« (...) O preço a pagar [pela] internacionalização do português só poderia ser a progressiva secundarização do léxico patrimonial, já de si diminutamente estandardizado e com graves deficiências lexicográficas. (...)»
O estudo histórico do nosso idioma apresenta tradicionalmente duas falhas notórias: dá-se diminuta atenção ao léxico e é fraca também a percepção da continuidade dos materiais.
Estudam-se intensivamente, e bem, a fonologia, a morfologia e alguma sintaxe, mas uma História do Léxico português não foi, até hoje, além de exames pontuais. Citem-se dois estudos centrados no panorama oitocentista: o de Mário Vilela (1980) e o de Telmo Verdelho (1981). Sublinhem-se, igualmente, o labor lexicológico de Telmo Verdelho e João Paulo Silvestre (2007), a edição de ambos da Ortografia de Madureira Feijó (2008), assim como diversos estudos de Maria Filomena Gonçalves (2005, 2007). De algum exame histórico material ocuparam-se o alemão Joseph M. Piel e o austríaco Dieter Messner, assim como os autores da História da Língua Portuguesa em seis pequenos volumes da Editora Ática, São Paulo, aparecidos em 1987 e 1988. Rotineiramente, os historiadores do idioma copiam e recopiam dados avulsos que não verificaram. Em suma: o estudo sistemático do nosso acervo histórico vocabular continua largamente por fazer.
Entretanto, mesmo os domínios gramaticais acima referidos são habitualmente examinados sob a perspectiva da ‘mudança’, quase nunca sob a da ‘continuidade’. Nos melhores casos, atenta-se também na ‘variação’, ou na ‘elaboração’ e ‘estandardização’ do idioma. Eloquente é, neste particular, Clarinda Maia, quando evoca «o estudo da História da Língua Portuguesa, cujo objectivo é a descrição e a explicação da mudança sofrida pela nossa língua», ou ainda quando refere «a natureza da mudança linguística, questão que constitui o centro de toda a investigação histórico-linguística» (1995:37, destaques meus).
Concedido: os traços fonológicos e morfológicos, naturalmente movediços, permitem contar melhor a História. Mas verdade é, também, que o exame dos materiais, por mais estáveis, geraria efeitos de profundidade e poria em evidência as continuidades e permanências que dão coesão e sentido aos demais processos.
Ao inscrever-se numa ainda só almejada História do Léxico Português, o presente estudo assume o seu carácter pioneiro, com os riscos inerentes. Agradecem-se pois, desde já, toda a informação adicional e a correcção de eventuais lapsos.
Observações metodológicas
1. Entende-se aqui por léxico patrimonial o fundo vocabular hereditário, isto é, o conjunto de materiais vocabulares exclusivos do idioma. Trata-se quer de criações autóctones, mormente obtidas por derivação de vocábulos patrimoniais ou não, quer de latinismos chegados por via popular. Não são, pois, tidos aqui em conta os cultismos e semicultismos de origem latina, mesmo quando de remota data, como arguto (<argutu-), infindo (<infinitu-) ou serôdio (<serotinu-).
2. Procedeu-se à identificação tendencialmente exaustiva do léxico patrimonial adjectival até 1600, recolhendo quer os materiais que perduraram quer os que não sobreviveram. Reconheça-se, de passagem, alguma tautologia nisso. Com efeito, foi a maior ou menor relevância de determinado léxico numa época tornada ‘clássica’ e ‘exemplar’ o que condicionou a sobrevivência dele. Nesse conjunto histórico, distinguimos os adjectivos que fazem parte do actual léxico normativo galego (sendo referência o Dicionario da Real Academia Galega ou o Dicionario Xerais) e os que hoje só constam do português (sendo referência o Dicionário Eletrônico Houaiss). Importa-nos, em ambos os casos, o vocabulário efectivamente corrente, estando matérias dialectológicas fora do escopo deste estudo. Insista-se no carácter ‘normativo’ do léxico galego de referência, que não inclui certos vocábulos de razoável circulação, como amaldizoado / maldizoado ou doudo / doido.
