«O "sobreísmo" é uma tendência atual (bem atual) que os brasileiros vêm produzindo em sua fala e em sua escrita, pondo a preposição sobre no início de complementos tradicionalmente não antecedidos por ela.»
Atualmente está havendo uma verdadeira epidemia da preposição sobre junto a verbos que não a exigem — mas ela não está nem aí; vem tomando os espaços, feliz e contente. Modismo ou veio para ficar?
.....................
Antes de falar sobre isso, pergunto a você:
– Já ouviu falar em queísmo e dequeísmo?
Se não, explico:
Queísmo: diz respeito (1) ao excesso de uso do vocábulo que num texto ou (2) à omissão duma preposição que, segundo a norma-padrão, deveria vir antes do pronome relativo ou da conjunção integrante. Exemplos:
(1) A mulher que comprou o carro que era daquele senhor é a mesma senhora atrevida que outro dia me disse: «Ei, que que é que você está falando aí?».
Esta frase poderia ter menos "quês", não?
(2) Não o informaram que sairia hoje a nota do trabalho que o professor fez referência anteontem?
Com as preposições, ficaria assim: «Não o informaram de que sairia hoje a nota do trabalho a que o professor fez referência anteontem?».
Dequeísmo: diz respeito ao emprego não exigido da preposição de antes da conjunção integrante que. Exemplos:
– Achamos de que ela não voltará mais.
– O professor não me disse de que a prova seria difícil.
Note que os verbos achar e dizer não exigem a preposição de, mas ainda assim as pessoas têm empregado tal preposição em contextos em que ela não é exigida.
Detalhe: esses dois fenômenos existem em todo o mundo lusófono; entretanto, cabe uma ressalva: ambos os fenômenos (exceto o caso de queísmo com a conjunção integrante) não fazem parte da norma-padrão, e sim da norma popular.
.....................
Agora que expliquei os conceitos de queísmo e dequeísmo o que seria o tal "sobreísmo"?
Bem... o "sobreísmo" é uma tendência atual (bem atual) que os brasileiros vêm produzindo em sua fala e em sua escrita, pondo a preposição sobre no início de complementos tradicionalmente não antecedidos por ela.
Vamos entender melhor?
Existem verbos no português que exprimem o ato de dizer (ou de tratar de determinado assunto), como: falar, conversar, dialogar, discutir, debater, dissertar, explicar, tratar, etc.
Cada um desses verbos tem a sua regência, isto é, a forma como eles se relacionam com os seus complementos – que podem ser iniciados pela preposição sobre, segundo a norma-padrão. Veja:
– João falou do/sobre o assunto.
– João não tratou do/sobre o assunto.
– João conversou sobre o assunto.
– João vem dialogando sobre o assunto.
– João tem discutido sobre o assunto.
– João só debate sobre aquele assunto.
– João dissertou sobre o assunto.
Todavia, esse sentido da preposição sobre indicando assunto/referência tem estendido seus tentáculos, atingindo verbos que tradicionalmente não exigem tal preposição. Veja alguns exemplos:
– Maria, você pode me explicar o assunto? (regência padrão) / Maria, você pode me explicar sobre o assunto? (regência com sobreísmo)
– A filosofia consiste de princípios bem fundamentados. (regência padrão) / A filosofia consiste sobre princípios bem fundamentados. (regência com sobreísmo)
– O analista comentou as dificuldades econômicas atuais. (regência padrão) / O analista comentou sobre as dificuldades econômicas atuais. (regência com sobreísmo)
– Devemos estudar esse tema ainda hoje. (regência padrão) / Devemos estudar sobre esse tema ainda hoje. (regência com sobreísmo)
– Ontem aprendi análise sintática. (regência padrão) / Ontem aprendi sobre análise sintática. (regência com sobreísmo)
– Queria entender esse caso. (regência padrão) / Queria entender sobre esse caso. (regência com sobreísmo)
Será que o "sobreísmo" não passa de modismo, de algo passageiro, ou realmente veio para ficar em todos os níveis de registro linguístico, alterando as regências tradicionais – desde o menos letrado até o mais letrado, desde a fala popular até a escrita culta? E mais: por que isso vem ocorrendo? Só o tempo dirá...
Que surjam as hipóteses e as pesquisas!
* Até que se prove o contrário, este neologismo acaba de ser inventado por mim – não minto. Que se registre nos autos e se dê o crédito!
Texto da autoria do gramático brasileiro Fernando Pestan publicado no mural do autor no Facebook e aqui transcrito com a devida vénia.