«[...] Nas versões em inglês e em francês da mesma directiva, bem como na imprensa anglófona e francófona, o “denunciante” é identificado pelos termos whistleblower e lanceur d’alerte [...].»
O provedor impôs a si mesmo a regra de responder tão depressa quanto possível ao correio que recebe. No entanto, há dois leitores que aguardam há meses por uma resposta a questões que me colocaram. Este atraso deve-se apenas ao facto de não ter conseguido obter, até agora, uma explicação dos autores ou editores das notícias questionadas pelos leitores e de o provedor dever ouvir os jornalistas antes de tomar uma posição.
O leitor Manuel Rodrigues escreve a propósito de um artigo assinado pelo Público, na edição de 25 de Janeiro de 2022, sobre a possível extradição de Julian Assange para os Estados Unidos:
«O segundo período começa assim: "A defesa do denunciante quer recorrer…". Como se sabe, pelo menos no nosso país, a palavra denunciante tem uma significativa carga pejorativa. Ora, por aquilo que tenho lido, Julian Assange é jornalista e terá sido nessa qualidade que conseguiu aceder a determinadas informações que divulgou. O mesmo têm feito, honra lhes seja feita, vários jornalistas do Público, sobre assuntos cujo conhecimento tem sido importante para nós portugueses; e não estou sequer a imaginar que alguém veria com bons olhos que um qualquer outro órgão de informação se referisse a esses jornalistas como denunciantes. Tendo em conta os tempos que vivemos e a ‘via sacra’ de Julian Assange, isto não é, na minha opinião, um pormenor sem importância.»
Em bom rigor, Julian Assange pode ser identificado como denunciante. Remeto para a letra da Directiva 2019/1937 do Parlamento e do Conselho europeus:
«Ao denunciar violações do direito da União lesivas do interesse público, essas pessoas agem como denunciantes, desempenhando assim um papel essencial na descoberta e prevenção dessas violações, bem como na salvaguarda do bem-estar da sociedade.»
Todavia, nas versões em inglês e em francês da mesma directiva, bem como na imprensa anglófona e francófona, o “denunciante” é identificado pelos termos whistleblower e lanceur d’alerte, em vez de, respectivamente, denouncer e dénonciateur, porque também nesses países a palavra denunciante tem uma carga negativa. No caso português, o termo é ainda mais pejorativo na medida em que ele recorda os delatores da PIDE que tinham como razão de ser denunciar todos os que «diziam mal» do Estado Novo.
Passando por cima da letra da Directiva Europeia – que, em minha opinião, resulta de uma tradução infeliz – e ficando apenas pelo seu espírito, penso que seria mais adequado chamar a Julian Assange «vigilante social» ou «sentinela social», embora admita que tanto um como o outro termo possa não transmitir uma imagem fiel do que se pretende dizer. Talvez os leitores queiram ajudar… [...]»
N. E. – O anglicismo whistleblower, literalmente «soprador de apito», surgiu em inglês como metáfora, comparando quem denuncia fraudes e atos de corrupção ao árbitro de uma prova desportiva, que apita para assinalar e penalizar a violação das regras da competição. Em português, o termo encontra tradução em denunciante, informador e delator, conforme regista o dicionário inglês-português da Infopédia. Como o jornalista José Manuel Barata-Feyo refere (ver acima), é denunciante o termo vernáculo que ocorre na Diretiva 2019/1937 do Parlamento Europeu e Conselho da União Europeia. Também o revisor e tradutor Helder Guégués, no blogue Linguagista, considera que denunciante é a tradução correta de whistleblower. Contudo, denunciante veicula certa carga pejorativa, alusiva à pessoa que denuncia alguém com maus propósitos. Para evitar esta interpretação, não será descabido complementar o vocábulo, especificando-o e reorientando o seu significado positivamente, para propor a expressão «denunciante de irregularidades/ilegalidades», a par de outras soluções, como «vigilante social» ou «sentinela social», apresentadas por José Manuel Barata-Feyo (ver acima). Refira-se que, em páginas da Internet brasileiras, avulta a expressão «informante do bem» (ou «reportante do bem») como forma correspondente a whistlblower, mas que parece desconhecer-se em Portugal (agradece-se a chamada de atenção de Luciano Eduardo de Oliveira para este uso). Outras soluções são possíveis – cf. "Whistleblower, ou seja, 'autor de uma denúncia'" –, muitas assumindo a conotação negativa de «denunciar, por traição ou maldade». Em suma, em alternativa a whistleblower, o português dispõe das opções denunciante (Portugal) e «informante/reportante do bem», expressões já com algum uso mas ainda longe de satisfatórias dos pontos de vista semântico e referencial.
Artigo incluído no jornal Público em 23 de julho de 2022.