3. A informação lexical galega é fundamental: ela actua como ‘máquina do tempo’, evidenciando maior antiguidade em vocábulos de tardia documentação portuguesa. Sejam exemplo disto idoso, rabugento e tolo, encontráveis em Gil Vicente, ou acanhado, corriqueiro e destemido, testemunhados no teatro (1547-1555) de Jorge Ferreira de Vasconcelos. Por isso, quando aqui se utilizarem os termos ‘autóctone’, ‘vernáculo’ ou ‘hereditário’, será como sinónimos de ‘patrimonial’, sendo igualmente aplicáveis ao galego naquilo em que ele e o português coincidem. Vinque-se, porém, que a perspectiva aqui adoptada será sempre a portuguesa. Assim, não terão, neste contexto, nenhum papel os materiais galegos exclusivos. Por outro lado, uma ‘máquina do tempo’ portuguesa também funciona para o léxico galego. Como lembra Sánchez Rei (2005:618), «moitos dos fenómenos proscritos polos autores portugueses continuaron a vigorar en Galiza e mesmo algúns deles son, na actualidade, habituais inclusive na variedade padrón». É um facto particularmente visível nas Ortografias dos doutrinários de Setecentos, sobretudo Madureira Feijó e Luís do Monte Carmelo. Algumas das suas ‘recusas’ são outras tantas datações galegas. Pode, mesmo, conceber-se que um léxico que hoje só perdura em Portugal tenha sido um dia compartilhado com a Galiza, sem que disso reste documentação. Como o exprime Dubert- García (2017:52), «Nos textos escritos medievais […] ó mellor faltan formas galegas populares que non chegaron a ser nunca recollidas nos textos escritos, ou só foron recollidas de forma anecdótica, por estaren socialmente estigmatizadas». O mesmo sucedeu, de resto, em Portugal, onde, como acima referido, materiais vernáculos comuns a português e galego, e de indesmentível fabrico medieval, só aparecerão documentados no teatro quinhentista.
4. A abundância do vocabulário ainda hoje comum ao galego e ao português correntes é, em si mesma, notável, após quase 900 anos de separação política. Uma primeira explicação: muito desse acervo é original galego, chegado na vasta herança linguística de que o Reino de Portugal foi beneficiário. Outros materiais, porém, terão sido objecto de uma transfusão, através dos séculos, entre os léxicos já autónomos galego e português. Dois cenários eventualmente cumulativos se desenham aqui: o de um intercâmbio fronteiriço e o de um intercâmbio migratório. Justificam o cenário fronteiriço os múltiplos contactos, até cerca de 1400, entre os dois territórios, estimulados tanto por uma organização eclesiástica que ignorava a fronteira política como pelos íntimos relacionamentos da nobreza a norte e sul do Minho. E era a classe nobre medieval quem, mais que as cortes reais, fazia do idioma um projecto político. Como escreve Miranda (2012): «A instituição do galego-português como língua do poder de grandes grupos senhoriais em fase de afirmação própria acabou por se tornar uma convenção plenamente assumida e compreendida ao longo de todo o século XIII, se não mesmo para além dos limites deste século» (destaque meu). Entretanto, e durante séculos, a situação linguística na Galiza mantinha-se estável. «Cando se aproxima o comezo do século XV, pódese afirmar que Galicia é monolingüe en galego, excluído tan só algún membro da alta xerarquía eclesiástica procedente de fóra do país» (López Carreira 2016). Por seu lado, um secular intercâmbio linguístico de tipo migratório é (embora falhem dados verificáveis) objectivamente admissível, dada a permanência em Portugal, sobretudo a partir do século XVIII, em ocupações remuneradas, de dezenas de milhares de galegos, que introduziriam no país de acolhimento elementos dum léxico até então só galego, e que, regressados, comunicariam à cidadania galega materiais duma fala que se conservava só portuguesa.
5. A escolha do Quinhentismo para objecto de exame conduz, naturalmente, a estabelecer 1600 como termo ad quem. Este corte cronológico não é, deve dizer-se, inteiramente arbitrário. Por essa altura, estão finalmente impressos Gil Vicente, Sá de Miranda, Camões, António Ferreira, Lucena, assim como o essencial de Luís Fróis, quinhentista a vários títulos central para a história do nosso léxico. Também nesse ano está redigida, sabemos, a Origem da língua portuguesa (1606) de Duarte Nunes de Leão.
6. Examinaremos com especial detenção o comportamento de Luís de Camões na área do léxico patrimonial, revelador de escasso empenho nele. Importa, contudo, e desde já, não projectar sobre os autores quinhentistas uma informação lexical que, na realidade, é só nossa. Com efeito, nem todo o léxico hereditário, longe disso, se achava disponível na enciclopédica do escrevente de Quinhentos. Dito doutro modo: uma era a factual memória lexical no período em apreço, outra é a memória cumulativa hoje identificável. Advirta-se, para mais, que o único instrumento lexicográfico português acessível no século, o Dictionarium latinolusitanicum & vice versa lusitanicolatinum, de Jerónimo Cardoso (1569-70), além de estruturalmente dependente do castelhano Nebrija, é lexicalmente pobre, não incluindo um vasto vocabulário patrimonial com documentação anterior a 1500. Citem-se, entre outras ausências, os adjectivos afeiçoado, brejeiro, caridoso, cheiroso, comezinho, desafeito, devasso, doentio, esfaimado, ferrugento, jeitoso, macio, medonho, nevoento, palavroso, possante, saudoso/soidoso, sobranceiro. Seja lembrado, também, que o acesso a obras literárias anteriores à imprensa era então limitadíssimo, sendo a própria existência de bastantes delas simplesmente desconhecida. Com tudo isto, a abissal diferença do desempenho lexical vernáculo de Camões face ao de contemporâneos, com destaque para os citados dramaturgos Gil Vicente e Ferreira de Vasconcelos, é patente, e dificilmente explicável em termos de ‘disponibilidade’.
