«(...) A Covid-19 afectou profundamente a nossa economia, mas – pormenor muitas vezes negligenciado – também a nossa linguagem. (...)»
Um dos aspectos mais irritantes do novo normal é a quantidade de vezes que se ouve a expressão «novo normal». A Covid-19 afectou profundamente a nossa economia, mas – pormenor muitas vezes negligenciado – também a nossa linguagem. Às vezes, dirijo-me a um estabelecimento comercial, estaciono o carro e, no momento em que vou entrar na loja, constato que me esqueci da máscara no veículo. Regresso então ao carro a insultar entre dentes a máscara, juntamente com várias outras pessoas que, pelo mesmo motivo, estão a regressar aos seus automóveis. Até aqui, segundo me parece, reservávamos o insulto a objectos inanimados para peças de mobiliário em cuja esquina acertávamos com o pé descalço, ou martelos com os quais esmagávamos inadvertidamente falangetas. Creio que é relativamente inédito insultarmos um objecto que, como acontece com a máscara, não nos infligiu dor e se limita a jazer no porta-luvas, a estúpida, bem caladinha, para que a gente se esqueça dela à ida para o supermercado e tenha de voltar atrás.
Outra conversa que nunca imaginámos ter é a análise e avaliação de álcoois-géis. Antes de mais, deixem-me tranquilizar toda a gente: fui verificar ao sempre útil Ciberdúvidas e a palavra álcoois-géis está certa. É um daqueles felizes acasos em que a correcção gramatical e a aparência de tolice coincidem. O certo é que, neste momento, cada um de nós é um escanção de álcool-gel. Sabemos que lojas disponibilizam os melhores álcoois-géis, preferimos os mais alcoólicos aos enjoativamente frutados, os mais líquidos aos espessos e gordurosos, que deixam nas mãos uma gosma que só sai em casa, quando se toma banho ou lava as mãos. Bem sei que todo este tempo dedicado a apreciar álcoois-géis não era antigamente aplicado a discutir literatura e filosofia, mas lastimo as horas que isto rouba até ao debate sobre futebol. Como é que nos tornámos numa espécie que injuria máscaras e elogia álcoois-géis? Espero que a vacina, além de rechaçar o vírus, contemple a eliminação das marcas que ele deixou na linguagem. Creio que não é pedir demais: desejo um futuro melhor, em que os meus netos não sejam obrigados a articular a palavra álcoois-géis.
Crónica publicada no suplemento Sete da revista Visão do dia 10 se setembro. Segue a norma ortográfica de 45.