«[...] Ambas as construções – "Tenho escrito" e "Tenho escritos" – podem estar corretas, desde que usadas em seus respectivos contextos.»
O comportamento do particípio é muito interessante.
Essa forma, que se relaciona intimamente com o adjetivo (impresso, dito, feito, falado, estudado, apercebido…), tem muitos usos em nosso idioma, e alguns deles são, julgo eu, excêntricos.
Tão somente para elucidar, o particípio pode carregar uma noção de circunstância, quando então equivale a uma oração adverbial reduzida: «Terminada a prova, fui embora» – isto é, «Quando terminei a prova, fui embora», ou «Depois que terminei a prova, fui embora».
De todo modo, o emprego de que desejo tratar hoje é outro.
Pense bem nas duas construções abaixo:
1. «Tenho escrito muitos artigos.»
2. «Tenho escritos muitos artigos.»
São válidas ambas as frases? Há alguma inadequação acima? Antes que você se apresse a responder, vamos entender o que se afirma.
Primeiramente, quando dizemos «Tenho escrito muitos artigos», temos aí uma legítima locução verbal, que corresponde ao tempo composto do pretérito perfeito do indicativo.
Noutras palavras, «Tenho escrito» é algo como «Ando escrevendo», o que sugere uma ação que se iniciou no passado e se prolonga até o presente momento. Está inacabada e perdura.
Nesse caso, não há concordância do particípio com o objeto que se lhe segue:
«Tenho escrito muitas cartas aos familiares distantes»;
«Tenho feito muitos exercícios nestes dias»;
«Tenho falado disso constantemente, mas ninguém me ouve»;
«Tenho imprimido muitas folhas, então preciso comprar mais tinta».
Também é importante notar que, nessas construções de voz ativa, para os verbos abundantes de particípio empregamos (em regra) o regular: «Tenho imprimido, elegido, pegado, expulsado…».
Até aqui, tudo bem, não? Mas e quanto àquela segunda construção – «Tenho escritos muitos artigos»?
Se a intenção do autor é simplesmente dizer o que se disse na primeira construção, então está inadequada. Já não se faz a concordância do particípio de uma locução com o objeto.
Nada obstante, há casos em que podemos dizer «Tenho escritos» com toda a legitimidade que nos confere a língua portuguesa.
Isso ocorre quando o verbo ter deixa de ser auxiliar e assume, sozinho, seu sentido de posse. Ao mesmo tempo, o particípio agora chega ainda mais próximo da fronteira do adjetivo, e podemos vislumbrar-lhe ambas as naturezas.
Assim, dizer «Tenho escritos muitos artigos» é simplesmente o mesmo que afirmar «Tenho muitos artigos escritos» – e fica fácil notar a essência adjetiva dessa forma nominal. Houve nada mais que um deslocamento do termo. O que se está dizendo é apenas que «Já tenho muitos artigos escritos», «muitos artigos que escrevi».
Diferentemente daquele primeiro caso, agora o particípio (ou adjetivo, como quiser) concorda normalmente com o objeto, pois refere-se a este. Ademais, caso se trate de verbo abundante, empregaremos então o particípio irregular:
«Tenho escritos muitos artigos» (Tenho muitos artigos escritos);
«Tenho lidas muitas obras em minha biblioteca» (Tenho muitas obras lidas);
«Já tenho impressas quinhentas páginas desse livro» (Tenho quinhentas páginas impressas);
«Já temos preparada a sobremesa» (Já temos a sobremesa preparada).
Em suma, ambas as construções – «Tenho escrito» e «Tenho escritos» – podem estar corretas, desde que usadas em seus respectivos contextos.
Para concluir, uma curiosidade: no português arcaico, admitia-se a concordância do particípio no primeiro caso (tempo composto do pretérito perfeito), o que já não ocorre. É por isso que, em Camões, podemos encontrar construções como «Já tinha vindo Anrique da conquista / Da cidade Hierosólima sagrada, / E do Jordão a areia tinha vista» (a areia tinha visto).
Texto publicado originalmente no Facebook Língua e Tradição no dia 5 de setembro de 2021.