7. Evite-se, ainda assim, um erro epistemológico, que consistiria em supor que o escrevente comum português estava ciente do cariz patrimonial, isto é, da exclusividade autóctone de dado vocabulário seu conhecido. Em nenhuma época isto vale, e menos ainda numa altura, como é o século XVI, em que esse tipo de informação era precário, quando sequer o houvesse. Ilustram-no o uso de um pseudo-castelhano, ou ‘lusismos’ indevidos, imiscuindo-se em textos de autores portugueses no idioma vizinho.
8. Uma advertência, também, para duas distorções estatísticas. Privilegiando o sector do adjectivo, postula-se a sua suficiente representatividade para o conjunto do léxico. Os resultados da observação de dois outros sectores, o dos verbos e o dos deverbais regressivos, ao descreverem cenários largamente sobreponíveis ao adjectival, vêm atenuar apreciavelmente um efeito distorcivo. Também a fixação na primeira ocorrência documental dos vocábulos, na sua ‘estreia’, pode perturbar uma justa visão dos dados. Mas atente- se, desde já, no sobreaviso de Benozzo (2007:17) sobre um «respecto fetichístico» pela primeira documentação: mais do que uma certidão de nascimento dum fenómeno, ela fornece a prova da sua circulação. A verdade é que só uma conjugação dessas datações com os factuais índices de frequência faria inteira justiça a autores de nítida índole vernácula, mas pouco inovativos em matéria lexical, como Bernardim Ribeiro ou Fernão Mendes Pinto. O presente exercício é, no fundo, um descoroçoante exame de verbetes. Ainda assim, os contrastes de presenças e ausências adiante avançados redundam em informação estatisticamente relevante.
Adjectivos patrimoniais anteriores a 1500
Até 1500, foram documentados 61 adjectivos ainda hoje correntes em galego e em português, e seus exclusivos. São eles:
abelhudo, afastado, afeiçoado, afoito/afouto, aleijado, amargurado, arrepiado, aturado, calaceiro, caridoso, cheiroso, corredio, derreado, desafeito, despido, desprezível, doentio, dorminhoco, emproado, encapelado, enojado, enrouquecido, esbaforido, esbulhado, escorregadiço/escorregadio, escumoso, espalhado, esquecido, estarrecido, fechado, fedorento, ferrugento, friorento, gabador, gaiteiro, jeitoso, lamoso, lixoso, louvaminheiro, macio, maninho, medonho, mexiriqueiro, mindinho, mirrado, morno, murcho, palavroso, peçonhento, pejado, pequeninho, podre, revoltado, salgado, sandeu, saudoso, soalheiro, sobranceiro, varado, vezeiro, vindoiro/vindouro
Do mesmo período datam os seguintes 54 adjectivos, considerados exclusivos do português:
abalado, açodado, alcandorado, amaldiçoado, apodrentado, apressado, aquecido, arrumado, arteiroso, atoladiço, atordoado, azado, bicudo, bolorento, brejeiro, cabeludo, canhoto, carecido, comezinho, convinhável, costumeiro, degredado, desapossado, desprezível, devasso, doido/doudo, dorminhoco, engelhado, esfaimado, espalmado, estranhável, faceiro, franzido, fugidiço, invernoso, iroso, malcheiroso, milhento, nevoento, palreiro, peco, possante, poupado, prendado, prestes, remediado, rendoso, roaz, sáfaro, somenos, useiro, valedio, veloso, verdoengo
Por prurido metodológico, ficaram excluídos destas listagens aqueles adjectivos que posteriormente passaram ao castelhano, e portanto não se mantiveram ‘exclusivos’. Chamamos-lhes lusismos, sendo contudo provável que bastantes dos também galegos tenham sido adoptados na Meseta a partir dele, e sejam portanto galeguismos. Para uma pormenorizada exposição desta matéria (Venâncio 2017).
Dos documentados no nosso período e aceites também pela lexicografia galega, mencionem-se em castelhano cabelludo, desasosegado, despejado e friolento. Acrescentem-se embozado (de embuçado), enfadado e mimoso, de lexicografia só portuguesa. A ausência de mimoso nos recursos galegos de referência, não obstante a sua real frequência (o TILG cita 297 ocorrências em 140 textos diferentes), pode dever-se a ser encarado como castelhanismo a evitar.
