não convém – falar.
O isso preserva o mistério. Claro que sabemos o que é isso. Só que não é preciso falar nisso.
As saudações são quase sempre perguntas falsas ou insinceras. Pergunto «passou bem?» ou «como tem passado?» ou «está bom?» mas ai do chato que se atrever a responder. Antes de começar o desfile de pormenores, já o outro está a dobrar a esquina.
O isso faz o favor de invocar aquilo que nos é comum – o fardo da vida, o ter de acordar, a implacável necessidade de nos deslocarmos, a toda a hora, de um lado para outro – e isso é generoso, é colegial, insere-nos numa comunidade eterna de esforços inglórios e comezinhas recompensas.
Para mim, a versão mais portuguesa vai além da interrogativa e introduz corajosamente – solidariamente! – a negativa.
A forma perfeita é: «Isso vai ou não vai?»
Pega-se assim de caras a elevadíssima probabilidade de estar tudo a correr mal, mais a nota de humor cínico que fica sempre bem.
Até se pode responder «Isso agora...» porque, por trás do fingimento de recato, rosna obrigatoriamente a raposa da desconfiança. Que é como quem diz «ao que tu andas, sei eu...»
Só em Portugal é que «sabes muito...» é um insulto. «Lá isso...»
Isto pode muito bem ter remédio. Mas o isso é que não tem. Ao menos isso, não é?
Crónica do autor, in jornal Público do dia 29 de janeiro de 2022, escrita segundo a norma ortográfica de 1945.