Adjectivos patrimoniais documentados entre 1500 e 1600
Também o século de Quinhentos oferece abundante documentação de formas próprias. Como as anteriores, elas ocupam sobretudo áreas de tipo informal. Mas a formalidade encontra-se bem representada, com derivações tanto de materiais não exclusivos (como cansativo, enfadonho, interesseiro, opiniático, prestadio) como de bases já vernaculares (sejam exemplo destemido, de destemer, lampeiro, de lampo, enviesado, de enviesar, e este de viés).
Alistam-se primeiramente alguns autores importantes e distingue-se novamente entre 1. também galego e 2. só português.
Gil Vicente
1. afoitado/afoutado, idoso, rabugento, rente, sorrateiro, tolo 2. austinado, brigoso, desenfadadiço, marchetado, rouquenho
Sá de Miranda
1. tristonho
2. achacadiço, ajuizado
João de Barros
1. nojento, rixoso 2. desnecessário
Jorge Ferreira de Vasconcelos
1. acanhado, amuado, carrancudo, corriqueiro, delambido, destemido, enfadonho, esgrouviado, fragueiro, interesseiro, ninhego (‘retirado do ninho’)
2. aprimorado, arrebicado, assomado (‘raivoso’), birrento, cansativo, desamorável, desasado, desengraçado, deslustroso, desumano, engraçado, escarninho, esgalgado, fastiento, gorado, madraço (‘preguiçoso’), meiguiceiro, opiniático, praguento (‘maldizente’), prestadio, respeitador, sôfrego
António Ferreira
2. doudarrão, mal-assombrado
Luís Fróis
1. afervorado
2. figadal, penhorado (‘agradecido’), plaino (‘plano’), precatado
Restantes autores
1. abafadiço, achadiço, agourento/agoirento, alcoviteiro, alvacento, apavorado, avaliador, barrento, bicudo, carunchoso, conchegado, desleixado, esbugalhado, fanhoso, ferrenho, lampeiro, mouco, roufenho, sabichão
2. abençoado, acautelado, afrontoso, alcatifado, anafado, areento, arruado, assente, atabalhoado, azarento, bochechudo, bojudo, brigão, brônzeo, calmoso, cinzento, comichoso, definhado, deliciado, desafrontado, desinquieto, dobradiço, empanturrado, empoado, enfunado, entalado, entanguido (tolhido de frio), enviesado, esburacado, esconso, esgazeado, estourado, fujão, íngreme, lambareiro, patife, polpudo, vaganau (‘vagabundo’)
O caso de íngreme é peculiar. No entender de Corominas e de J. P. Machado, tratar-se-ia dum germanismo (de *ingrimjis ‘terrível’). Some-se a isto ser ele, sob a forma íngrimo, íngrima, um lusismo com circulação na América hispânica.
Lusismos adjectivais castelhanos deste período são calmoso, escotero (de escoteiro ‘ágil’), felpudo, pasmoso, e ainda criollo e mascabado, os únicos reconhecidos pelo DRAE.
Vários outros adjectivos com documentação no século XVI não lograram sobreviver nos usos do idioma. Citem-se abeborado (‘murcho’), açacalado (‘luzidio’), altiperno, boquicheio, desafiuzado, encrudado (‘cruel’), frascário/frasqueiro (‘libertino’), gamenho (‘vadio’), reboto (‘embotado’), sabichoso, sengo (‘sisudo’), sotrancão (‘dissimulado’), tamanino (‘pequenino’), tavanês (‘turbulento’), tençoeiro (‘mal-intencionado’), testudo, treçado (‘cruzado’).
Pela sua notória quantidade, destacam-se aqueles encontráveis em dois autores:
Jorge Ferreira de Vasconcelos
ataimado (‘matreiro’), bajoujo (‘enamorado, baboso’), casquicheio (presunçoso), desaventurável (‘desventurado’), enxarondo (‘insípido’), enxovedo (‘idiota’), inventativo, refolhado (‘dissimulado’), tredo (‘traiçoeiro’), vidrento (‘melindroso’)
António Ferreira
endoado (‘dolorido’), fugidiço, mansarrão (‘pachorrento’), palreiro, pechoso (‘obstinado, quezilento’) refolhado (‘dissimulador’), tençoeiro (‘mal-intencionado’)
Este cenário suscita algumas reflexões. Seria, com efeito, demonstrador de coerência que os críticos do bilinguismo luso-castelhano quinhentista – como Fernão de Oliveira ou António Ferreira – fossem, eles próprios, impulsionadores duma genuinidade portuguesa. Não é o caso, porém. Os dois sinceros patriotas revelam- se, na materialidade da escrita, simples cumpridores da normalidade estabelecida. Em contrapartida, alguns dos escritores mais sistematicamente castelhanizantes – como Gil Vicente e Ferreira de Vasconcelos – são, exactamente, os maiores difusores dum léxico autóctone.
Ferreira, tanto pelos escassos materiais perduráveis que estreou como pela nítida opção por outros já então arcaizantes, está longe de provar-se aquele ‘paladino do idioma’ que a posteridade erigiu, embalada nos desassombrados versos dos Poemas lusitanos («Floresça, fale, cante, oiça-se e viva / a portuguesa língua, e já onde for, / senhora vá de si, soberba e altiva!») e no empenho em exprimir- se só em português, contra os castelhanizantes que explicitamente confronta. O seu léxico poético é, ele próprio, repetitivo e predominantemente convencional. O mesmo vale para outro estrénuo defensor do idioma, o coevo gramático Fernão de Oliveira, cujos escritos históricos ou de estratégia militar não brilham pelo cultivo, menos ainda pela criatividade, vocabulares.
A obra do bilinguista Jorge Ferreira de Vasconcelos apresenta-se como a denúncia perfeita desse projecto estreitamente nacionalizante. Na esteira de Gil Vicente, abundam nessa obra tanto um extenso léxico autóctone, que aí entra de rompão na escrita portuguesa, como um número apreciável de novos castelhanismos. Tudo indica que tanto a inovação vernacular como a inovação por empréstimo se articulam num mesmo investimento expressional. É um cenário histórico consistente, que vai repetir-se em Fialho de Almeida e Aquilino Ribeiro (Venâncio 20141), em José Saramago (Venâncio 20142) e provavelmente também em António Vieira. Excepção notável é, de facto, Luís de Camões, cujo papel estudaremos agora em pormenor. Nesta pesquisa, foi de insuperável valia a Concordância da Obra Toda, de Telmo Verdelho (2012).
Camões e o léxico patrimonial
Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões, contêm 735 adjectivos diferentes. É um número absoluto, que só ganharia verdadeiro significado num confronto com obras coevas comparáveis. Mas a impressão é a de uma assinalável variedade.
Essa impressão ganha consistência num paralelo, parcial embora, com outra epopeia quinhentista, de dimensões semelhantes, O Naufrágio de Sepúlveda (1594), de Jerónimo Corte-Real. Em ambas se contabilizaram e compararam 14 adjectivos de grande frequência, com os resultados abaixo mencionados. A primeira quantidade pertence aos Lusíadas, a segunda a Sepúlveda.
Um primeiro grupo de 6 adjectivos muito frequentes apresenta contagens globalmente cotejáveis: fermoso 49 – 64; ardente 39 – 26; famoso 36 – 29; poderoso 14 – 17; valeroso 14 – 14; furioso 12 – 20.
Mas 8 outros adjectivos muito frequentes em Sepúlveda têm nos Lusíadas representação comparativamente ínfima: grosso 4 – 41; espantoso 1 – 40, confuso 6 – 30; rigoroso 3 – 22; funesto 0 – 19; horrível 0 – 16; esforçado 3 – 14; fragoso 1 – 12.
Não podem, obviamente, comparar-se o valor absoluto dos adjectivos nos Lusíadas e estes cômputos de cariz relativo. Mas um e outros parecem sugerir a particular variedade da adjectivação camoniana. Isto tem directa relevância na presente exposição, ao vincar o modesto contributo do grande Épico para o léxico hereditário.
Examinemos, primeiramente, os adjectivos patrimoniais usados por Camões na epopeia, na lírica e no teatro. No primeiro grupo, sublinham-se as formas que figuram também num dos dois outros.
acautelado, afastado, afeiçoado, apressado, cheiroso, derradeiro, despido, doudo, enrouquecido, espalhado, esquecido, iroso, macio, medonho, marchetado, podre, possante, prestes, saudoso
Lírica
afouto, bonançoso, desasado, enfadonho, mavioso, peçonhento, tristonho
Teatro
abalado, fragueiro, madraço, morno, peco, praguento
Não pode, nem deve, atribuir-se decisivo significado a estas quantidades, já que, como lembrado acima, nenhum autor do período tinha conhecimento da totalidade, ou sequer da maioria, do léxico autóctone, quer o contemporâneo quer o precedente.
Facto é que, na área das estreias patrimoniais, tudo se resume a um único adjectivo: insofrido. Encontra-se ele nos Lusíadas, em «estas ondas insofridas» (V, 43), isto é, ‘ainda não navegadas’, sendo o significado actual ‘impaciente’. É um cenário improvável, num universo pessoal superior às sete centenas de adjectivações. O contraste com assinaláveis exploradores do léxico adjectival autóctone, como Gil Vicente e Ferreira de Vasconcelos, não poderia ser maior.
Pode objectar-se não ser legítimo comparar a hierática linguagem da poesia, e mormente da epopeia, com a genérica informalidade da expressão teatral, estimuladora de soluções vernáculas. Assim é. Mas não só Camões foi, ele também, autor de peças teatrais, onde houve recurso a materiais do património, como era o próprio léxico vernáculo a fornecer (vimo-lo acima) exemplos de patente formalidade, convidativos a novos enriquecimentos, decerto para um autor de tão comprovada versatilidade. Dito doutro modo: é a própria exuberância do léxico adjectival camoniano que evidencia o drástico desinvestimento no sector patrimonial.
Comportamentos camonianos no terreno do verbo vêm confirmar essa opção do autor, por inconsciente que ela tenha sido. Na obra total de Camões, encontramos 68 verbos vernaculares. Seja anotado que 25 deles não constam do Dicionário de Cardoso.
abalar , abranger , acenar , achar , afeiçoar , afoutar-se, agastar , alumiar, amortecer, apressar, aquentar, arremessar, arrenegar, arrepiar, assobiar, assobradar, atear, atirar, aviventar, borrifar, bradar, bugiar, cheirar, cingir, constranger, degredar, deitar, dependurar , desapossar , desimpedir , despir , devassar , duvidar , embirrar, empenar, empregar, emprestar, encher, endireitar, endoudecer, enjeitar, enrouquecer, enxergar, enxerir, esbombardear, esconjurar [? num mote], esfarrapar, espalhar, espancar, espraiar, espreitar, esquecer, fechar, ficar, lembrar, louvar, marchetar, murchar, namorar, nomear, olhar, pendurar, pentear, possuir, praguejar, salgar, sarar, sobejar.
É, em si, um número apreciável. Mas, de novo, as estreias patrimoniais são apenas duas: alinhavar e marejar. Acham-se na peça Filodemo (de 1555): «Romper mea dúzia de serviços / assim alinhavados às pandeiretas», «Senhora! Quanto há que nos olhos / lhe vi marejar esse amor».
Elucidativo é também o sector dos deverbais regressivos patrimoniais. Camões faz uso de 22 com documentação anterior: abalo, aceno, afago, afronta, apito, balanço, brado, cheiro, desarranjo, desgosto, escusa, estouro, fala, furo, ganho, lanço, mergulho, molho, pejo, perda, pingo, posse. Mas não estreia, ele próprio, nenhum, nisso contrastando, mais uma vez, com Ferreira de Vasconcelos, em cuja obra achamos abafo, assobio, borrifo, conchego, descante, enleio, pulo, refestelo, vasculho.
É nítido, pois o desinvestimento de Camões em matéria de léxico patrimonial. Duas minúsculas prospecções contribuirão, suplementarmente, para demonstrá-lo.
Observe-se, primeiro, o campo semântico patrimonial de ‘corajoso’. Nele existem, em Quinhentos, afoitado / afoutado, afoito / afouto, brigoso e destemido. Disto, a obra camoniana contém uma única ocorrência: a de afouto, na Lírica («que na Áurea Quersoneso afouta mora»). Em contrapartida, é abundante nele um léxico compartilhado com o castelhano. Especifica-se o número de ocorrências na obra toda: animoso 9, atrevido 6, bravo 36, denodado 3, esforçado 10, impetuoso 2, intrépido 2, ousado 19, temerário 7, valente 11, valeroso / valoroso 19.
Cenário em tudo semelhante é o descrito pelas famílias lexicais de ‘apartar’ e ‘afastar’. O Corpus do Português de Davies/Ferreira contém, para o conjunto do século XVI, 278 ocorrências de apartado, lexema coincidente com o castelhano, contra 113 do patrimonial afastado. A discrepância é particularmente severa em apartamento, com 79 ocorrências, e afastamento, com 2. Também no Dicionário de Jerónimo Cardoso a desproporção é imensa: apartamento 21 ‒ afastamento 1.
Na obra camoniana, o contraste é igualmente brutal: apartado 20 ‒ afastado 1; apartar 33 ‒ afastar 0; apartamento 14 ‒ afastamento 0. Algum, mas mínimo, contrapeso a estes números é dado por alongar como sinónimo de ‘afastar’ (de precedentes medievais nos dois idiomas), com 2 ocorrências do adjectivo alongado e 4 do verbo alongar.
Estamos perante uma inequívoca colagem ao castelhano. Ela continua patente nas 15 criações castelhanas (não ‘latinismos’) que Camões introduz em circulação portuguesa: alvoroçado, atinado, condoído (de condolido), desabrido, disfarçado (de disfrazado), desusado, diamantino, embravecido, enamorado, garço, matizado, polvoroso, pressuroso, sobre-humano, sublimado (‘célebre’). Superior é a quantidade de latinismos (contei 104) por ele estreados em escrita portuguesa, que já circulavam em castelhano, e faziam, portanto, parte da bagagem passiva do português culto da altura. Desses latinismos, um número apreciável vinha da leitura de Juan de Mena (m. 1456) e de Garcilaso de la Vega (m. 1536), autores de referência no Portugal de Quinhentos.
Seja sublinhado: mais de cem latinismos adjectivais, mesmo se já correntes em castelhano, é obra. Mas um contemporâneo, o jesuíta Luís Fróis (que escrevia no Oriente, mas publicava no Reino) adiantou-se a Camões na introdução de outros 80 adjectivos em iguais condições. Em 15 casos dos dois totais, é mesmo impossível decidir qual dos dois levou a palma. Enquanto não se esclarece a questão, conto-os como contributos camonianos.
Tudo isto significa que um Camões ‘enriquecedor do idioma’ é factual. Aos dados já explicitados, têm de ajuntar-se os latinismos que o português conservou em uso exclusivo (abominoso, celso, cógnito, frondente, fulvo, piscoso, rúbido e famulento, um pseudolatinismo) ou que só acharam na posteridade reduzido eco, quando acharam algum (crástino, equório, estelante, estelífero, inconcesso, módulo, quadrupedante, e outros), mais 16 estreias peninsulares latinas de que o castelhano veio a tirar rastreável proveito (altíssono, esquálido, estridente, flavo, hirsuto, horríssono, ignavo, imaturo, infando, lanígero, obsequente, ovante, pânico, rábido, sibilante, undívago).
O enriquecimento adjectival pela pena camoniana foi, repita-se, uma realidade. Mas tudo isso é, como contributo original português, uma ampliação curta, sendo também modesta a já exposta renovação patrimonial: o adjectivo insofrido e os verbos alinhavar e marejar. Não sabemos se esta carestia se mantém num domínio mais extenso, o do substantivo. Se for o caso, o ‘portuguesismo’ da intervenção lexical camoniana revela-se da ordem do mito.
Observações finais
Ivo Castro dedicou à ‘Língua de Camões’ um longo artigo, onde faz a caracterização do consabido «discurso camonista», que vê a «língua patrimonial» como algo que «se ofereceu como matéria-prima ao oficinar de Camões» e por ele transformada «em uma língua nova, boa para durar séculos» (2011/2017:199). É, reconhecemo-lo, a concepção mítica, eufórica, do papel de Camões na história do idioma.
Trata-se de um trabalho elucidativo e estimulante. Mas a informação histórica lexical, demasiadamente devedora a Manuel de Faria e Sousa e Joan Corominas, não permite senão resultados aproximativos. Hoje, vários e nutridos corpora, se criteriosamente manuseados, permitem, pelo cruzamento de dados, uma precisão que, há decénios, era impensável. No artigo de Ivo Castro, são exactas as atribuições de primazia latina a Mena e Garcilaso. Mas a persistente fama do Épico como sorvedor directo nas fontes latinas («A grande fonte da inventiva linguística de Camões encontra-se no latim») impede a visão da larga dívida a latinismos já em uso em castelhano.
Ora, tanto em Portugal como no Oriente (e Goa era um centro cultural pujante), as obras impressas em castelhano, desde os recursos lexicográficos às obras de espiritualidade, superavam em muito as disponíveis em português, e eram sobretudo aquelas as que o leitor cultivado consumia. Não é de mais dizer que ele era ‘educado’ em castelhano e que era com materiais cultos aprendidos em leituras castelhanas que o seu português se enriquecia, sendo a efectiva origem dos materiais (latina, ou já castelhana) secundária, se não indiscernível, para os utentes, tanto mais que, de muitas dessas palavras, rapidamente se perdia a noção de serem importadas. Em suma: quando se estudam os processos lexicais no português desta época, importa manter dentro no campo de visão o castelhano, essa referência lexical culta dos portugueses entre 1450 e 1730.
Infere-se que o projecto camoniano para a língua não incluía o aproveitamento do léxico patrimonial, e antes visava, conscientemente ou não, um horizonte bem mais entusiasmante e motivador: agilizar o português, torná-lo ‘internacional’, graças a uma crescente confluência com o castelhano. Esta ingente operação (provavelmente inconsciente, insista-se) permitiria o consumo directo de produções nacionais ao leitor estrangeiro, decerto o peninsular, mas igualmente o europeu culto, que à época lia com proficiência produtos em castelhano. Neste contexto, o cultivo dum léxico caseiro não favorecia quaisquer ambições.
Esse esforço de convergência com o prestigioso idioma centro- peninsular não foi só tarefa de Camões, e sim uma genérica tendência quinhentista, documentável noutros importantes autores como os dois dramaturgos já citados, e ainda João de Barros e os jesuítas Luís Fróis e João de Lucena.
Essa convergência não parece, de resto, ter nunca assustado os quinhentistas portugueses. «Não porque se tivessem conformado com a absorção e trituração do próprio idioma pelo do vizinho, mas por alimentarem uma expectativa inconfessável e ambiciosa: a de se apoderarem, um dia, do idioma dele. Assim encarada, uma crescente proximidade face ao castelhano, longe de constituir uma ameaça, vinha provar a viabilidade de um projecto altamente motivador, o de iberizar o português» (Venâncio 20142:136). Em jargão actual, diríamos que se visava um aumento do ‘estatuto’ internacional do português, mediante uma aliança estratégica com o castelhano. Era, no fundo, um desígnio patriótico.
Só que nenhuma tomada de posição explícita o reconheceria. Nos raros momentos em que essa gradual proximidade ao castelhano sobe à consciência, o movimento reflexo é, sempre, o de negá-la e mesmo desacreditá-la (Venâncio 2013:322-324). Mas, por informe, ou inconsciente, ou combatido que fosse, esse projecto continuaria a inspirar o século seguinte, e só a confluência de factores históricos e culturais de inícios de Setecentos preveniu a tempo um estádio irreversível (Venâncio 20142:142).
Se é certo não acharmos, na produção metalinguística do século XVI, nenhum incentivo explícito à referida deriva, e termos nós portanto de inferi-la dos factuais comportamentos linguísticos, existe pelo menos uma importante tomada de posição que objectivamente a sanciona.
Na sua Origem da língua portuguesa, pronta desde 1600, Duarte Nunes de Leão defende que «se não deve ouvir uma seita de homens que querem que o que se fala ou escreve seja por palavras costumadas e antigas, e que os homens do vulgo entendam, sem inovar vocábulos, que é razão de homens de pouco discurso e sem erudição. Porque, se essa regra se guardara, e não renováramos vocábulos, ou não os tomáramos emprestados quando os não temos nossos, estivera a língua portuguesa e as outras mais de Espanha na torpe rudeza em que a princípio estavam» (1606/1983:319, destaques meus). Assim, enquanto as palavras «costumadas e antigas» se vêem degradadas em estatuto, a conveniente renovação deverá recorrer ao ordinário empréstimo de outras línguas, e não, como poderia aventar- se, à exploração e aproveitamento de materiais já disponíveis no idioma.
Isto parece favorecer a tese, expendida neste trabalho, dum esforço quinhentista, implícito mas actuante, pela internacionalização do léxico português, iniciada pela apropriação de recursos castelhanos. E essa apropriação foi abundante. Só no decorrer do século XVI o português incorporou 246 adjectivos de fabrico castelhano próprio (os 15 adoptados por Camões são, até, modestos) e introduziu no léxico culto centenas de latinismos já em uso na Meseta.
O preço a pagar por essa internacionalização do português só poderia ser a progressiva secundarização do léxico patrimonial, já de si diminutamente estandardizado e com graves deficiências lexicográficas. Para mais, a gradual integração e ‘vernaculização’ (Venâncio 20142) dos materiais castelhanos tornava menos premente, menos rentável, investir a fundo em terminologias de fabrico próprio, por exploração de bases exclusivas ou compartilhadas.
A esta luz, o ‘Século de Ouro’ português quinhentista afigura-se-nos um gigantesco jogo de azar linguístico, inspirado por um desígnio patriótico que, por sincero, não era menos perigosamente arriscado. Quando, em inícios de Setecentos, este processo for revertido, será para encetar um em tudo semelhante: a actualização do léxico português pelo recurso ao francês, operação também ela secular e complexa, mas agora debatida na praça pública, objecto de abertas resistências, e contudo sub-repticiamente triunfadora. Esta história, a do galicismo em português, precisa, ela também, de ser detidamente contada.
Que o léxico patrimonial tenha sobrevivido à turbulência internacionalizante de Quinhentos, e o tenha feito com a frescura e a vitalidade que nele hoje ainda observamos, eis o que terá de ser explicado. Além dos factores históricos e culturais que, em Setecentos, atalharam essa deriva, poderiam actuar, na sustentação desse léxico, mecanismos intrínsecos que os assépticos projectos de afirmação linguística não atingem nem desvirtuam.
N. E. – Toda a bibliografia se encontra na publicação original deste estudo em Ernestina Carrilho et alii, Estudos Linguísticos e Filológicos Oferecidos a Ivo Castro, Lisboa: Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 2019, pp. 1541-1560. O estudo também está disponível no sítio do autor, aqui.
Trabalho do linguista, ensaísta e escritor português Fernando Venâncio originalmente apresentado no IV Congresso Internacional de Linguística Histórica (Universidade de Lisboa, Julho de 2017) e aqui transcrito parcialmente, com a devida vénia, de Ernestina Carrilho et alii, Estudos Linguísticos e Filológicos Oferecidos a Ivo Castro (Lisboa: Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, 2019, pp. 1541-1560).